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CONTATO: (Whatsapp) 84.99903.6081 - e-mail: luiscarlosfreire.freire@yahoo.com. Este blog - criado em 2008 - não é jornalístico. Fruto de um hobby, é uma compilação de escritos diversos, um trabalho intelectual de cunho etnográfico, etnológico e filológico, estudos lexicográficos e históricos de propriedade exclusiva do autor Luís Carlos Freire. Os conteúdos são protegidos. Não autorizo a veiculação desses conteúdos sem o contato prévio, sem a devida concordância. Desautorizo a transcrição literal e parcial, exceto breves trechos isolados, desde que mencionada a fonte, pois pretendo transformar tais estudos em publicações físicas. A quebra da segurança e plágio de conteúdos implicarão penalidade referentes às leis de Direitos Autorais. Luís Carlos Freire descende do mesmo tronco genealógico da escritora Nísia Floresta. O parentesco ocorre pelas raízes de sua mãe, Maria José Gomes Peixoto Freire, neta de Maria Clara de Magalhães Fontoura, trineta de Maria Jucunda de Magalhães Fontoura, descendente do Capitão-Mor Bento Freire do Revoredo e Mônica da Rocha Bezerra, dos quais descende a mãe de Nísia Floresta, Antonia Clara Freire. Fonte: "Os Troncos de Goianinha", de Ormuz Barbalho, diretor do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, um dos maiores genealogistas potiguares. O livro pode ser pesquisado no Museu Nísia Floresta, no centro da cidade de nome homônimo. Luís Carlos Freire é estudioso da obra de Nísia Floresta, membro da Comissão Norte-Riograndense de Folclore, sócio da Sociedade Científica de Estudos da Arte e da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Possui trabalhos científicos sobre a intelectual Nísia Floresta Brasileira Augusta, publicados nos anais da SBPC, Semana de Humanidade, Congressos etc. 'A linguagem Regionalista no Rio Grande do Norte', publicados neste blog, dentre inúmeros trabalhos na área de história, lendas, costumes, tradições etc. Uma pequena parte das referidas obras ainda não está concluída, inclusive várias são inéditas, mas o autor entendeu ser útil disponibilizá-las, visando contribuir com o conhecimento, pois certos assuntos não são encontrados em livros ou na internet. Algumas pesquisas são fruto de longos estudos, alguns até extensos e aprofundados, arquivos de Natal, Recife, Salvador e na Biblioteca Nacional no RJ, bem como o A Linguagem Regional no Rio Grande do Norte, fruto de 20 anos de estudos em muitas cidades do RN, predominantemente em Nísia Floresta. O autor estuda a história e a cultura popular da Região Metropolitana do Natal. Há muita informação sobre a intelectual Nísia Floresta Brasileira Augusta, o município homônimo, situado na Região Metropolitana de Natal/RN, lendas, crônicas, artigos, fotos, poesias, etc. OBS. Só publico e respondo comentários que contenham nome completo, e-mail e telefone.

sexta-feira, 3 de maio de 2019

Votos de Pobreza

VOTOS DE POBREZA


(Conto de ficção)

Manjedoura é nome da cidade antiga, fincada naquele sertão quente e acanhado. O topônimo sugestivo denuncia a religiosidade cristã de seus habitantes, talvez para amenizar a temperatura ou passar impressão de recanto de paz. A cidade, igual a quase todas, vive de verbas do Governo Federal. Lugar pobre. Paupérrimo. A igreja de São José é o centro das atenções, berço de festividades constantes. Lugar de projeção de políticos e revelação de cantores. Os eventos insistem em dar vida ao lugar moribundo, exceto de gente e bichos que insistem naquela secura. O mexerico do momento é sobre uma adutora se arrastando próxima. Quase ninguém acredita que terá água de torneira.
O menino João Lucas, ou “Luquinha”, como o chamam, nasceu numa casa de taipa, no povoado de Lago Seco. Moravam de favor, como sempre reclamava a mãe em seus ápices de agruras. Passavam muita fome. Ela culpava-se não terem um pedaço de chão. A propriedade pertencia a um fazendeiro que os instalou ali sob a condição de plantarem e criarem pequenos animais num perímetro determinado. Era homem bom, mas sabiam que a qualquer hora a terra seca poderia ser reivindicada sem dó nem piedade. Eles se valiam da religiosidade do dono. Entendiam que gente que tem religião faz o que Jesus ensinou. São oito filhos do casal José Bernardo e Celestina. Cinco deles nasceram ali.
A criançada cresceu no terreno de arisco, pedras e lajeiros. O caçula vivia perguntando a mãe por que o final do mundo se mexe igual minhoca. É quentura meu filho! O sol bota esses engano na gente. Às veis parece que as pranta tão dançando!
A família amargava uma espera eterna pela chuva para botar roçado. Os meninos viviam cutucando locas com Tubarão, cachorro esperto feito o diabo. Assim traziam a janta de preás que seriam comidos com farinha seca. Nos invernos bons plantavam feijão, milho, macaxeira, inhame e batata-doce. A colheita ficava guardada num puxado reservado, mais vazio que cheio. A estiagem era do cão.
A roça significava a base de sustentação daquela região pobre de quase tudo. Um compadre, solidário à pobreza da família, doou uma bezerra que já completava uma década de vida. “Malhada” parecia gente da família. O úbere da pobre inchava conforme dava capim no leito da lagoa seca há duas léguas do casebre. Era o único lugar úmido. O cheiro de varjão tinha foros de perfume para quem ali chegasse.
Malhada contava com a reverência da família. Era provedora de comida. Muitas vezes se transformou na única fonte de alimentação. Dela vinha leite, coalhada, manteiga e até manteiga de garrafa. Muitas vezes a infeliz mastigava apenas uns fiapos de capim e palmas que mais pareciam folhas secas. Tempo de leite com sangue. Diferente dos dez litros na chuvarada. As incertezas do lugarejo fabricaram uma população de cara engelhada a maracujá velho. As pernas lembravam pernas de sibite, pássaro local, magro como agulha. Eles mesmos se comparavam assim.
 José Bernardo era conhecido na região como “Zé Bebé”, e não sabia a origem do apelido. Gente estranha que chegasse ali a sua procura não o localizaria se não descobrisse o apelido. Todos dali só atendiam por pseudônimos. Era Zé Preá, Tõe de Dona, Noquinha da Rodage, Cara de gato, Juca tetéu, enfim o nome de batismo era estranhado até pelo vizinho.
O mais velho dos meninos, Didi, já andava arrastando as asas para os lados de Filó, cabrinha formosa, filha de João de Iazinha. Os pais não desaprovavam. Eram pobres iguais. Mas não deixavam de chorar o futuro daquele engate. Pareciam ter em mãos um bola de cristal. Ali todos cresciam e morriam iguais. Os outros meninos, com idades em escadaria, ainda não tinham acordado para o amor. Talvez a vida salobra aquietasse o coração.
Luquinha, como já foi apresentado, cansado de ter os pés picados por formiga de roça, jurava um dia ter outra vida. Passava as raras folgas quebrando galhinhos de juá que lhe ajudavam a pensar vida melhor. Matutava ser tudo. Só não sabia como. Não entendia por que o dono daquelas terras – que aparecia ali vez em quando – tinha tanta comida, roupa boa, dispensa coalhada de rapadura, farinha, feijão, queijo e coisa vinda da capital. Coisas gostosas que ele nem imaginava o que era, mas queria comer. As visitas do “Coronel Suassuna” tinha ares de vigilância, como se dissesse só vim lembrar que a terra é minha. Os pais cobriam o velho de deferências e arreganhados de dentes. A humilhação o incomodava.
O velho costumava aparecer numa Chevrolet D-20 do ano. Saltava perfume de dentro da boleia. Contrastava com a casa velha impregnada de picumã e fumaça do fogão quase sempre de fogo morto. Os meninos menores rodeavam o carro como se visse algo divino. Luquinha, que já apresentava um comportamento diferente, sentia vergonha. A mãe sempre dizia após sua despedida que mais uma vez não havia botado café para o coronel. Essa realidade torturava a mente de Luquinha.
Naquela semana houve festa no lugarejo. O novenário de São José antecedia o dia dezenove, dia do pai de criação de Jesus. Era tempo de se deliciar com café, bolo de milho, tareco, solda, rapadura e comida de panela. As poncheiras vinham cheias de suco de frutas da capital. Todos colaboravam, principalmente os ricos de Lago Seco. As novenas pediam bom inverno. Se chovesse na data significava março de cumulonimbos.
O novenário daquele ano trouxe um fato novo para a família de Zé Bebé. Padre Totonho inventou pedir Luquinha para coroinha da igreja de Manjedoura. A mãe se balançou. É uma boca a menos pra comer. Ano passado não choveu uma gota do céu. Besteira! Eu careço dos menino pra lida no mato. O pouco que temos vem do nosso trabalho. Pois pra mim ele ia. Pois por mim não vai. Futuramente o menino pode ir para a capital estudar no seminário; sai daqui recomendado por mim. Aprenderá Filosofia, Teologia, só coisa boa. Se não for do gosto dele pode virar um professor, o que ele quiser. O sacerdote fez a sua propaganda.
Luquinha ouviu a conversa. Daquele instante em diante o seu pensamento não era outro que não fosse ser coroinha. Pensava na oportunidade de comer bastante carne. Dizem que na casa paroquial tem até postas de peixes, dessas que vem do mar. O padre tem carro. Vou andar de automóvel de uma capela a outra. Quem sabe até dirigir. Acordou pedindo ao pai que o deixasse ser coroinha. Ora seu cabra! Nunca imaginou isso, bastou ouvir aquele velho caduco e já quer andar enfiado em igreja. Não tenho filho pra andar de saia. Que desrespeito é esse, Zé? Padre Totonho é hômi de Deus.
De fato, depois de ouvir a conversa do padre, Luquinha mudou. Lago Seco ficou amargo, aumentaram as formigas picando-lhe os pés, a comida, escassa, tornou-se indigesta, a lida na roça virou tortura, desaprendeu a tirada de leite na madrugada, esqueceu-se de como ajeitava a carroça no animal, perdeu-se indo buscar água barrenta no açude moribundo, enfim mudou da água para o vinho. Caiu emburrado. Coroinha. Coroinha. Coroinha. Aquele padre dos mil e seiscentos diabo inventou uma miséria dessa com esse condenado. Maldita hora riscou aqui. Perdi o menino. Diga isso não hômi. Tudo é providência de Deus. O ambiente tornou-se difícil depois do convite do padre.
Na semana seguinte, Luquinha não comeu mais. Ficou amuado e caiu a vomitar. Dona Celestina pôs-se em desespero. Bateu na casa de sinhá Preta, benzedeira e parteira, fazedora de mezinhas que ressuscitavam defunto. A velha benzeu o menino. Não é quebranto. Ele viu alguma coisa estranha. Está assustado. Só vancês sabe o que foi. Procure consertar pela conciênça. Deem muito chá e faça ele engolir pelo menos cabeça de galo. Se quisé tenho ovo lá em casa. O pobre ta um sibite baleado. A velha se despediu. Esse cabra ta precisado de peia. Diga isso não, Zé, causa revolta no pobre. Tu sabe o que é. A gente pode até perder esse inocente. É da vez que eu me jogo cacimbão abaixo. Deixe de suas milacria, condenada!
No outro dia o padre Totonho amanheceu na porta. Trouxe uma caixa com muita farinha, feijão, queijo, rapadura e carne de sol. Vez ou outra ele aparecia com esses tesouros. Zé Bebé tomou um susto. Nessa hora de seca extrema, se a gente não se ajudar, morremos todos de fome. Foi Jesus que mandou. Não se envergonhe não. Dona Celestina fez o sinal da cruz e agradeceu a generosidade.
Perguntando pelo menino, teve a notícia da doença. O sacerdote foi até a cama, abriu a janela do casebre e olhou os olhos de Luquinha. Deixa eu levar esse menino para a cidade. É coisa de médico. O casal se entreolhou. Eu agradeço vossa bondade padre, mas a gente já ta dando um chá aqui mesmo. Sinhá Preta teve aqui. É pantim de menino-buchudo. Inventô essa manha agora. O sacerdote alertou sobre a magreza de Luquinha e, com muito custo, saiu dali com ele. O diabo quando não vem, manda secretário! Celestino, hômi de Deus, não diga uma blasfêmia dessa! Deus vê tudo. Que coração duro!
Passados quinze dias o padre mandou chamar o casal. Luquinha parecia outro. Engordou. Estava viçoso, enfatiotado, olhos brilhantes, cabelo penteado. Recebeu roupa nova e andava correndo os olhos na Bíblia, arriscando estudá-la. Em casa conheceu um livreto velho de oração comprado no mangaio pela mãe. Nunca abriu a primeira página. O sacerdote alegou que o menino não tinha natureza para sol e serviço pesado. Pediu para colocá-lo na escola da cidade e torná-lo coroinha.
Luquinha havia conversado com todas as pessoas da igreja sobre esse sonho surgido de última hora. Deixe o garoto aqui que estará bem cuidado. Todo final de mês ele passará o final de semana lá em Lago Seco com vocês. A mãe olhou o pai, desconfiada. Sua fisionomia dizia mil impropérios. Para surpresa de todos o pai concordou. Percebeu que o filho estranharia o casebre. Tá certo, ele fica, mas qualquer coisa mande para lá que é o lugar dele. Não quero dar despesa para a igreja. O certo é o povo dá e não tirá da igreja. Eu memo só não dô proquê num tenho nem para mim. Despediram-se. Dona Celestina esse saco de cume é para vocês!
Passados nove anos de estadia na casa paroquial Luquinha caiu no Seminário de Santo Expedito, na capital. Na realidade, Luquinha morreu, virou o seminarista José Lucas da Silva. Foi difícil ao pai aceitar a escolha do filho, mas ele teve esse pressentimento quando deixou o menino com o padre. José Lucas, já rapaz, desasnou rapidamente, tornando-se muito ativo e envolvido nas coisas da arquidiocese. As lembranças amargas de Lago Seco o empurravam para a nova vida.
Como costume na capital, as famílias ricas adotavam os seminarista e forneciam de tudo. Luquinha, aliás, o seminarista José Lucas foi acolhido pela senhora Guilhermina Andrade Couto, uma das famílias mais abastadas da capital. Diferente do que contam sobre madrastas, a senhora Guilhermina cobria José Lucas de presentes e o tratava com muito carinho. Transferiram o padrão de vida deles para o seminarista. Seus presentes eram quase sempre importados. Os melhores perfumes; camisas de linho, calças, cuecas, cintos, calçados, meias compradas em lojas de grife do shopping. E isso não era exclusividade apenas dele. Todos os seminaristas experimentavam a mesma generosidade de suas madamas.
Padre Totonho havia dito a José Lucas, ainda em Manjedoura, que o chamado de Deus significa viver a igreja de Cristo e abandonar pai e mãe. A messe é grande e precisa de operários. A vida eclesiástica torna-se a nossa família. Os fiéis se tornam semelhantes aos nossos filhos. Cumprimos o papel de Jesus, evangelizando sempre. Padre é pai de todos. É a nossa eterna missão. Explicou que Deus é pai e mãe ao mesmo tempo. Essas palavras latejavam os pensamentos do seminarista.
José Lucas levava a sério a orientação, afinal o padre Totonho era idoso e muito respeitado. Possuía uma biblioteca que ele lutou em vão tentando contar quantos livros existiam nela. Foi naquelas prateleiras que ele descobriu o padre Antonio Vieira e se apaixonou pelo seu modo de escrever. Padre Totonho era muito culto e desapegado de coisas materiais. Dizia que um padre deve se alimentar bem e nunca desprezar o hábito. Esse é o nosso luxo. Só isso. Tinha costumes simples e ajudava a todos. Não havia casa que ele não visitasse.
José Lucas não entendia exatamente a razão de tantas colocações, mas sentia verdade nelas. A saudade incondicional da mãe pulsava junto às batidas do coração. O pai era uma lembrança vaga. Recordava-se com carinho dos irmãos. Numa ocasião o padre Totonho disse a José Lucas que ele propusesse ao reitor do seminário realizar projetos nas favelas e áreas periféricas. Peça ao reitor para estarem diretamente em contato com os pobres, façam campanhas para aquisição de roupas, remédios, livros. Levem cinema as pobres, propiciem cultura a eles. Visitem casas, curem feridas, beijem os pés dos desvalidos, façam caçarolas de sopa e entreguem diariamente. Viver os votos de pobreza é estar junto dos que tem fome, e não junto aos abastados. A fé sem obras é vã. É teatro. Esteja em conformidade com o juramento sacerdotal.  
Você não é um miserável por viver o voto de pobreza.  Tenha apenas o suficiente para uma vida confortável. Isso é viver em Cristo. Se Jesus estivesse aqui, estaria nessa lida. Fique longe da ostentação e palavras torpes. Que a Bíblia e os bons livros sejam a sua companhia. Um dia João Lucas contou aos seminaristas a história de abandonar os pais e viver para a igreja, contada pelo padre Totonho. Uma gargalhada uníssona e estrondosa quase pôs abaixo os dormitórios. Aquilo é um dinossauro da era paleozóica. Que invenção idiota. Ele quer padre, assistência social ou um bando de mendigos? Estamos n’outros tempos. Ninguém aqui é cópia de padre José Maria. Ele que é santo.
As relações diárias com os outros seminaristas permitiram a José Lucas constatar algumas atitudes que se chocavam contra o que ele aprendeu com o padrinho sacerdotal. Nas horas de estudo as conversas se desviavam para novelas da Globo. A maioria não perdia um capítulo. Quero ver se hoje Tomé vai transar com Júlia. Parece que hoje fulano vai assassinar mais um. Os assuntos saltavam de novela para filmes, passeios em shoppings, perfumes e roupas. As resenhas entravam a madrugada quando os seminaristas chegavam das casas de suas madames.
José Lucas percebia deslumbramento em quase todos os seus companheiros, os quais, iguais a ele, vinham de famílias humildes. Tudo o que tinham no seminário era impensável quando viviam em seus lugarejos. José Lucas se perdia em reflexões. Todas lhe levavam às palavras do padre Totonho.
Na realidade o seminarista de Lago Seco tinha sensação parecida. Sentia uma espécie de superioridade pelo que amealhara em roupas e assessórios pessoais desde que chegou ao seminário. Seu sonho era retornar vez em quando à Manjedoura e andar pela cidade mostrando relógio e roupas de rico. Imagina o que sentiria papai. Creio que ele rosnaria. Mamãe ficaria orgulhosa. Meus irmãos, coitadinhos, sentiriam vontade de ter minhas roupas. Mas logo o pensamento mudava. O que ele bebeu na fonte do padre Totonho o colocava em conflito psicológico. O sacerdote de Manjedoura sempre botou freio curto em vaidade.
José Lucas percebia muitas risadas e brincadeiras durante as missas, protagonizadas por alguns seminaristas. Vez ou outra ele conversava com algum postulante sobre as suas observações e sentia que não estava só naquela análise, mas que o número de praticantes do estranho comportamento era maior.
Aos finais de semana os seminaristas ficavam excitados, aguardando suas madrinhas buscá-los para passeios ou estadias luxuosas em suas mansões. Outros ficavam nas casas das madames, pois se tornaram-se íntimos das famílias. Num desses sábados a sua família postiça teve um imprevisto e restou-lhe as paredes do seminário. Lembrou-se das obras do padre Antonio Vieira.  
Exatamente nesse dia cismou de ler o Sermão da Sexagésima. A coleção ficava num cômodo reservado para obras raras. Raramente alguém entrava ali. Nesse espaço ele visualizou o flagrante que o chocaria, protagonizado por dois seminaristas. Virou uma pedra. Ao longo do tempo percebeu que a cena se repetia com meia dúzia de outros. Sentiu vontade de retornar à Manjedoura, mas o choque da miséria o freou. As raras vezes que visitara os pais imitava o coronel Suassuna. Mal deixava alimentos e algum dinheiro nas mãos da mãe, obtidos de agrados das madames, riscava para os pés do padre Totonho, sua referência masculina e cristã.
Não conseguia se demorar na casa onde nasceu. Tudo ali permanecia amargo e indigesto. A roupa pegava a catinga de fumaça do fogão à lenha, a calça sujava nos picumãs, a comida era seca que não descia. Sua pobre mãe sequer sabia o que era maionese, prato que ele enaltecia sempre. Um dia talvez eu comerei isso, meu filho, mas enquanto nem sei o que é me basta. A água salobra, o pai, monossilábico, os irmãos barulhentos, o berro de Malhada. Tudo o incomodava.
A cena da biblioteca o fez pensar em retornar, mas para morar na casa paroquial. E o meu futuro? Nesse momento ele lembrou que sonhava possuir um Duster igual ao marido de sua protetora. Sonhava vestir mantos luxuosos semelhantes a muitos padres, imaginava roupas luxuosas de passeio, os samartphones do ano, enfim lhe agradava a opulência. Excitava-lhe ver padres chegando ao seminário com motoristas ou eles próprios dirigindo modelos que mais pareciam naves de outro planeta.
O pátio da catedral metropolitana se assemelhava a uma loja de carros de altíssimo luxo. Uma vez ele constatou haver ali automóveis Audi, Duster, Range Rover e outros. Para estragar o espetáculo de gala, uns modelos populares se perdiam em meio a eles. Se o padre Totonho andasse por aqui seu Fusca caindo aos pedaços estaria arruinando a paisagem. Ficava fora de si. Ora bolas! Eu posso ter o meu no futuro! Decidiu naquele momento fazer vistas grossas a tudo o que visse doravante.
A manhã do dia da ordenação sacerdotal colocou o Seminário Santo Expedito em polvorosa. Era madame para cá, padre para lá, coroinha aqui, beatas ali. Os ordenandos deram um jeito e mandaram buscar os seus familiares. A senhora Guilhermina Andrade Couto fez questão de custear as despesas com roupas novas e traslado da família do então padre José Lucas. Totalmente desambientados, comportaram-se como alienígenas. O máximo de distância que conheciam de Lago Seco era até o centro de Manjedoura. Sonharam a vida inteira com uma peregrinação à Juazeiro, mas a barriga impedia. Teria sido distância maior. Eram unânimes na reclamação do sapato incomodando os pés. José Lucas recomendou-lhes fazerem um esforço.
Cinco anos se passaram. Padre José Lucas conquistara o posto de representante da maior igreja da capital, situada no bairro Vinhedo, região de condomínios de milionários. Estava radiante. A notícia da morte do padre Totonho botou Manjedoura em desolação. Faltava exatamente três horas para o enterro quando uma Land Rover adentrou Manjedoura, dirigida por um motorista estranho. Muitos julgavam ser o padre Luquinha, como permaneceram chamando o sacerdote João Lucas. Curiosamente o veículo parou defronte ao átrio do templo. O dito motorista desceu, dirigiu-se até a porta traseira, abriu-a. É o padre Luquinha! Disse em voz alta a cozinheira da casa paroquial.
O sacerdote, enpafiado de poses desceu vagarosamente e se dirigiu ao ataúde. Dinorá, uma beata que o viu nascer o conduziu à sacristia. Demorados alguns minutos padre Luquinha subiu ao altar com uma veste eclesiástica que roubou a cena. Fora encomendada fora do estado, peça exclusiva, criada por uma madame apaixonada por motivos de igreja. Havia excesso de luxo. O sacerdote destoava das vestimentas poídas do padre Totonho.
Muito teatrológico e falando uma língua desconhecida por quase todos os manjedourenses, padre João Lucas encomendou o corpo do seu padrinho sacerdotal. Findada a cerimônia, estirou-se até o cemitério, ao modo de quem foi buscar fogo. Saiu monossilabicamente sem visitar os pais.
Padre João Lucas se organizava para ser alçado à condição de bispo. Contava sete anos de nova vida. Os cabelos do sol esvoaçavam anunciando dia quente. Resolver se abalar até Manjedoura em visita aos pais. Havia acabado de chegar de uma visita a Europa. Era a sua quinta viagem. Restava conhecer apenas a Rússia. Da América do Sul já cominava até os vícios de linguagem. Era agosto de dois mil e dezoito. Mês de cachorro louco, como disse o pai, brincando, acolhendo-o à porta da casa luxuosa, no centro de Manjedoura. Três dos irmãos que ainda não se casaram se balançavam em redes dependuradas na varanda emoldurando o casarão. A mãe perguntou se ele queria queijo coalho. Ele adiantou que trazia um queijo importado, presente do arcebispo. Sim, mainha, tá la no carro a imagem de Nossa Senhora de Fátima que comprei em Portugal. Meu filho, eu trouxe de Juazeiro uma imagem de madeira do Padre Cícero. Tô com outra encomendada já para a viagem do mês que vem. É para o arcebispo. Diga que foi mainha que mandou. Sim, mainha, ele disse que ta vindo pra crisma de dezembro e quer ficar aqui. O arcebispo tá bem se lembrando dos meu licor!
Na sala o irmão caçula alisava os cabelos de uma cabritinha chegada da capital e já enfiada na família. Assistiam Netflix na TV analógica que consumia a parede. Iam casar em vinte dias. A casa jazia barulhenta. Eram familiares assistindo TV, espalhados pelos cômodos da assobradada construção.  Aparelhos Iphones tocavam verdadeira discoteca na casa inteira. Na garagem da assobradada residência a Amarok de Zé Bebé ainda estava carregada de compras vindas da capital no dia seguinte. Um barulho de buzina soou no imenso portão de ferro. Era Totinha, irmão mais velho, chegando com seu Fiat do ano. O futuro bispo João Lucas visitava constantemente os pais. Manjedoura tornou-se aprazível.
Abandona teu pai e tua mãe e vem para a messe. A messe é grande e precisa de operários. Tua vida será a igreja. Cuide de teus pobres. Esteja ao lado dos desvalidos e os representem diante das injustiças. A comida é para quem tem fome. Seja sempre humilde, pois Jesus foi humilde...
Padre João Lucas, deitado na rede de varanda bordada, achou interessante. Sem mais nem menos vieram-lhe à mente essas palavras do padre Totonho...
Luís Carlos Freire - 1996


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