ANTES DE LER É BOM SABER...

CONTATO: (Whatsapp) 84.99903.6081 - e-mail: luiscarlosfreire.freire@yahoo.com. Este blog - criado em 2008 - não é jornalístico. Fruto de um hobby, é uma compilação de escritos diversos, um trabalho intelectual de cunho etnográfico, etnológico e filológico, estudos lexicográficos e históricos de propriedade exclusiva do autor Luís Carlos Freire. Os conteúdos são protegidos. Não autorizo a veiculação desses conteúdos sem o contato prévio, sem a devida concordância. Desautorizo a transcrição literal e parcial, exceto breves trechos isolados, desde que mencionada a fonte, pois pretendo transformar tais estudos em publicações físicas. A quebra da segurança e plágio de conteúdos implicarão penalidade referentes às leis de Direitos Autorais. Luís Carlos Freire descende do mesmo tronco genealógico da escritora Nísia Floresta. O parentesco ocorre pelas raízes de sua mãe, Maria José Gomes Peixoto Freire, neta de Maria Clara de Magalhães Fontoura, trineta de Maria Jucunda de Magalhães Fontoura, descendente do Capitão-Mor Bento Freire do Revoredo e Mônica da Rocha Bezerra, dos quais descende a mãe de Nísia Floresta, Antonia Clara Freire. Fonte: "Os Troncos de Goianinha", de Ormuz Barbalho, diretor do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, um dos maiores genealogistas potiguares. O livro pode ser pesquisado no Museu Nísia Floresta, no centro da cidade de nome homônimo. Luís Carlos Freire é estudioso da obra de Nísia Floresta, membro da Comissão Norte-Riograndense de Folclore, sócio da Sociedade Científica de Estudos da Arte e da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Possui trabalhos científicos sobre a intelectual Nísia Floresta Brasileira Augusta, publicados nos anais da SBPC, Semana de Humanidade, Congressos etc. 'A linguagem Regionalista no Rio Grande do Norte', publicados neste blog, dentre inúmeros trabalhos na área de história, lendas, costumes, tradições etc. Uma pequena parte das referidas obras ainda não está concluída, inclusive várias são inéditas, mas o autor entendeu ser útil disponibilizá-las, visando contribuir com o conhecimento, pois certos assuntos não são encontrados em livros ou na internet. Algumas pesquisas são fruto de longos estudos, alguns até extensos e aprofundados, arquivos de Natal, Recife, Salvador e na Biblioteca Nacional no RJ, bem como o A Linguagem Regional no Rio Grande do Norte, fruto de 20 anos de estudos em muitas cidades do RN, predominantemente em Nísia Floresta. O autor estuda a história e a cultura popular da Região Metropolitana do Natal. Há muita informação sobre a intelectual Nísia Floresta Brasileira Augusta, o município homônimo, situado na Região Metropolitana de Natal/RN, lendas, crônicas, artigos, fotos, poesias, etc. OBS. Só publico e respondo comentários que contenham nome completo, e-mail e telefone.

quinta-feira, 29 de julho de 2021

Quem existiu em mim?


Photography: Khaled Flehan.

Quem existiu em mim?
 
Passei dos 80 anos de idade e reconheço a proximidade com a data do meu prazo de validade. Não sei qual será o último dia, mas reconheço que não terei a chance de viver mais 80 anos novamente. A quantidade de anos que terei de agora em diante é menor que um terço dos 80 anos que já vivi. E como não é natural - nem possível - a longevidade que passe dos 120 anos, reconheço que existir, doravante, é um imprevisível encontro com o fim, portanto me sinto leve, ajo como se estivesse planando, levado pelo vento. Sou altamente altruísta e não tenho problemas existenciais - para mim, a vida é um poema - e as coisas mais maravilhosas do mundo estão no chão. Mas a partir de agora me preparo lentamente para desaparecer. Agirei com naturalidade. Sem traumas, revoltas, mágoas, embora podendo sentir todas, pois o homem não é tão bom como se pensa, e existir é matar um leão por dia, desde que você esteja do lado do bem. O homem construiu todas as infelicidades que o afligem a humanidade. Foi egoísta e indiferente aos filhos e netos. Mas no bojo do revisionismo dos meus dedentros, senti que esse é o momento mais propício para pensar.
 
Hoje, vi-me num pier. O tempo estava nublado, de maneira que um lençol de neblina forrava o mundo com estampas escuras e confusas, tal o lençol que minha mãe estendia no varal da minha infância. Diante de mim firmou-se um vácuo. Fiquei cara a cara com o nada. Tive a impressão de me desprender de minhas carnes em eflúvios passageiros, como se flutuasse. Então emanei-me como ectoplasmia (não da fantasiosa alma, mas do pensamento a vagar). Peguei de um pequeno espelho que trago no bolso e olhei a minha efígie… Surtiu-me involuntariamente a pergunta “quem existiu em mim?”. “Quem viveu nas minhas carnes, nos meus ossos?”. “Quem me foi”. “O que fui nesse corpo extenuado”.“Quem se abrigou nesse corpo que se desmorona como edifício em ruínas?”
 
Somos como qualquer coisa da natureza, talvez um cânion, cujo tempo, o vento, a água e a chuva promovem uma impiedosa erosão em sua estrutura. O tempo é uma contradição esdrúxula. A velhice erodiu-nos, ampliando largamente a nossa maturidade, a sabedoria e o conhecimento. Somos Deus diante da criança inaugurando a vida dela. O tempo conserva intacta a jovialidade humana. Ter mais de 80 anos não é diferente de ter 18 anos de idade. Mas são 18 anos num corpo se desfazendo em chaboques como parede velha. O que explica todo esse patrimônio humano em ruínas. Por que esse fim? O que justifica tanta lapidação em ruínas? Porque estarmos tão preparados e tão definhados? Por que justamente quando somos uma imensidão ficamos tão pequeninos? Por que amealhar tanta sabedoria para desaparecer como a biblioteca de Alexandria que se consumiu em fogo? Por que uma mente intacta num corpo velho e trôpego? Por que a mente não envelheceu juntamente com o corpo? Nosso fim é uma briga. A mente quer disparar, mas o corpo mal dá dois passos por minuto.
 
Ao pensar sobre quem foi a pessoa - ou as pessoas - que se abrigaram nesse corpo de ossos fracos e pele transparente, reconheço que, de tudo o que somos - e fomos - ou não fomos - ficará apenas uma história. Umas cheias de ilustração, portanto ovacionadas, lembradas durante séculos. Outras, recordadas em meses ou numa década. Outras, desaparecidas ainda antes de o corpo morrer. Mas quem foi a pessoa que esteve presa ao corpo? O que ela fez? Terá valido a pena ter se servido desse corpo para construir uma história? O que foi feito da vida? Construiu impérios? Escreveu livros? plantou árvores? ajudou pessoas? inventou algo extraordinário? fez roças? envolveu-se em voluntariado? usou a inteligência para lutar contra os ímpios? Foi covarde? omisso? vegetou? ficou sempre do lado dos poderosos e não defendeu os oprimidos? escondeu-se atrás de igrejas ou de incontáveis máscaras tão comuns para ser beneficiado por algo? Traiu a família? Traiu os filhos? Traiu os amigos? Matou? Roubou? O que esse corpo - de mãos dadas com a mente - fizeram?
 
Já bastante distante de mim fiquei me olhando. Contemplei o corpo arqueado, a pele flácida e transparente, os sulcos na face, como mapas, os dedos já sem a flexibilidade de antes, os cabelos de puro algodão brigando com a calvície. Comparado ao passado, estava diante de mim um sopro de vida, alguém que poderia se esfacelar por um passo mal dado, ou um esbarrão desproposital de alguém. Eu, que era tudo, transformei-me em nada. Então emanaram-me lembranças da minha juventude. Quanta diferença! Ah! se pudéssemos nos encontrar com nós dessa forma. Seria o princípio diante do fim. Seriam duas pessoas totalmente diferentes. O viço da pele, o corpo novo como saído recentemente de uma fábrica. Tudo belo e atraente - totalmente diferente - numa estrutura humana em ruínas. O famoso filósofo Heráclito de Éfeso afirmou que “ninguém pode entrar duas vezes no mesmo rio, pois quando nele se entra novamente, não se encontra as mesmas águas, e o próprio ser já se modificou”. Isso me faz refletir sobre quem terei sido ao longo de sucessivos banhos de rio. Quantos fui? O que eu perguntaria para mim? Ou para o não-mim, afinal eu seria outro?
 
A vida é um mistério que a natureza ainda não decifrou. O tempo nos faz imbatíveis justamente quando não temos mais tempo nem estrutura física para lutar sequer pela própria existência. Então virão outros e outros, que brigarão, lutarão, matarão, farão o bem, farão o mal num ciclo interminável. Parece contradição, mas, desparodiando Heráclito de Éfeso, seria prodigioso se esse encontro se desse de maneira que esses dois seres - velho e novo - fossem os mesmos em pelo menos uma característica: no bem. Não importa quantas pessoas teriam se renovado ou mesmo se trancado naquele corpo. Não importaria mais nada, exceto que a existência tenha se pautado na busca por um mundo melhor, na busca de justiça, de civilidade, enfim, do bem de si e de todos.

A cheia de 1974 e seus efeitos em Cururu (Campo de Santana), Porto e em São José de Mipibu (BR 101) - Restaurando páginas da História e Memória de Nísia Floresta

 


A cheia de 1974 e seus efeitos em Cururu (Campo de Santana), Porto e em São José de Mipibu (BR 101) - Restaurando páginas da História e Memória de Nísia Floresta

Há 17 anos obtive esse material, inédito até agora, e que teria desaparecido se o destino não tivesse me colocado diante do Sr. Antônio, um senhor idoso, muito simples, que tinha como hábito registrar fatos do seu cotidiano. Na realidade, era um fotógrafo desses que tem estúdio, mas, por sorte costumava fotografar os lugares que passava.

Eis que, andando por Nísia Floresta e São José de Mipibu, ele fez esses registros preciosos durante a cheia de 1974. Ao encontrá-lo, ele falou-me desses slides e disse que me daria. Fiquei muito surpreso e perguntei como poderia gratificá-lo. Ele respondeu "dá-me uma fotografia da escritora Nísia Floresta", e assim eu fiz. Mandei ampliar uma fotografia de Nísia Floresta, coloquei numa moldura e o presenteei. Ao longo dos anos, muitos me perguntam se nos meus acervos possuo fotografias dessa cheia de 74, tão falada, que tanto medo e destruição trouxe para a localidade.

Esse material estava todo em slide, mas naquele padrão antigo, da década de 70. Só agora consegui mandar digitalizar. As imagens não são colorizadas. São de fato em cores originais. Porém o tempo impactou nas cores, mas sem prejuízo algum para uma boa apreciação. Não tenho costume de editar vídeo. Fiz esse rapidamente. Conforme o tempo permitir, vou organizá-lo melhor, inclusive com imagens de algumas pessoas idosas, já falecidas, que me narraram o fato. À ocasião disponibilizarei outras fotografias antigas, obtidas nesse prodigioso encontro que tive com o senhor Antonio.

OBSERVAÇÃO: Como tenho muito respeito e admiração pela cantora Maria da Soledade, escolhi a sua canção "Saudade da minha terra", assinada e interpretada por ela, que foi a primeira e única artista nisiaflorestense de repercussão nacional.

 

Porta


Photography: Khaled Flehan.  
 
PORTA 
O que nos espera do outro lado? Devemos abrir a porta ou conservá-la fechada? É uma necessidade, curiosidade ou irresponsabilidade? Do outro lado pode estar o bem ou o mal, o bom ou o mau. Transpô-la é uma prioridade? E se do outro lado estiver um nó górdio? O que me leva a querer abri-la? O que me faz deixar como está? Estaria sendo ousado em tocar o trinco e enfrentar o que viria? Seria covarde por ficar do lado de cá, longe de um possível problema? Mas, e se do outro lado estiver o que espero? Se do outro lado estiver a solução? E se essa passagem for o fim? E se for o recomeço? E se eu me der com o vácuo? 
 
A vida é feita de portas. Todos os dias há portas a serem abertas ou não. Começa em casa, no quarto, no banheiro e finalmente de casa para a rua. São imperceptíveis e não nos damos conta. Mas as portas da vida são nítidas. Estão no meio do caminho. Podem consistir em obstáculos ou não. Algumas, você abrirá com prazer, outras o farão se sentir forçado. Existirão as que você será obrigado a abrir. E muitas que jamais devem ser abertas. 
 
Têm portas que não trazem chaves. Têm portas acercadas de contenções. São fornidas, fortificadas, quase impenetráveis. Certamente protegem algo. Outras jazem entreabertas, ou destrancadas. Talvez não guardem valores ou segredos. Ou guardam mal guardado? Existem portas que os outros abrem para nós. Existem portas que abrimos para os outros. Podemos abrir ou fechar portas para o indesejável. Mas também podemos abrir ou fechar portas para o desejável. Podemos ser indesejáveis a quem nos abre ou fecha porta. O mau não abriria a porta para o bom. O bom abriria a porta para o mau e para o bom. 
 
Há portas de vidro, que lhe permitem ver quem está do outro lado, e dependerá de você ser visto ou não. Mas você decidirá abri-la ou não. Há portas silenciosas e portas que rangem mais que roda de carro-de-boi. Há portas secretas, que o levarão para um local exclusivo. Há portas que estão mais para poternas ainda mais secretas, e somente você permitirá a entrada ou a saída. 
 
Algumas portas trazem aldrabas para anunciar a chegada. Outras exigem batidas ou palmas para decidirmos abri-la ou não. Há portas que conservam o “olho-vivo”, permitindo-nos saber se conhecemos ou não quem está do outro lado. Assim, podemos abri-la ou não. Outras portas são tão avariadas que anunciam o outro lado,mesmo fechadas. 
 
Há portas tão eternamente fechadas, ou tão eternamente abertas que quase não são mais portas. São muros ou pontes. Há portas que guardam anjos, há portas que abrigam legiões de demônios. Há portas que se abrem para tudo. Há portas fechadas para quase tudo. Há portas que melhor seria nunca serem abertas. Outras, jamais fechadas. Há portas que guardam abismos, outras descortinam horizontes e prados. 
 
Há portas automáticas, programadas para não terem filtro, permitindo que todos atravessem. Há portas com alarmes. Há portas silenciosas. Há portas que lhe trancam para sempre. Outras se abrem para sempre. Há portas de madeira de lei, de ferro, de aço, de alumínio, de vidro, de inox, de bambu. Algumas pessoas são como portas... .
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Photography: Khaled Flehan.

O segredo das abelhas...

 


O SEGREDO DAS ABELHAS...
 
Uma abelha vive menos de 40 dias, visita pelo menos 1000 flores e produz menos de uma colher de chá de mel. Para nós é só uma colher de chá de mel, mas para a abelha é uma vida! Já imaginou quantas abelhas são necessárias para a produção de um litro de mel? Os meles, sejam quais forem, é um patrimônio sagrado da natureza. Todos são fontes impagáveis de saúde! Some a isso um detalhe precioso: graças às abelhas existem as frutas. São elas que as polinizam...

segunda-feira, 26 de julho de 2021

A decadência da nordestinidade na alma potiguar - A profecia de Câmara Cascudo se cumprindo de outras formas, não apenas no sertão e seridó, mas no Brasil.

 


A DECADÊNCIA DA NORDESTINIDADE NA ALMA POTIGUAR -
A PROFECIA CASCUDIANA SE CUMPRINDO DE OUTRAS FORMAS, NÃO APENAS NO SERTÃO E SERIDÓ NORDESTINO, MAS NO BRASIL.
 
Há 27 sete anos, quando coloquei pela primeira vez os meus pés no Rio Grande do Norte, encontrei praticamente “outro país”. Da mesma forma seria o potiguar fazendo viagem contrária, pois somos países dentro de um país. Por mais que estejamos na nossa pátria, as diferenças culturais variam na linguagem, alimentação, música, nas danças, formas de relações humanas, tradições, nos hábitos etc etc etc. Essa é a maior riqueza do Brasil: suas peculiaridades culturais. Foi exatamente por isso que hoje tenho autoridade para afirmar que percebo com clareza e requintes de detalhes a decadência da nordestinidade na alma nordestina. Não é generalizada, mas o assunto deveria ser amplamente discutido pelas partes competentes, a bem da preservação e revitalização da cultura nordestina.
 
Em 1934 Câmara Cascudo escreveu que haveria um dia que o homem do interior estaria falando igualzinho ao homem da capital, atribuindo esse processo ao fenômeno causado pelo rádio na construção da linguagem. As ondas sonoras acessíveis a todo o estado, levavam o modo de falar do natalense a todos os rincões norte-rio-grandenses. Desse modo espalhavam-se as gírias, os vícios de linguagem, os neologismos, e as sintaxes novas, enfim a “modernidade” de uma linguagem que só existia em Natal, mas que ressoava nas “oiças” do homem do campo lá nos recônditos do sertão e do seridó. Muitas vezes esse homem nem sabia onde ficava a sua capital, mas passava a falar como se ali morasse.
 
Emprego o mesmo raciocínio cascudiano para discorrer sobre uma espécie de decadência da alma da nordestinidade em terras potiguares. Essa decadência está presente em quase tudo. Já é possível enxergá-la na música, na linguagem, na literatura, nos costumes etc. Às vezes observo pessoas que nasceram e cresceram aqui no estado e, a princípio, tenho dúvidas se elas de fato são mesmo potiguares. Não entendam que defendo o engessamento da cultura. Minha observação diz respeito a minuciosa observação sobre mudanças impactantes na cultura norte-rio-grandense, fruto da influência do eixo Sul/Sudeste e de outros países. É um fenômeno impressionante e que se intensifica por influência das mídias, principalmente pelo aparelho celular.
 
Essa desnordestinização está presente na música, na literatura, na linguagem falada, na cultura popular, na dança moderna e folclórica, e numa sucessão de tradições e hábitos, conforme veremos. Quando cheguei ao Rio Grande do Norte, em 1991, recordo-me que trouxe muitas fitas cassetes com músicas predominantemente da minha região. Eventualmente eu pegava o aparelho de som e deixava a música rolar, principalmente aos sábados. Lembro-me que alguns vizinhos me perguntavam que músicas eram aquelas. Uns detonavam, outros achavam interessantes. Não entendiam como alguém podia ouvir Tonico e Tinoco, Almir Sater, Tetê Espíndola, Hermano Irmãos, Chico Rey e Paraná, Dino Rocha, Zé Correia, Tião Carreiro e Pardinho, Elinho, Irmãs Galvão, As Marcianas, Lourenço e Lourival, Milionário e José Rico e outros. Sempre gostei do sertanejo de raiz, rasqueado, o chamamé (que é uma influência paraguaia desde que o MS surgiu na geografia do Brasil), assim como as guarânias.
 
Nascido na terra de Almir Sater, eu não poderia trazer em minhas memórias afetivas o gosto musical por bandas como Forrozão Chacal, Banda Grafite, Ferro na Boneca, Forró do Muído, Impacto Cinco, Terríveis, Cavaleiros do Forró, Colo de Menina, Banda Líbanos, Desejo de Menina, Mala Sem Alça e uma infinidade de bandas e grupos musicais que embalavam o Rio Grande do Norte àquela ocasião. São artistas desconhecidos na minha terra. Mas é óbvio que não há brasileiro que não conheça Luiz Gonzaga, Elba Ramalho, Fagner, Zé Ramalho e uma infinidade de clássicos geniais da música nordestina. Mas me refero às bandas locais (nordestinas) que tocavam dia e noite nas emissoras de rádio potiguares no período entre 1991 a 2000 mais ou menos.
 
Certa vez uma professora perguntou quase se benzendo: “como você consegue ouvir esse tipo de música”? Uma amiga às vezes zombava de mim, dizendo que eu adorava “choradeira e cantor miando”. Ela tinha aversão aos ritmos sertanejos (estou falando do sertanejo dos anos 90 para trás: música de verdade). Na realidade, gosto de todos os estilos musicais. Mas, com relação à música sertaneja, mas, sem dúvida, dos anos 90 para trás. Depois disso surgiu uma coisa indefinida que denominaram “sertanejo universitário”. Hoje, raramente aparece uma pérola no sertanejo! Na realidade, nunca mais vi nem pérolas.
É fato que nos anos 90 quase nenhum potiguar apreciava a música sertaneja de raiz. 
 
Confesso que naquele tempo conheci apenas uma pessoa que gostava (um pouquinho) porque tinha passado um tempo no interior de São Paulo. Atualmente - devido à internet - parece haver uma globalização dos estilos musicais com prejuízo para o Nordeste, salvas as devidas exceções. Não estou generalizando. Digo “prejuízo” porque se um potiguar for ao Rio de Janeiro, a São Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Paraná, Rio Grande do Sul não verá a influência do forró por ali, tampouco sua supremacia. Mas isso ocorre por aqui, onde os potiguares deram uma esquecida do forró de raiz para abraçar o estilo musical sertanejizado. O cantor cearense Wesley Safadão é um protótipo da transição do forró com um misto desse sertanejo universitário e de outros estilos.
 
Luan Santana, meu conterrâneo, iniciou a sua carreira com excelente influência do sertanejo tradicional no Mato Grosso do Sul. Hoje Luan é uma espécie de Wesley Safadão do Sertanejo. Enquanto Weslwy estuprou a nordestinade em sua musicalidade, Luan fez o mesmo com a alma da música sul-mato-grossense. Suas músicas não refletem mais os ares e a alma dos seus estados de origem. Eles não refletem as suas raízes ao Brasil, mas uma indefinição nonsense. É uma nova música. Um novo estilo. E para atender a novidade é necessário negar raízes.
 
Outra figura curiosa do Mato Grosso do Sul é Michel Telló, um artista completo, mas mutante. Para quem não sabe, ele iniciou a carreira no Mato Grosso do Sul, no início da década de 90, numa banda chamada “Tradição”, coisa esquisitíssima. Era um pedaço do Rio Grande do Sul no Mato Grosso do Sul. Havia o predomínio do “Vaneirão”, ritmo gaúcho. Inclusive estudiosos da Cultura sul-mato-grossense o criticam muito pelo fato de ele descaracterizar a cultura sul-mato-grossense, imputando ritmos gaúchos, e hoje, o sertanejo universitário. Depois que Michel Teló se projetou nacionalmente, o sul-mato-grossense até achou bom, pois não o viu tão presente por ali, descaracterizando a música local com uma cultura que não era do Mato Grosso do Sul. Mas nem tudo está perdido. Um exemplo de artista com forte respeito às suas raízes é o genial Almir Sater (dispensa comentários).
 
Mas, retornando ao Rio Grande do Norte, observa-se uma influência maciça da música sertaneja, abrangendo de norte a sul do estado, muito embora se trate de um sertanejo descaracterizado. São poucos cantores potiguares atuais que se inspiram em Luiz Gonzaga (que é uma verdadeira enciclopédia do Nordeste). Suas músicas são poemas belíssimos, que encantam. Conhecer Luiz Gonzaga é conhecer o Nordeste. Sem contar que ele também era um léxico. Distanciar-se de Luiz Gonzaga é distanciar-se do Nordeste. É perder a identidade e assumir identidade alheia. As músicas dessa insigne figura revelam a nordestinidade na sua profusão. Trata-se de uma fonte inesgotável de saberes e tradições do povo nordestino, sem contar suas melodias, seu modo impressionante de se apresentar ao público etc. 

Poucos potiguares se inspiram em Dominguinhos, Waldonys, Fagner, Zé Ramalho, Belchior, Clemilda, Marinês, Dominguinhos, Elino Julião, Alceu Valença, Canários do Reino, Genival Lacerda, Rita de Cássia, Sivuca, Trio Nordestino, João do Vale, Sirano e Sirino, Flávio José e outros. Quais artistas atuais se inspiram ou estudam os forrozeiros potiguares Marcos Lopes, Forrozão cabra da Peste, As Nordestinas, Forró Meirão?

Em outros estilos, quem se inspira nos artistas potiguares Ismael Ismael Dumangue, Donizete Lima, Ademilde Fonseca, Dusouto, Núbia Lafaytete etc etc etc? Não se trata de doutrinação do forró e de outros estilos nordestinos, até porque as pessoas são livres para os seus gostos musicais. 
 
Os estilos musicais são múltiplos e estão em todo o Brasil. Mas me refiro à opção pelo que é de fora e o desprezo pelo que é daqui. O forró, por exemplo, nascido no Nordeste, sofre considerável descaracterização - pasmem! - provocada pelos próprios nordestinos/potiguares. Quando algum mecenas do forró aparece para salvar o forró verdadeiro e a nordestinidade, soa como algo folclórico e até mesmo pitoresco, como se o forró desonrasse. E esse comportamento se justifica com a releitura das palavras de Cascudo, mas numa dimensão incomparavelmente maior e mais impactante, graças às redes sociais, canais fechados de TV, Youtube, enfim uma infinidade de mecanismo que tornam a reflexão de Cascudo fichinha. 
 
O povo potiguar está se permitindo influenciar muito mais pelo que vem de fora do que pelas coisas de sua própria identidade. O forró, que deveria estar presente nos 365 dias do ano, parece mais restrito ao período junino, como se fosse meramente uma alegoria, ou um incremento folclórico. A Rede Globo de televisão só se lembra do Nordeste para dois momentos: promover as festas juninas nordestinas e ridicularizar a imagem do homem nordestino nas novelas (sempre alguém abestalhado ou que sabe pouco).
 
Pouco antes da Pandemia houve uma overdose do estilo sertanejo universitário no estádio Arena das Dunas. Os nomes mais reconhecidos estavam ali. No segundo dia da divulgação do evento, a venda de ingressos esgotou tudo. Dias antes do show. O estádio superlotou. Contam que se formaram “pipocas do sertanejo” do lado de fora do estádio, numa quantidade quase igual aos que estavam dentro do show. No palco estavam Maiara e Maraísa, Marília Mendonça, Jorge e Mateus e muitos outros. Isso não seria questionável se até hoje, na história do Rio Grande do Norte, nenhum show com artistas nordestinos gerasse esse público maciço.
 
Questionável ou não?
 
Não entendam que estou afirmando que o forró deve ficar enclausurado dentro do Nordeste e vice-versa. Mas saibamos, por exemplo, que no Rio de Janeiro e São Paulo o forró é encontrado em pontos específicos, como fazem os CTG’s. O forró não toca nas emissoras de rádio nem vive nas televisões locais, exceto em momentos peculiares. Vá ao Rio Grande do Sul e veja se eles permitem a desgauchização. São quase bairristas. Primeiro a cultura deles. Depois as influências externas, desde que não sobrepujam os gauchismos. O que é de fora é enxergado como efêmero de cara. Vá ao Pernambuco e verifique se o “Axé” invadiu o seu Carnaval. Nunca. Primeiro o pernambucanismo! Com predomínio para o frevo. Agora olhe o Carnatal local. É a Bahia no Rio Grande do Norte! E agora entrou o sertanejo universitário. Não seria melhor se tivesse entrado Marcos Lopes ou Waldonys - essência do Nordeste - já que atualmente os organizadores estão abrindo a festa para outros estilos? Desculpe a expressão (que inclusive nunca usei em texto algum, mas isso é burrice; digo isso porque não existe acepção melhor). 
 
O Carnatal atrai gente de diversas partes do Brasil. Não seria o momento exato de dar uma palhinha da Nordestinidade do nordestino? Mas nem isso a organização dá conta. Não há uma identidade local. O Carnatal já nasceu sem a cara potiguar, mesmo tendo à disposição músicos e sambistas potiguares respeitáveis. Quando criaram o Carnatal, deveriam ter colocado como critério primordial e instransferível elevar a cultura musical potiguar dentro da característica do Carnaval, mesmo que trouxessem material de fora. Mas que a “potiguarânia” predominasse. 
 
Que tal pensar com sotaque mais nordestino? Finalizando, esclareço que, como educador, reconheço que o fenômeno aqui abordado não é generalizado, obviamente, mas é uma corrente muito forte. E não parece estar restrito apenas ao Rio Grande do Norte. O rádio que falou Cascudo, hoje é o aparelho celular e as mídias de alcance nacional.

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domingo, 25 de julho de 2021

Os trajes de antigamente em Natal, Rio Grande do Norte

 


Em 1995 o poeta Sanderson Negreiros contou-me que Câmara Cascudo já escrevera sobre o clima mais ameno da Natal de seu tempo. Segundo ele, depois das dezoito horas nada se comparava ao que vimos hoje, seja no inverno ou verão. A brisa era ainda mais deliciosa. As noites caiam incomparavelmente mais frias, e as próprias tardes de sol não jaziam tão quentes. Essa informação justifica o que se vê nas fotografias antigas de Natal do início do século XIX.
 

Habituado a apreciar imagens da “Terra do Sol” do início do século passado, costumo esquadrinhar detetivelmente cada registro que encontro, pois isso me ajuda a montar quebra-cabeças. Olho tudo, tentando ler a Natal do tempo do Coronel Cascudo, Ferreira Chaves, Alberto Maranhão, Inês Barreto, Lucy Garcia etc. E nesses passeios oculares, observo que o povo se vestia muito bem. Até mesmo os pobres. Por “muito bem” entendam a forma composta e obviamente a questão da elegância para os abastados. Predominava a cor branca. Não existia short para adultos, nem para homem, nem para mulher (exceto para praia). Das carnes humanas da mulher, só se viam o rosto, os braços e as pernas (do joelho para baixo). No homem, só o rosto e as mãos. Assim são vistos os registros entre 1914 a 1945. Dias de desfiles cívicos, chegada de autoridade e eventos afins arrastavam pessoas com suas melhores roupas. 
 
Carnaval em Natal: tinha bebida, tinha lança-perfume (na mão do homem de xadrez), tinha alegria e tinha roupa.

Acreditem e pasmem: até no Carnaval ninguém via ninguém nu!
Não estou fazendo juízo de valor, até porque pudor é algo muito pessoal. Uns tem demais, uns, mais ou menos, outros não têm. E não me digam que “antigamente não era assim”. Claro que era, sem tirar nem pôr. A diferença era apenas a quantidade de pano e hipocrisia. Numa das fotografias que ilustram este texto, tomada na rua “Dr. Barata”, no velho bairro da Ribeira, nos anos 40, exemplifica muito bem essa informação. Excetuando os soldados norte-americanos em alguma diligência, vê-se cidadãos potiguares trajando predominantemente ternos branco, e isso dá pano pra manga.
 

Branco é a cor que esfria o corpo para quem se expõe ao sol, portanto muito pertinente esses figurinos forrando os físicos do povo da terra que é “noiva do sol”. E todos na fatiota! Há fotografias da Natal de 1914 a 1920 cujos edifícios e pessoas congelados no tempo parecem estar na França, ou em qualquer país da Europa, justamente pelo hábito de copiarmos tudo o que vem de fora. As mulheres potiguares ricas, sempre mais cuidadosas com a moda, mandavam vir do Velho Continente, em especial da terra da Torre Eifel, os mais belos figurinos desenhados pela alta costura. Com direito a ornamentos de cabeça, chapéus, sombrinhas e outros requififes. Até calçavam luva e meia-calça! Algumas lojas locais possuíam mostruários de roupas de crianças e adultos. Era olhar e encomendar. Depois de receber, era ostentar “veio da França”. Vir da França era como se vir da caixa da riqueza e da beleza. 
 

Percebe-se ser impossível o uso de tanto pano hoje, numa Natal que parece ter uma fogueira no céu. Essa constatação alimenta a informação contada por Sanderson Negreiros sobre a temperatura do passado. Com certeza era muito mais amena. Nos dias de hoje, que executivo trabalharia o dia inteiro num prédio da Ribeira, meramente ventilado pelo vento atlântico, por via das janelas? 
 

As velhas imagens contam muito mais. Veem-se crianças engraxates vestidas com calças brancas e camisas de manga comprida, descalças ou não. Que menino – nas mesmas condições - vestiria isso hoje? Há flagrantes de mulheres simples, em trânsito, com vestidos ou saias escorridas abaixo do joelho. Todas em roupa de mangas. Muito lenço de cabeça. É nítida a intenção de resguardar mais o corpo. Que mulher simples se vê, hoje, nesses trajes?
Até mesmo as prostitutas se vestiam de maneira que seus corpos estivessem mais cobertos. Nesse aspecto, puta não diferia em nada das mulheres consideradas “de família”. Exemplo claro pode ser visto nas fotografias do “Cabaré de Maria Boa” e do “Wonder Bar”, cujas prostitutas – a comparar com o hoje – se vestiam mais que muitas moças de família atuais, apesar de que roupa não define nem caráter, nem decência, como sabemos. As imagens falam por si. Contemplando fotografias de pedreiros trabalhando na construção da Base Aérea norte-americana (década de 40), constata-se homens vestindo calça comprida com cinto, camisa de manga ou não, sapato e chapéu. Quais pedreiros exerceriam a sua função nesses conformes nos dias atuais?
 

Outro detalhe interessante são os acessórios. O chapéu era peça obrigatória para ricos e pobres. Servia para amenizar o calor sobre os cabelos pretos, que tão fortemente absorvem a quentura do sol, portanto os chapéus de palha ou de feltro em cores claras cumpriam refutar o sol. Era para todo potiguar usar chapéu, diga-se de passagem! Aproveitando essa peça, boa parte dos homens apelavam para a moda, combinando o chapéu com o terno, ou com a camisa. Gravata também era muito comum. Elas passeiam em boa parte desse velho álbum fotográfico de Natal. assim como lenços deixados aparecer no bolso do paletó ou camisa de manga comprida (a cor sempre descombinava com o terno: preto/branco-branco/preto). Também havia predileção pelo “caqui” (bege fechado). Esse detalhe último me foi dito por meu pai, que adorava essa cor.
 

Embora os dias atuais têm suas modas, os dias antigos eram mais compostos e refinados, mais românticos, mais charmosos, pois há até mesmo o uso de bengalas. Elas não cumpriam a função atual – de ajudar a andar – mas complemento do refinamento. Requisito de elegância e charme. Talvez só quem não se preocupou com o uso elegante de bengala tenha sido Charlie Chaplin (mesmo assim é um encanto!). Moda pura! O modo composto e charmoso de se vestir era para todos os ambientes naquele tempo. Hoje, é mais visto nas festas de formatura, em casamentos. Exceto isso, mais nada. Nem em enterro, ocasião em que as mulheres usavam a mantilha (espécie de véu preto).
 

Outro detalhe bastante interessante nesses meus esquadrinhamentos imagéticos diz respeito à sapataria. Vê-se muitos homens e mulheres calçando sapatos brancos ou de duas cores (branco e preto). Aos homens se reservam também as abotoaduras, relógios de bolso e a caixinha de rapé guardadinha no bolso (Rapé - para quem não sabe - é pó resultante de folhas de tabaco torradas e moídas, por vezes misturadas a outros componentes, especialmente aromáticos, usados para inalação, e que provoca espirros). 
 
Ribeira

Aqui em Natal, conheço o professor Severino Vicente, presidente da Comissão Nacional de Folclore, que onde vai carrega a sua latinha. Nunca vi em mais ninguém, com tal hábito, embora existam outros apreciadores. Há rapés requintados à venda (até internacionais). Mas dizem as más línguas que bom mesmo é o da feira do Alecrim.
 

O se vestir composto era algo tão natural que, até mesmo as mulheres “lavadeiras de roupas” trajavam vestidos, cada qual na sua pedra, enfiadas nos rios e nos olhos d’água espalhados por quase toda a Natal, hoje enterrados debaixo das chamadas “torres”. E por falar nisso, há poucos anos, passando pela estrada que liga São José de Mipibu e Nísia Floresta, à altura do rio Mipibu, eis que se descortina um imenso varal úmido e colorido, se divisando com lençóis multicores “quarando” sobre o mato. Eram lavadeiras de roupas. Elas trajavam bustiês e shorts sumários. Esbanjavam sensualidade. E não estavam erradas! Aproveitavam para se bronzear enquanto trabalhavam.
 
 
Pois bem, eis que bisbilhotando os velhos acervos natalenses, estampados aos montes em domínio público, encontro esses diálogos interessantes. Não defendo a volta da roupa quente, abafada e inconveniente ao clima nordestino, nem é esse o objetivo do texto, mas a compostura e a elegância são coisas que não morrerão jamais. Creio que isso seja a verdadeira moda! 
 
Maria Boa

Há três anos, indo ao MS, fiquei duas horas no Aeroporto Viracopos, em Guarulhos. Uma senhora brasileira aguardava voo para o RS ao lado da filha. A mulher morava há 23 anos em Berlim, Alemanha. Começamos a conversar. Ela disse que suas 3 filhas, nascidas e educadas naquele país, preferiam o país de Goethe ao Brasil, e não gostavam do modo de se vestir das brasileiras, nem do comportamento. Fiquei triste com isso, mas ela me narrou com muita verdade e sensatez. Não era exatamente um juízo. Obviamente que no contexto de nossa conversa, entendi claramente o que a mulher quis dizer, até porque não se generaliza. Mas é isso... a conversa sobre o modo de vestir dos natalenses do passado realmente deu pano para manga... tanto é que já saltei para fora do Brasil...
 
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Maria Boa, prona para o Carnaval, e com umlança-perfume na mão.

 

 

sábado, 17 de julho de 2021

Memória de São José de Mipibu - Casa de Câmara e Cadeia - Um registro de Mário de Andrade - 1928

 


Como todos sabem, Mário de Andrade fez um "tour folclórico" pelo Norte e Nordeste do Brasil, encampado pelo "Ministério da Cultura de São Paulo". Isso se deu nos primórdios da etnografia brasileira. Foi um amplo trabalho de registros audio-visuais. Riquíssimo. Em 1928 andou por terras potiguares percorrendo diversos municípios, colhendo as informações mais substanciais sobre o folclore de cada lugar: pessoas de destaque, expressões contidas nas danças, linguística, alimentação, artesanato, enfim hábitos e tradições de toda espécie. Fazia um apanhado da Cultura do povo. A caminho de Goianinha, onde visitaria o mestre "Chico Antonio", (1904-1993), o maior expoente do coco de embolada (tradição sonora da cultura popular nordestina), passou em São José de Mipibu e findou clicando essa bela construção. Mario estava paramentado com as mais avançadas tecnologias daquela época. O prédio era a Casa de Câmara e Cadeia da localidade. Ficava quase defronte à Igreja Matriz de Santana e São Joaquim, uma das poucas única testemunhas que restaram até hoje. Pena! Seria um dos raros municípios brasileiros a contar com esse tipo de construção. 
 

 
O prédio funcionava como uma conglomerado de serviços: presídio (nesse tempo, eram poucos os "meliantes": só ladrões de galinha e revolucionários), Câmara de Vereadores e Delegacia. Se fosse hoje, estaria abarrotada de gente que é contra o Sistema, todos 'presinhos da Silva', a mando desse Desgoverno Federal. São José de Mipibu é um museu a céu aberto. Uma das cidades mais ricas em história, berço de fatos importantíssimos. Mas parece que alguns não dão valor a isso, principalmente algumas autoridades. A derrubada da Casa de Câmara é Cadeia é um dos maiores crimes contra o patrimônio histórico do Rio Grande do Norte. Não era um prédio de herdeiros (já que muitos herdeiros acham normal demolir). Mas nada justifica esse crime contra a História. O prédio estava intacto. A estrutura era de ferro, mas as autoridades da época achavam feio. Ainda bem que o genial Mário de Andrade andou por aqui. Do contrário, não existiria nem a fotografia, já que essa é a única que dá um close na arquitetura. 
 

 
Lastimável esse nosso Brasil de pessoas desmemoriadas e desmioladas. Falta civilidade. É duro saber que - pasmem - algumas autoridades se ofendem quando um grito de protesto é lançado em defesa do Patrimônio Histórico. É um problema de Educação e Cultura. Temo pelo que restou. Não vejo muito interesse. Ultimamente está na moda vidro, inox, alumínio, concreto armado. As pessoas sem formação acham bonitinho.
OBSERVAÇÃO: Na fotografia postada, vê-se Mário de Andrade, de boné. O rapaz é Chico Antônio.

 

sexta-feira, 16 de julho de 2021

Qual a relação da pintura "O grito do Ipiranga" com "1808 Friedland?"? Plágio ou a mesma ótica dos diários europeus do século XIX?

 
Desde criança conhecemos essa bela e épica ilustração nos livros de História do Brasil (A primeira). É a reprodução de uma imensa tela pintada pelo genial pintor nordestino José Américo, cujo nome é “O Grito do Ipiranga”. Curiosamente, ainda nos tempos da Universidade, estudando História da Arte, surpreendi-me quando o professor apresentou as duas telas e fomos estudá-la. Vi que durante anos fui - fomos - enganados. Ou quase isso... Hoje, aproveitando a Quarentena, trouxe o assunto à baila, pois com certeza ainda existem muitos que, iguais a mim passaram anos sem saber.
 

 
Todos nós sabemos tintimportintim o que ela retrata, graças aos nossos velhos professores. Vou comentar apenas a questão do impacto visual. A ilustração é uma alegoria de tudo o que é positivo, numa matemática perfeita. Ao centro um homem muito bem apessoado, segura uma espada em riste. É D. Pedro II. Ele monta um lindo e imponente cavalo puro sangue, e dispensa comentários. Cheio de caras e bocas, dá o famoso grito “Independência ou morte!”. Está rodeado de soldados que trajam vestimentas impecáveis, embelezando ainda mais o cenário. 
 
No lado esquerdo, um trabalhador conduz uma junta de carros-de-boi cheia de toras de madeira de lei. Certamente o homem passava por ali e findou pincelado pela história para todo o sempre. Ele não estava só. Percebe-se que o local era uma vereda e tinha certa movimentação, a julgar pelos demais elementos mostrados pelo artista. São Paulo ainda era cercada de mata nativa, portanto de seus ventres escorre o rio Ipiranga. Vê-se à direita uma casinhola de taipa, cujos paulistas chamam “adobe”, ou “pau-a-pique". 
 
Pois bem, a pintura retrata coragem, garra, audácia, otimismo e mudança para um novo tempo. Ela impressiona pelas pinceladas e o seu aspecto fotográfico, revelando a genialidade de seu autor. Mas teria sido, de fato, desse jeito? Havia todo esse positivismo? Havia Positivismo em seu sentido de doutrina filosófica como era tão comum àquele tempo? Veremos isso mais adiante. Agora quero explicar acerca da pintura intitulada “1807 Friedland” (a segunda pintura, abaixo da primeira). Ela foi pintada pelo famoso artista francês Jean-Louis Ernest Meissonier. 
 
Nessa tela o também extraordinário pintor Jean-Louis retrata Napoleão Bonaparte e todo o seu estado-maior prestando continências e deferência ao regimento dos Curaceiros, poucos minutos antes da Batalha de Friedland. 
 
Observe que ela é quase igual, e engana a muitos. Se as crianças e jovens não prestarem a devida atenção, poderão cometer a imperdoável gafe de a apresentarem num trabalho escolar, em substituição à tela “O Grito do Ipiranga”. É até universitários, diga-se de passagem.
 
Vejo isso como plágio, embora alguns enxergam como "material de inspiração". Pode ser, afinal alguns preferem ser mais elegantes, ou se enganar, ou enganar os outros. Falei lá em cima sobre a Doutrina do Positivismo. Sabemos que o Positivismo trazido da Europa impregnava tudo, inclusive a Bandeira Brasileira e tantas coisas mais. A lógica era autenticidade e retratação da verdade nua e crua. Mas não foi o caso da tela “O Grito do Ipiranga”. Se nós recorrermos aos alfarrábios da verdade, verificaríamos que a tela teria de ser muito diferente. Não diria “feia”, mas verdadeira. Faltou verdade na tela. 
 
“O Grito do Ipiranga”, pintado em 1888, treze anos depois do quadro “1807 Friedland”, não diminui em nada o extraordinário brilhantismo do nosso famoso pintor paraibano. Ele era um gênio. Impecável. Romântico, inclusive. Mas romantizou tanto que alegorizou. Idealizou. Penso que é justamente por ele ter sido esse pintor monumental que deveria ter retratado o fato como ele ocorreu, sem mentir no pincel. 
 
Pedro Américo vivia na Itália, cercado da nata artística do Velho Mundo. Quando foi convidado para criar tal pintura, viajou ao Brasil e conheceu toda a região onde o fato se deu. Grandes artistas devem fazer exatamente isso. Mas na hora de pintar, fantasiou. Ele pintou a tela na Itália, onde foi inaugurado antes de ser trasladado para o Brasil.
As Artes Plásticas têm o poder da liberdade. Talvez seja a mais livre das expressões artísticas. Ela permite a criação, a deformação, o surreal, a dúvida, a retratação... ela confunde os sentidos etc. Mas nesse caso, creio que D. Pedro tenha solicitado uma tela que retratasse o real. Ou não? 
 
Pois que bem. Mas como de fato deveria ter sido a tela de Pedro Américo? Isso já é perguntar demais. Vamos começar pela DIARREIA: fatalmente o nosso Dom Pedro estava acometido de uma deplorável desinteria justamente no momento do grito “Independência ou Morte!”. Ele apeou inúmeras vezes do animal para espirrar líquidos intestinais sobre pobres formigas desavisadas. E num tempo que papel higiênico não era comum ao Brasil, com certeza machucou muito o “fiofó”, esfregando certamente folhas de “velame” (folha que substitui o papel). Resumindo: o pobre imperador não tinha condições de se mostrar tão imponente, tampouco teria energia suficiente para o famoso grito. 
 
E de onde Pedro Américo tirou aquele IMPONENTE CAVALO puro sangue? Com certeza dos tantos que ele via na Europa, pois aqui só existiam jegues, jumentos, mulas e uma tropa equina desses conformes para menos. Com certeza ele retratou os gigantescos cavalos “Lipizzano”, típicos da Itália alguns países vizinhos. Impensáveis para o Brasil!
 
Na ocasião que ele veio ao Brasil para contemplar a região do rio Ipiranga, a topografia era completamente diferente. Havia mata nativa, cortada por muitas veredas e poucos descampados. Toda a área era de varjões e ribanceiras. Nada lembrava o CENÁRIO que ele retratou. Havia se passado muito tempo do grito do Ipiranga. A paisagem estava mudada, mas nem de longe ela lembra como de fato foi no dia do grito. 
 
A COMITIVA que acercava D. Pedro I era de menos da metade da que se vê na tela de Pedro Américo. Aquele acontecimento não combinava com aglomeração de muitas pessoas, pois foi um encontro casual. Não havia razão alguma para o Imperador estar com um grande séquito no meio do mato. 
 
Para finalizar a explicação sobre a alegoria impregnada ao quadro “O Grito do Ipiranga”, pasmem - ninguém usava UNIFORME/FARDAMENTO algum, e sim, roupas normais para aquela época. Como usar fardas se ainda não haviam sido pensadas? Curiosamente, uma das contribuições mais originais de Pedro Américo para o Brasil, além dessa magnífica pintura, é ter desenhado – sem querer – o figurino que se tornou o uniforme dos “Dragões da Independência” (aqueles que desfilam no dia 7 de setembro em Brasília, e fazem guarda ao palácio do Planalto e Palácio da Alvorada). Ou seja, ele nunca imaginou que tal figurino fosse o resultado mais genuíno de sua obra. Vejam como as coisas são interessantes!
 
Muito tempo depois, Pedro Américo foi questionado sobre isso. Ele, ao seu modo, explicou sua imprecisão. Disse o que todos artistas sabem. Ninguém precisa ser necessariamente fiel à História quando produz Arte. Porém, de certo modo, é estranho, pois ele criou uma obra por encomenda, portanto deveria ter sido fiel aos fatos, mesmo criando um cenário imaginário. Alegou que teve a intenção de dar notoriedade ao evento a partir de sua beleza imagética, mostrando pessoas bem vestidas, animais imponentes, cenário agradável etc, para impressionar e arrastar um tom épico de coragem e audácia. Para ele, isso se casa melhor quando se conta a História, quando se vê o quadro. 
 
Américo alegou também que a obra levava os brasileiros a sentirem orgulho, inspirando-se em homens notáveis. Para ele não ficaria bem retratar um homem alquebrado pela diarreia, montado um jegue ou mula esquálida às margens de um rio tomado por uma floresta. E repleto de uma homarada mambembe o guarnecendo. A presença de pessoas comuns na localidade transmitia o prenúncio da urbanidade que se desenhava no Brasil. 
 
Na realidade o genial pintor fez alegações muito interessantes. Tão interessantes que impressionam (convém o leitor pesquisar em estudos sérios), mas particularmente enxergo isso como a criação de mais um engodo para o povo brasileiro que foi tão acostumado a isso. 
 
A tela “O Grito do Ipiranga” foi pintado na Europa. Sua inauguração deu-se na Itália, cujo artista se viu cercado por D. Pedro e a aristocracia europeia. Pessoas de extremo bom gosto, acostumadas a tudo de mais fino e requintado na música, na pintura, no teatro, na ópera, na escultura enfim. Suponho que ele não quis receber o deboche de muitos. Particularmente entendo que o próprio D. Pedro I deu as coordenadas também sobre como seria conveniente o quadro. Obviamente a pintura teria ficado engraçada. História é isso? Arte, sim, é isso!
Para mim, Pedro Américo foi um artista!
 
Finalizando, me lembrei da nossa também genial Nísia Floresta Brasileira Augusta. Ela detestava a imagem deturpada que os europeus registravam em passeios e estudos pelo Brasil. Eles tinham a mania de mostrar no Velho Mundo um Brasil inventado, assim como fez o nosso Pedro Américo em seu “Grito do Ipiranga”.

 

sábado, 3 de julho de 2021

De quais doenças morriam antigamente o povo de Papary?

 

DE QUAIS DOENÇAS MORRIAM ANTIGAMENTE O POVO DE PAPARY?


      Já imaginou alguém morrer de “estopôr”? E “bucho inchado”? Essas denominações fazem féretro aos antigos livros de óbito da velha Papary, hoje Nísia Floresta, cidade integrante da Região Metropolitana de Natal, estado do Rio Grande do Norte..
     Em 1994 iniciei uma pesquisa nesse material, compreendendo o período de 1944 a 1969. Embora tenha transcrito detalhadamente todos os dados, ainda não organizei os textos conforme pretendo, pois quem tem mania de lidar com papéis velhos está sempre mexendo, como quem varre, cisca e limpa um terreiro. É um lapidar eventual. Trabalho minucioso e de certa complexidade. Os profissionais registravam como “causa-mortis” muitos nomes que me são estranhos e certamente poderiam sê-los ao leitor. Alguns eu já os decifrei. Outros estão a caminho.
     Como exemplo tem-se “estopôr”, colerina, pancada, “bucho inchado”, “enflamação”, “bixiga”, “fraquesa”, “idrofizia”, “crupé”, “ferida”, “impigi”, “dor umbigo”, “cerose pétrea”, enfim o rosário de causas e complicações que levaram o povo para morar eternamente na terra do pé junto dão uma tese de doutorado, pois se amontoam um cipoal de palavreados por vezes esdrúxulos e alguns pitorescos. Confesso que às vezes rio rios de risadas, me desculpando com os mortos pela gafe, mas é de fato engraçado. O registrador fê-los de uma forma claramente empírica, em que o senso comum prevaleceu.
         Quase cem por cento das mortes se deram em Papari. Uma quantidade ínfima de moribundos foram levados para morrer em Natal e São José a partir de 1963, quando certamente as estradas e as logísticas eram melhores - cujos falecidos teriam condição financeira propícia para procurar outros recursos - davam-se esse “luxo”. Naquele tempo tudo era mais difícil.
          No caudal dos finados prevaleceu alta mortalidade infantil, supostamente decorrente das condições mais difíceis de acesso a médicos, dentre outras suposições pertinentes. Em contrapartida, houve verdadeiros prodígios de longevidade, como a senhora Rosaria Cassimira da Silva, filha de “Pessôa”, falecida aos 118 anos, em Golandi, e João Manoel Nascimento, falecido aos 116 anos, viúvo de Joana Januária de Carvalho, residente no Porto. Os registradores algumas vezes pecaram nos registros de alguns óbitos, desse modo houve morto que morreu apelidado da mesma forma como viveu, ou meramente foi registrado apenas o primeiro nome. Da mesma forma os nomes dos pais. Isso dificulta um aprofundamento de pesquisa.
          O meu cortejo sobre sobre esse papeis permeados de ácaro e uma espécie de talco preto - resquício do tempo - permitiu-me constatar as mais impensáveis observações, desde cruzamento de galhos genealógicos, tendências de determinadas famílias habitarem em determinados povoados (geografização de sobrenomes), equívocos com relação a nomes de doenças e complicações decorrentes de determinadas doenças, nomes populares usados como “causa-mortis”, mortes por suicídio, assassinatos de pai e filho no mesmo dia, enfim o material dá margem para muito estudo (é exatamente por isso que, mesmo tendo chafurdado durante 25 anos sobre tais papeis amarelecidos, não os considero vencidos... são indomáveis e estimulantes ao pesquisador meticuloso). Esse povo morreu há anos e sobrei sozinho em seus enterros, tentando desenterrar informações...
      HÁ CASOS CURIOSOS COMO:
      Maria do Socorro, falecida no dia 13 de junho de 1950, aos três meses, filha de Maria Nair do Nascimento, moradora no centro, tendo como causa-mortis “sarna recolhida”. O que seria exatamente “sarna recolhida”? O que explica uma morte por sarna? O que justificaria alguém deixar um bebê ser tomado por sarna?
      Percebe-se que durante muito tempo Nísia Floresta foi uma cidade predominantemente católica. Há uma forte identificação católica nos nomes e sobrenomes, por exemplo: Josefa Francelina de Carvalho, falecida aos 83 anos de idade, no dia 4 de fevereiro de 1967. Viúva de José ARCANJO Nobre. Filha de Joaquim ARCANJO Nobre e MARIA BRASILEIRA DO AMOR DIVINO DO ESPÍRITO SANTO, moradora no Porto. Causa mortis: ignorada.
      José Marques de Carvalho, falecido aos 24 de maio de 1947, aos 73 anos, viúvo. Filho de Matias Marques de Carvalho e Maria Justina do ESPÍRITO SANTO. Causa: Ignorada. Morava no centro. Há muito sobrenomes “Espírito Santo”. Desse modo, vê-se Maria dos Rosário, Maria das Graças, Maria do Perpétuo Socorro, Maria do Carmo etc.
     A senhora Maria Florinda Ribeiro, faleceu aos 105 anos, viúva de Antonio Ribeiro, residente no Monte Hermínio. Durante 28 anos de registros, nenhum funcionário escreveu o local “Alto Monte Hermínio”, mas sempre “Monte Hermínio”, confirmando a inexistência da instigante redundância. Se é um monte, é alto; se é alto, é um monte, portanto é redundante dizer “Alto Monte Hermínio”. Tal morte se deu no dia 31 de março de 1953. Todas as pessoas que morriam nessa faixa etária alegavam como causa mortis “velhice”, mas nesse caso, escreveram “ignorada”.
     Joaquina Maria da Conceição, aos 101 anos de idade, solteira, filha de Joaquim Arcanjo Nobre e Maria Brasileira do Espírito Santo. Causa Mortis: paralitica. 7 de novembro de 1954. O que chama a atenção nesse caso é a “causa-mortis” e o nome da falecida. Seu nome seria uma homenagem à escritora Nísia Floresta Brasileira Augusta?
     Isabel Leopoldina, faleceu aos 84 anos de idade, viúva de Manoel Elizio de Oliveira Barros, no dia 17 de setembro de 1955. Causa: “Paralisia”. Há muitos registros de “paralítica” (que não é uma causa, mas uma condição) e “paralisia”. Certamente não é paralisia que conhecemos hoje.
     Em alguns casos de “natimorte” (natimorto), omitia-se o nome da criança, apenas registrava os nomes dos pais e data. “Natimorti”, filha legítima de Francisco Roza e Maria Georgina Rosa. Dia 21 de abril de 1955. Teriam permanecido pagãs? Isso é estranho a uma Papary quase cem por cento católica.
      Francisco Assis de Carvalho, faleceu aos 16 anos de idade, filho de Pedro Marinho de Carvalho e Luiza Neomizia de Carvalho. Dia 4 de setembro de 1956. “Provimento de um tiro casual”. Está literalmente escrito que ele morreu no hospital do centro. Onde era o hospital central nessa época? É o prédio da antiga maternidade?
     Às vezes informavam como lugar da morte “Nísia Floresta”. Certamente refere-se ao centro da cidade, como se os lugarejos e distritos não se situam na área de Nísia Floresta.
     Os nomes eram mais aproximados às nossas raízes portuguesas: Joaquim, Manoel, Antonio, Pedro, Maria, Catarina etc. Apenas no final de 1963 começam a aparecer nomes diferentes. Como sabemos, nomes tem um ‘quê’  de moda, como veremos adiante.
     Morte por “estopor”, ou “istupô”, predominou em pessoas adultas, salvo um caso: Severina Paulina Araújo, aos 3 anos, filha de Cícero de Araújo e Maria Paulina de Araújo, no dia 12 de abril de 1965. Moradora no centro.                Conversando com gente antiga de Papari, entre 1993 a 1996, descobri que esse nome denotava uma espécie de congestão devido a pessoa ter comido algo muito quente e forte e em seguida mergulhado no rio ou tomado banho frio. É uma espécie de choque térmico. A senhora Natália Gomes, 90 anos, de Tororomba, uma das pessoas a me explicar o  “estopô”, narrou um fato ocorrido naquela localidade: um rapaz se empanturrou de “liguento” (pergunte a sua avó o que é isso) e em seguida mergulhou no rio, começou a se bater e afundou morto. Mas o que explica “istupô” em uma criança de 3 anos?
     Os nomes femininos se diferenciavam muito dos atuais, sempre numa linha bem lusitana, como: Neomísia, Rogaciana, Felismina, Cassimira, Francelina, Leopoldina, Simplícia, Catarina, Estefânia, Deodora, Jeorgina, Cantanila, Geminiana, Elita, Leocádia, Josefa, Josefina, Alcina, Petronila, Minervina, Matilde, Abigail, Yolanda, Joaquina, Florinda, Albertina, Gasparina, Elvira, Bernardina, Anália, Domitila, Cacilda, dentre outros. Nomes belos, mas que aos olhos atuais, causam estranheza.
     Os nomes masculinos nesse padrão eram: Ormiro, Jerônimo, Hermógenes, Cândido, Berto, Sarafim, Otaviano, Américo, Feliciano, Joaquim, Laurentino, Firmino, Celestino, Rozendo, Deocleciano, Adauto e outros expostos acima.
     Todos os registradores não acentuavam os nomes do morto, da localidade, da doença, enfim. Falando em localidade, é possível supor a inexistência de cemitérios em alguns povoados, pois há registros de mortos de outras regiões do município, como “Oleira”, “Sítio Viração”, “Sítio Alecrim”, “Passa-e-Fica”, “Santo Alberto”, “Ponta Funda”, “Propriedade do Sousa”, dentre outros. Sobre “Santo Alberto”, um documento datado de 1847 informa essa localidade após a Ilha. Na realidade era um dos rios que escorriam para a lagoa Papari, cujos viveiros chafurdaram tanto que até isso mudaram.
     Ter participado desse “velório histórico”, inclusive de gente morta há mais de 80 anos, permitiu-me pontuar uma pluralidade de outras pesquisas, entendendo mais os caminhos, topônimos etc. Em breve estarei postando-as no meu blog e avisarei aos que apreciam coisas velhas.
     Os registros se iniciam no período de gestão do prefeito Américo Carvalho, perpassam por José Ramires da Silva e se encerram no prefeito Wilson de Oliveira. LUÍS CARLOS FREIRE, 2011.