ANTES DE LER É BOM SABER...

CONTATO: (Whatsapp) 84.99903.6081 - e-mail: luiscarlosfreire.freire@yahoo.com. Este blog - criado em 2008 - não é jornalístico. Fruto de um hobby, é uma compilação de escritos diversos, um trabalho intelectual de cunho etnográfico, etnológico e filológico, estudos lexicográficos e históricos de propriedade exclusiva do autor Luís Carlos Freire. Os conteúdos são protegidos. Não autorizo a veiculação desses conteúdos sem o contato prévio, sem a devida concordância. Desautorizo a transcrição literal e parcial, exceto breves trechos isolados, desde que mencionada a fonte, pois pretendo transformar tais estudos em publicações físicas. A quebra da segurança e plágio de conteúdos implicarão penalidade referentes às leis de Direitos Autorais. Luís Carlos Freire descende do mesmo tronco genealógico da escritora Nísia Floresta. O parentesco ocorre pelas raízes de sua mãe, Maria José Gomes Peixoto Freire, neta de Maria Clara de Magalhães Fontoura, trineta de Maria Jucunda de Magalhães Fontoura, descendente do Capitão-Mor Bento Freire do Revoredo e Mônica da Rocha Bezerra, dos quais descende a mãe de Nísia Floresta, Antonia Clara Freire. Fonte: "Os Troncos de Goianinha", de Ormuz Barbalho, diretor do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, um dos maiores genealogistas potiguares. O livro pode ser pesquisado no Museu Nísia Floresta, no centro da cidade de nome homônimo. Luís Carlos Freire é estudioso da obra de Nísia Floresta, membro da Comissão Norte-Riograndense de Folclore, sócio da Sociedade Científica de Estudos da Arte e da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Possui trabalhos científicos sobre a intelectual Nísia Floresta Brasileira Augusta, publicados nos anais da SBPC, Semana de Humanidade, Congressos etc. 'A linguagem Regionalista no Rio Grande do Norte', publicados neste blog, dentre inúmeros trabalhos na área de história, lendas, costumes, tradições etc. Uma pequena parte das referidas obras ainda não está concluída, inclusive várias são inéditas, mas o autor entendeu ser útil disponibilizá-las, visando contribuir com o conhecimento, pois certos assuntos não são encontrados em livros ou na internet. Algumas pesquisas são fruto de longos estudos, alguns até extensos e aprofundados, arquivos de Natal, Recife, Salvador e na Biblioteca Nacional no RJ, bem como o A Linguagem Regional no Rio Grande do Norte, fruto de 20 anos de estudos em muitas cidades do RN, predominantemente em Nísia Floresta. O autor estuda a história e a cultura popular da Região Metropolitana do Natal. Há muita informação sobre a intelectual Nísia Floresta Brasileira Augusta, o município homônimo, situado na Região Metropolitana de Natal/RN, lendas, crônicas, artigos, fotos, poesias, etc. OBS. Só publico e respondo comentários que contenham nome completo, e-mail e telefone.

segunda-feira, 26 de junho de 2023

Estelo de Mipibu, arquiteto e engenheiro nas artes plásticas...

Estelo em seu quarto-ateliê, envolvido pelo colorido de suas obras.

Creio que, algumas vezes, a fatalidade acontece em nossas vidas para depois revelar algo bom. Essa parece a experiência do artista mipibuense Estelo. Ainda criança ele se viu vitimado por uma doença grave em sua ossatura. Ela o acompanharia para sempre e em decorrência disso ele teve a oportunidade que o tornaria imortal, colocando-o no panteão das artes plásticas no Rio Grande do Norte. 

 


No dia 23 de junho último, véspera de São João, visitei Estelo. Cheguei após o almoço e me despedi às 20h40, sem dar conta do tempo. A conversa deliciosa, pautada pela 'espirituosidade' de Estelo, muito cordial, receptivo e divertido fez o tempo voar. Ele é daquelas pessoas que valorizam a conversa, sem olhar o celular, sem olhar o relógio, e não querem que você vá embora.


Residência de Manoel Amaro Freire e Maria de Lourdes Peixoto Freire (meus tios), rua Prefeito Juvenal Carvalho com Travessa Vicente Cicco, centro de São José de Mipibu. Acervo: Elza Freire

Eu havia visitado Estelo na década de 90, juntamente com a minha prima Angela Freire e 'Orquidéa' (a sílaba tônica está dessa forma em respeito ao modo como todos pronunciam), outra extraordinária artista plástica mipibuense, cuja vida foi ceifada na flor da idade. Daí em diante, não vi mais Estelo. Vejo, raramente, mipibuenses que me trazem notícias sobre ele. Com papel e lápis na mão, companheiros eternos, anotei muitas informações nessa prosa, e ora partilho com os leitores. Um detalhe que percebi de súbito, foi o avanço dele nas suas digitais artísticas e a qualidade excepcional das suas obras. Ele deu um salto gigantesco da década de 90 para 2023. 
 
Igreja Matriz de Sant'Ana e São Joaquim, São José de Mipibu, Rio Grande do Norte. Acervo: Elza Freire

José Estelo da Silva, 69 anos de idade, nasceu no dia 30 de novembro de 1953, na fazenda Caieiras, próxima ao Sítio Buraco em São José de Mipibu, Rio Grande do Norte. Sua mãe, Maria Estela da Silva, nascida no dia 5 de novembro de 1913, em Monte Alegre, teve 10 filhos. Três morreram ainda bebês, e sete sobreviveram. São cinco homens: Olavo, Manoel, Aristeu, Roque e Estelo; e duas mulheres: Maria da Cruz e Maria Estelite. Essa última foi criada pelos irmãos dela, em Recife. 

Engenho Olho d'Água, em São José de Mipibu - Acervo: Arlindo Dantas

Quem conversa com Estelo, julga-o um homem de letras altas, devido a sua desenvoltura vocabular. Ele estudou até o "quarto ano primário", na expressão antiga, mas sempre foi um homem observador, antenado com as linguagens do cotidiano, e lia muito quando tinha oportunidade. Com certeza esse hábito o tornou esse homem muito expressivo em suas narrativas. Estelo fez o Supletivo de 1º Grau no período de 1999 a 2000. É casado com Margarida Fernandes da Silva, 66 anos, mulher cujo molde em que ela foi lapidada jogaram no oceano. O casal tem três filhos, Flávio Adriano, Valéria Cristina e José Estelo Júnior; cinco netos, Sara, Edgleisson,, Ana Alice, Suriel e Carlos Miguel. Três bisnetos: Helena, Eduardo e Emerson. Eduardo mora com eles e tem pouco mais de 1 ano. A sogra de Estelo, senhora Irene Fernandes de Oliveira, 97 anos, viúva, passou a morar com a filha após a morte do esposo. Residem há 16 anos na rua Lírio do Vale, nº 25, Loteamento Rosa de Saron, bairro Tancredo Neves, em São José de  Mipibu.  


Grupo Escolar "Barão de Mipibu", construído pelo Barão de Mipibu no centro de São José de Mipibu, Rio Grande do Norte. Acervo: Elza Freire

Filho de agricultores, como eram todos os seus vizinhos, Estelo nasceu num povoado muito simples - nas palavras dele “muito pobre”. Desde criança foi habituado às coisas regradas, mas nunca passou necessidade de alimentação. Nesse ponto “eram ricos”, como diz. Viviam do que a terra oferecia. Os pais, além de trazerem para a casa os frutos do roçado (inhame, macaxeira, jerimum, batata doce, quiabo, maxixe e outros), ora vendiam, ora trocavam com os vizinhos. Um dava ao outro o que não tinha, assim todos dispunham do básico.



O dinheiro que entrava na casa, fruto de agricultura rudimentar, realizada nos quintais ou cercados emprestados, era exclusivamente para comprar roupas, remédios, utensílios domésticos, alguma ferramenta e algum produto que a terra não produzia. Naquele tempo quase todos andavam descalços. "Nossas roupas eram simples e poucas. Tínhamos apenas uma para sair. Servia para ir à missa na capelinha e ao centro de Laranjeiras dos Cosmos, para algum festejo junino ou natalino, e também vender hortaliças e verduras".


Grupo Escolar "Barão de Mipibu", construído pelo Barão de Mipibu no centro de São José de Mipibu, Rio Grande do Norte.

Sua mãe, cuidadosa, mantinha uma grande horta cercada de faxina. Dali tirava coentro, cebolinha, alface, pimenta de cheiro, couve e ervas medicinais. “Naquele tempo existia uma cebola roxa bem pequena, nunca mais vi dela, minha mãe plantava muito, fazia uma farofa que nunca vi igual, até hoje sinto o gosto”.

Nas bodegas locais eles compravam voador seco, um peixe desvalorizado por muitos, mas já ouvi incontáveis registros de que é delicioso, inclusive na concepção de Estelo. Sua mãe o preparava no leite de coco com todos os temperos, ou assado, no fogão a lenha. Havia muitos outros peixes como Curimatã, Traíra, Piau. “Minha mãe preparava de todo jeito. Minha mãe regia a casa e a hora do comer, era muito sábia, muito paciente e trabalhadora”.

Lateral da igreja Matriz de Santana e São Joaquim vista da 'ladeira do Japão', São José de Mipibu, Rio Grande do Norte.

Naquele tempo as famílias simples iam à feira mais para comprar os miúdos do boi, coração fresco, língua, bofe, passarinha, tripa e outros miúdos, chamados pelo povo nordestino de ‘fato’ ou ‘miunça’. Era o que cabia no orçamento do pobre. Um detalhe muito bonito, narrado por Estelo, sobre a sua mãe, diz respeito às datas de aniversário. Ela não esquecia uma. A cada natalício de um filho, ela abatia uma galinha gorda, frango ou galo. “Não existia essa história de bater parabéns; ninguém fazia isso, a comemoração era o comer, era a alegria, saber que aquilo era por conta da mudança de idade”! 

Sua mãe costumava guardar alguns alimentos de maneira bem diferente. Segundo Estelo, “nossa despensa era uma cesta de cipó dependurada no teto, ali mamãe colocava as coisas que a gente só comia quando ela dava, ali ficava rapadura, açúcar mascavo, os bolos que ela fazia e outros alimentos, eu vivia pastorando para pegar escondido, mas nunca dava certo”. Esse trecho do seu depoimento me lembrou o poema  "Antiguidades", de Cora Coralina, disposto no final do acervo fotográfico deste texto. Uma pérola!


Ele complementa: “tínhamos muitas galinhas. Eram criadas soltas, mas havia o galinheiro para cevá-las. Umas ficavam presas com um galo. Era muito ovo; era interessante aquela época, mesmo a gente tendo o básico e não passasse necessidade, a pobreza naquela época era terrível. Hoje todo mundo é rico. Hoje o povo tem boa casa, tem banheiro com louça, cerâmica, tem televisão, TV a cabo, livros, muitas roupas, coisas industrializadas, bicicleta, moto, carro, transportes alternativos, acesso ao conhecimento de maneira extraordinária. Naquele tempo era tudo rústico, precário, limitado, só ricos tinham acesso a muita coisa que hoje o pobre facilmente possui”.

Engenho Olho d'Água (residência), em São José de Mipibu - Acervo: Arlindo Dantas

Aos 13 anos começou a se desenvolver uma doença nos ossos de Estelo. Ele sentia febre reumática que durante uma longa trajetória de tratamento e muito sofrimento, culminou colando o seu fêmur na bacia. O fenômeno provocou uma diminuição de sete centímetros em sua perna. Estelo manca e ainda sente muita dor. Ele convive com a osteoartrose, doença que desgasta o tecido de proteção nas extremidades dos ossos (cartilagem) ocorre gradualmente e piora ao longo do tempo. O sintoma mais comum é a dor nas articulações das mãos, do pescoço, da região lombar, dos joelhos e dos quadris. Também é acometido de artrite, uma inflamação nas articulações e hérnia de disco na coluna e vértebras L4 e L5.

Essas doenças afetam a sua qualidade de vida devido às dores intensas, implicando a dependência de remédios muito fortes que amenizam temporariamente os sintomas. Ele tem dificuldade para sentar e deitar. Precisa de travesseiros e almofadas dispostas numa cadeira para acomodar a anatomia peculiar do seu sentar. Mas mesmo assim, eventualmente, tem picos de dor intensa, súbitas. Há pouco tempo ele descobriu que a rede é mais confortável que a cama, portanto aboliu o uso desse móvel.


Ele atende as visitas num cômodo da casa que seria o quarto do casal. Há uma cama de casal, um guarda roupa, um ‘rack’ com vários livros, televisão e uma mesa onde estão dispostos os seus materiais de pintura. A propósito, até hoje ele possui o que, sem dúvida, é uma relíquia. A régua plástica de cinquenta centímetros, preta, presente de um potiguar ilustre, e que o ajudaria a mudar a sua vida. (veremos mais adiante). Estelo transformou o seu quarto no seu ateliê e galeria, em cujas paredes estão dispostas as suas obras; ali ele dorme, recebe visitas e faz as refeições, graças a uma esposa, dessas que parece não existir mais nesse planeta. Rara. Costura quase o dia inteiro, pois os salários mínimos de ambos mal pagam os remédios de Estelo. Ela recebe fardos de tecidos de uma empresa e costura determinadas peças. Precisa correr contra o tempo, pois Estelo produz à noite. A máquina de costura, elétrica, tem o som ampliado na madrugada, portanto não pode usá-la quando ele está em suas obras. A venda dos quadros é eventual.

Acervo: dr. Onofre Neto (Promotor  de Justiça da Infância e Juventude em Natal)

No dia 13 de junho de 1967, aos 13 anos, Estelo foi internado no então Hospital das Clínicas, hoje Hospital Onofre Lopes - HUOL, em decorrência de febre óssea. Ali passaria três anos em tratamento. Certo dia o médico Eudes Moura, observando o seu ócio involuntário, julgando que não combinava uma criança deitada, cheia de vida, olhando o teto dia e noite, comprou uma resma de papel ofício, alguns lápis de grafite, borracha, régua e pediu que a Srª Olga Barbalho Simonetti, então assistente social naquela instituição, repassasse a ele, orientando-o a desenhar para passar o tempo. Estelo adorou a ideia e a levou a sério. Eudes Moura foi o ortopedista que o acompanhava desde o início.

 

Casario em São João Del Rei, em Minas Gerais.

No Hospital das Clínicas, hoje HUOL, ele adquiriu Osteomielite, uma inflamação óssea normalmente causada por infecção bacteriana ou fúngica. No final da década de 70 ele foi encaminhado para  o Hospital D. Pedro II em Recife e submetido a um longo tratamento  até junho de 1972. Nesse hospital ele continuou desenhando e compilando numa pasta. Essa experiência consistiu na sua maneira de tornar suportável o ambiente hospitalar, mas ressalva que desenhar era prazeroso. Perguntei-lhe se ele sempre gostou de desenhar casarios antigos “Eu não desenhava coisa antiga, era o contrário, só desenhava coisas modernas… até futuristas… essa técnica atual foi uma orientação que recebi quando já era rapaz, e me fascinou; eu teria sido engenheiro ou arquiteto, se tivesse tido a oportunidade, então o estilo se aproximava disso”.

Retornando à São José de Mipibu viveu longos anos em constantes visitas aos hospitais natalenses, entre melhoras e pioras. Sua vida foi uma via crucis constante em hospitais, sempre acompanhado pela mãe, a qual "obrava milagres, imaginando que tudo aquilo teria cura".


Em 1976, aos 22 anos, então residente em “Laranjeira dos Cosmos”, bucólico povoado de São José de Mipibu, enfronhou-se em alguns movimentos da Igreja Católica, participando de cursos e treinamentos ministrados pelo Serviço de Assistência Rural, SAR, dentre diversas atividades realizadas pelo Movimento de Orientação de Base, MEB.  O MEB, fundado em 21 de março de 1961, é um organismo vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), constituído como sociedade civil, de direito privado, sem fins lucrativos. Sua missão é "Contribuir para promoção humana integral e superação da desigualdade social por meio de programas de educação popular libertadora ao longo da vida." Até hoje atua na educação de jovens e adultos, se utilizando do método ver, julgar a agir, em sintonia com os princípios filosóficos do educador Paulo Freire. Esse contato o fazia ir sempre à Natal, inclusive na Rádio Rural.

Casarão quase bicentenário, de frente à praça Desembargador Celso Sales no centro de São José de Mipibu, Rio Grande do Norte.

Certa vez, tendo ido a um desses eventos no SAR, em Natal, levou a sua produção artística. Entenda por isso muitas pastas com os desenhos feitos no transcurso da experiência internado em hospitais e também os desenhos que fazia em casa. Ele tomou gosto pela arte e, mesmo em casa, se servia do desenho quando não estava trabalhando, até porque já era funcionário público da Prefeitura Municipal de São José de Mipibu. O desenho tornou-se um ‘hobby’. No SAR, ele instalou-se numa mesa, como fazia sempre que ia ali, e esparramou os desenhos. “Eu queria que as pessoas vissem o meu trabalho, a princípio; eu não vislumbrava nada mais, só achava que a minha arte não deveria ficar guardada em pastas numa gaveta, as pessoas tinham que ver, eu queria ter o retorno das pessoas”.

Quarto-Ateliê de Estelo

Talvez essa tenha sido a melhor decisão da sua vida, pois seria o princípio de uma experiência transformadora, e colocaria aquele artista iniciante nos trilhos da arte em seus conformes profissionais. Estelo ainda não tinha um estilo próprio, pois não pintava, mas embora rudimentarmente, havia um estilo escondido nas suas casas, igrejas, nos prédios, engenhos, e monumentos que desenhava, embora sempre com uma conotação moderna. Era o seu eu-engenheiro e eu-arquiteto adormecido, mas intenso, querendo desabrochar, explodir, encontrar caminhos... Ele precisava apenas ser nutrido de algo que ainda não imaginava, mas sentia falta. Talvez um olhar externo...

Fazenda Sauê, Monte Alegre, Rio Grande do Norte.

No SAR todos ficaram impressionados com os desenhos dele. Uma funcionária, cujo nome ele não se recorda, mas que todos a chamavam por “Teca”, disse “que papéis são esses?” Ficou admirada com a beleza dos desenhos e a quantidade, perquirindo-os um a um. Ele resumiu-lhe a sua história, então ela disse que iria ficar com a pasta, e que ele não se preocupasse, pois ela iria mostrá-la ao professor de artes Antônio Marques, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Separar-se daquelas pastas foi como separar-se de um pedaço dele. As folhas testemunhavam e carregavam histórias que não são para qualquer um. Mas ele confiou. Gostou do jeito de Teca.


Naquela época não existia telefone convencional acessível a Estelo. Raras casas mipibuenses tinham o aparelho. Mas Teca disse que ele não deixasse de ouvir a Rádio Rural, pois a resposta iria ao ar no programa “Roda Viva”. Dito e feito. Ele já era ouvinte, portanto recebeu o recado em poucos dias. Dizia o aviso que ele deveria ir até a Secretaria Estadual do Trabalho e Bem Estar Social, em Petrópolis, Natal, e procurar pelo professor Antônio Marques, presidente da instituição. “Ao chegar já fui tratado como ‘artista’ pelo professor; eu estranhei, pois embora sabia que os meus desenhos eram muito caprichados, não me sentia um artista e nem imaginava ser, mas o professor disse aquilo porque tinha uma visão diferente e imaginava algo totalmente diferente para mim, inclusive ele disse ‘só falta quem lhe dê oportunidade, e eu estou aqui para isso’ ”. 

Sede da propriedade "Riachão", em Parelhas, RN. Acervo: dr. Onofre Neto (Promotor  de Justiça da Infância e Juventude em Natal)

O professor Antônio Marques disse que iria comprar-lhe todo o material de artes plásticas necessário, e ele passaria a pintar a partir de então. Estelo sentiu um misto de surpresa e preocupação “mas como eu vou pagar isso ao senhor?” Para a sua surpresa, o mestre disse “não se preocupe; preocupe-se apenas em pintar tranquilamente e sem pressa, do mesmo jeito que você faz os seus desenhos, depois a gente faz a sua primeira exposição, se tudo der certo, você estará encaminhado para o resto da vida, se acaso realmente for isso que você deseja. Se não der certo, você não me deve nada”. Estelo ficou surpreso com o gesto altruísta do mestre.

Estelo em seu quarto/ateliê, me contando sobre o seu primeiro pincel, doado por Antônio Marques

O professor Antônio Marques o levou às livrarias "Encontro" (de propriedade do Sr. Luís, hoje ela está no Centro de Convivência da UFRN) e "Universitária", na avenida Rio Branco,  para aquisição do material e disse que iria indicar-lhe Erasmo Andrade, artista plástico e professor na UFRN para dar-lhe orientações pertinentes. Estelo saiu dali felicíssimo. Ele comprou muitas telas (todas muito grandes), bisnagas de tinta a óleo de todas as cores, diluentes, pincéis, enfim, o que seria necessário. Estelo disse que teve muito receio, temia não acertar, pensava em não sair do gosto deles e se decepcionar. Isso o deixaria envergonhado. Mas abraçou a oportunidade “seja o que Deus quiser”. 

Casa de Câmara e Cadeia, em primeiro plano, e Mercado Público, no centro de São José de Mipibu, RN. Foram demolidos pela ignorância. A obra foi pintada graças a Mario de Andrade, que andou por ali em 1929 e deixou esse registro no seu livro O Turista Aprendiz.

Seguidamente o professor Antônio Marques marcou uma data para ir à sua casa, em Laranjeira dos Cosmos, juntamente com artista plástico Erasmo Andrade, que lhe daria uma espécie de aulão de pintura. Naquele tempo não existiam livros e revistas sobre o assunto tão acessíveis quanto hoje. E o dia chegou. Logo cedo um fusquinha estacionou na frente de sua casa. Estelo repete que a sua família sempre foi muito humilde, viviam do que a terra e os rios produziam, portanto pediu aos visitantes que não reparassem as limitações na sua residência, mas os visitantes se comportaram com tanta simplicidade que nem pareciam aquelas pessoas que, para a sua família, eram inacessíveis. 


Eles almoçaram, “mamãe matou galinha, fritou peixe, preparou feijão verde, fez suco, tinha muita verdura e legumes da horta e do cercado, eles ficaram encantados com tudo e se fartaram naquela comida de interior, feita no fogão a lenha; para nós era comum, mas para eles, da capital, essas coisas são do outro mundo”. 

E no transcurso dessa visita Estelo fez o seu “intensivo de pintura”. Ele se recorda que Erasmo levou uma tela e pintou um vaso com flores, espécie de ‘natureza morta’, cujo estilo, até então, parecia bastante distante de Estelo, mas ele prestou muita atenção no jeito como ele segurava o pincel, as pinceladas, as posições como ele dispunha a tela, a maneira de diluir a tinta a óleo, enfim ficou atento aos mínimos detalhes daquela aula, sempre fazendo perguntas e anotando. Aprendeu muito. Mas Antônio Marques, certamente percebendo, e sendo conhecedor dos desenhos de Estelo, sabendo da acuidade como ele criava casas, prédios, praças, sugeriu que ele se dedicasse, inicialmente, à pintura de casarios, que é um estilo artístico. Estelo achou providencial, pois havia, de fato, total identificação.

Igreja Matriz de Santana e São Joaquim, São José de Mipibu, Rio Grande do Norte.

Estelo não realizou academicamente o desejo de se formar em engenharia civil ou arquitetura, mas com certeza a arte se fez essa academia por excelência, exercitada sob as luzes hospitalares que iluminavam as folhas enquanto ele se iluminava da arte. Quando Estelo traça e planeja seus desenhos, usando materiais inseparáveis como régua, lápis e borracha, está construindo plantas - não deixa de sê-los. Quando cria, ergue prédios, casas, muros, calçadas, ruas e travessas, se comporta como um engenheiro dos casarios antigos. Estelo se fez engenheiro da arte, arquiteto das cores. O que é melhor que isso? 

Casarão centenário que sobrevive, resiste intacto, em São José de Mipibu, Rio Grande do Norte. O detalhe ao lado era a residência da família Bakker. O frontão não existe mais, a construção foi totalmente modernizada, transformada em pequenos cômodos para comércio.

A propósito, há uma característica bastante curiosa e que se revela eventualmente entre ele e quem adquire suas obras. Algumas pessoas trazem telas compradas há bom tempo, depois de adquirirem pequenos avarias na pinturas, e ele restaura a parte danificada. Às vezes a pessoa pede que ele modifique a cor da casa, do muro, do telhado. É um dado curioso. Realmente o mundo de um arquiteto e engenheiro lhe pertencem.

 

Antiga residência onde residiu a família Bakker, em São José de Mipibu. Embora totalmente desfigurada, a edificação ainda resiste. Ainda era possível vê-la dessa forma no final dos anos 80 Hoje as janelas foram tapadas; só existem portas. Tornou-se uma sequência de pequenas casas comerciais. O belo frontão, do lado direito, que poderia ter sido preservado, recebeu um reboque liso de cimento.
 

Pois bem, retomando a visita de Antônio Marques e Erasmo Andrade à casa de Estelo, eles conversaram bastante e repassaram outras dicas. A mãe de Estelo passou um cafezinho, fez beiju e eles se deliciaram. Antônio Marques disse que voltaria no prazo de quinze dias, e que ele se dedicasse tão somente àquela atividade, pois precisaria de vinte telas prontas para montar a sua primeira exposição. Enfim, a visita tomou o destino à noiva do sol. 

Folder exposto na parede do Quarto-Ateliê de Estelo

Creio que a ausência de internet e livros forjou o estilo único em Estelo. Tenho a impressão de que olhar muita coisa contamina os olhos e os nossos 'dedentros', na palavra de Clarice Lispector. Estelo viu nascer gradualmente a sua digital artística. Além de desenvolver o seu estilo artístico, ele inventou uma estratégia particular de pintar. Enquanto a maioria dos artistas trabalha em pé e raramente se senta, Estelo só pinta sentado numa cadeira com almofadas para melhor se acomodar e aplacar as dores nos ossos. Suas obras são espetaculares, mas quem conhece apenas suas obras, e nunca o viu pessoalmente, não sabe que suas obras também carregam as cores das suas dores físicas (nada belas).


Ferramentas inventadas por Estelo para dar suporte às mãos quando pinta. Ao lado uma régua preta.

Estelo inventou duas ferramentas de madeira. Ambas têm o ‘design’ igual, diferenciando-se no tamanho e altura. Parece uma régua com dois pauzinhos nas pontas. Ele a coloca sobre a tela enquanto pinta, sem que a peça toque a pintura, usa como suporte para deslizar as mãos quando faz traços retos e contornos. Quem pinta sabe que o simples ato de segurar o pincel de contorno exige uma destreza excepcional para não alterar a dimensão do contorno e traço. Estelo não consegue essa desenvoltura com as mãos livres, tendo em vista os problemas ósseos. O suporte permite que ele corra as mãos com fluidez, sem alternar a largura ou finura do traço e contorno. A peça também facilita a pintura de detalhes como telhas, paralelepípedos, tijolos e coisas miúdas. Quando observamos as obras do início da sua carreira, constatamos facilmente algumas incoerências nos traços e contornos, totalmente distintas da precisão de hoje. Justamente porque ele ainda não havia inventado sua ferramenta. Aquela peça  lhe funciona como muleta artística - digamos -, já que ele também usa o equipamento real quando sai de casa.

Essa obra encontra-se no Canadá.


Pois bem, os ditos quinze dias acordados entre ele e o professor Antônio Marques se passaram como se fossem uma semana. Eis que o professor retorna a Laranjeira dos Cosmos e fica maravilhado com o que vê. “Parabéns! Você também é artista na pintura”, foram as palavras do professor Antônio Marques. Ele é especialista em obras de arte e antiguidades, inclusive durante muitos anos manteve uma ampla galeria de artes e antiguidades no Centro de Turismo de Natal (antigo presídio que fica no centro de Natal). Enfim, a primeira exposição de sua vida foi montada com vinte telas. Era o ano de 1977. Estelo contava 22 anos de idade. Lá se foram 45 anos de muitas metralhas pelo caminho.

Assim que as telas chegaram a Natal, Antônio Marques levou Estelo para conhecer Cláudio Galvão, também professor na UFRN, escritor e apaixonado por Artes Plásticas. O professor também se impressionou. “Parece um veterano”.  Foram as suas palavras. A partir daí nasceu muito respeito e consideração entre ambos. Cláudio Galvão acompanhou essa e outras exposições, elaborando os seus catálogos e fazendo a curadoria. “Eu, muito jovem, estava diante das pessoas certas; Antônio Marques e Cláudio Galvão se tornaram guias durante muito tempo, até que eu passasse a andar com as próprias pernas, mas até hoje temos contato. A consideração que tenho por eles não tem tamanho. São dois anjos”.

Em 1977 a população de São José de Mipibu ainda era muito alheia às Artes Plásticas, e Estelo ficou invisível durante um bom tempo. Mas como trabalhava no serviço público, algumas pessoas foram se apercebendo de sua existência, vendo-o pintando, comprando tintas, ouvindo-o dizer sobre o que fazia, assim tomavam conhecimento sobre as suas exposições em Natal. O tempo foi passando e o município dando conta de que naquela cidade se aninhava um artista com uma história bem construída e com estilo próprio, e que repercutia em Natal. 

Professor Antônio Marques (primeiro à esquerda). Isaura Rosado (quarta à esquerda). professor Cláudio Galvão (quarto à direita).

 
Em 1978, à ocasião dos festejos alusivos aos 80 anos de Câmara Cascudo, o professor Cláudio Galvão avisou a Estelo com muita antecedência sugeriu que ele  pintasse a casa de Câmara Cascudo. Com o quadro pronto, ambos foram para o evento, na própria residência do prodigioso intelectual. Chegaram bem antes da cerimônia e acharam melhor fazer a entrega naquele momento, pois ficaria mais intimista. Assim foi feito. Estelo conta que Câmara Cascudo disse "foi o melhor presente que recebi". Segundo Estelo, foi um evento grandioso, inclusive estavam presentes os maiores intelectuais potiguares, e dentre as autoridades, se destacava o governador José Agripino.

Ao longo das décadas, Estelo expôs em vários espaços em Natal. Sempre exposições com curadoria, catálogos e repercussão nas mídias. Em 2017 ele fez a sua última exposição, até o momento, na Pinacoteca do estado, Cidade Alta, em Natal, onde disponibilizou 31 obras assinadas por ele. Como sempre, o professor Cláudio Galvão preparou o catálogo e se fez presente juntamente com o professor Antônio Marques, Isaura Rosado e algumas autoridades muito conhecidas.

Guardada em moldura, no quarto, a mãezinha de Estelo, continua lhe fazendo companhia, como fez durante anos nos hospitais e incontáveis lugares que peregrinou em busca da cura do filho...

Estelo tem como característica assinar apenas o seu primeiro nome em suas obras, do lado direito, e quase sempre sublinhá-lo. Em muitas ele identifica o nome do que está retratado (Engenho tal, Fazenda Tal, Escola Tal, Residência tal etc), no lado esquerdo. Mas também identifica apenas o município onde a edificação está ou esteve (São José, Arês, Goianinha...)  Isso é feito na base da tela. Na década de 80, ele criou a “Cidade dos Montes”, um lugar imaginário, e que, de tão lindo, nos convida a conhecê-lo. “Onde é isso, Estelo?”, “É no país da imaginação!”. É uma sequência de pinturas de casarios típicos de uma cidade antiga, todas trazem a assinatura de Estelo e a identificação (Praça da Cidade dos Montes, Delegacia da Cidade dos Montes, enfim), mas nada daquilo existe, exceto dentro dele. Somos o que vemos. Estelo enxerga o que ele é, esse construtor. É um dado curioso do artista surpreendente. Reforça o arquiteto e engenheiro guardados em sua alma, revelados em suas artes plásticas.
 



Estelo sempre fotografou os prédios antigos de São José de Mipibu para depois transportá-los às telas. Suas obras retratam predominantemente o município de São José de Mipibu, como não poderia ser diferente, mas ele já pintou casarios de municípios circunvizinhos e outros estados. Ele tem o hábito de comprar cartões postais que retratam construções antigas do Rio Grande do Norte e de alguns estados do Brasil. As fotografias facilitam o entendimento arquitetônico e os detalhes, pois ele primeiramente desenha para pintar sobre os traçados. Alguns casarões que Estelo pintou foram demolidos sem terem sido fotografados, mas nas obras desse artista, seguem em pé, intactos.

 
Estação "Papary", Nísia Floresta, Rio Grande do Norte, município que faz divisa com São José de Mipibu. Essa estação ferroviária foi construída pelos ingleses, em 1881.

Indaguei a Estelo quem inicialmente o apoiou no município de São José de Mipibu, pessoas comuns, no aspecto de o incentivar, apreciar os seus trabalhos com valorização, respeito, já que em Natal ele era bem visualizado. “João Maria Freire foi a primeira pessoa”, respondeu. “E segue até hoje, ele me visitava, depois passou a me acompanhar em algumas exposições em Natal e em São José de Mipibu, inclusive está à frente no sentido de batalhar por um direito que eu tenho junto ao estado, além de divulgar minhas obras, comentar nas escolas, pois também tinha um jornal artesanal, que era datilografado. Na verdade, enquanto o meu talento artístico brotava, brotava também o talento jornalístico em João Maria, pois depois ela cursaria Jornalismo na UFRN e faria parceria com Dedé do Alerta, que também é jornalista, e assim outras pessoas foram me conhecendo. Dedé também passou a me apoiar muito, é um fã do meu trabalho é um ser humano muito decente… há outras pessoas que foram e continuam aparecendo, mas não me lembro de todas no momento”.



Estelo é aposentado com um salário mínimo. Dentro de um contexto, ele contou-me que alguns admiradores estão envolvidos ultimamente com o andamento do processo que postula para ele o direito a uma pensão, conforme a lei 7, de 23 outubro de 1974, de autoria do ex-governador Cortez Pereira, que ampara artistas do galardão de Estelo, justamente para terem uma vida com mais dignidade. Até onde se sabe, depende apenas da governadora Fátima Bezerra abrir a gaveta e assinar, já que tudo o que se pede foi fornecido, se bem que a história artística de Estelo é o maior embasamento para a garantia desse direito. 

Estelo, ladeado por Antônio Marques e Isaura Rosado na Pinacoteca do estado em 2017, ocasião de sua exposição.

As pessoas são as grandes divulgadoras das minhas obras, e consequentemente de mim, mas às vezes é necessário alguém que motive o povo a conhecer o meu trabalho; infelizmente as coisas da cultura e da arte, seja na capital ou no interior, não têm o necessário olhar”. Estelo nunca vislumbrou ficar rico com a sua arte “só se algo extraordinário tivesse acontecido, e não aconteceu, mas sou muito feliz por tudo o que construí ao longo da minha relação com as artes plásticas”, explica. 


Como curiosidade, até hoje Estelo possui um pincel, cujas cerdas se desgastaram pela passagem dos seus 46 anos de uso, e uma régua de plástico, de quarenta centímetros, preta, intacta, patrimônio daquele presente lá dos primórdios, fruto da sensibilidade do professor Antônio Marques.

Único pincel integrante do presente ofertado por Antonio Marques há 47 anos, as cerdas se foram, mas restou a lembrança. Uma relíquia


As obras de arte de Estelo embelezam e valorizam alguns lares mipibuenses, natalenses, e repartições públicas, como a Câmara Municipal de São José de Mipibu, e no próprio estado, além de alguns acervos de colecionadores, ‘merchants’, donos de galerias e admiradores. Ele também tem obras na Holanda, Canadá e outros países. A venda de suas obras acontecem eventualmente, tendo picos quando aparecem compradores que levam cinco unidades ou mais de uma só vez. Eventualmente aparecem encomendas. São mipibuenses pedindo que ele pinte uma tela retratando a casa de sua infância ou algum prédio que lhe transmita memórias afetivas. Creio ser um privilégio ter a casa da nossa infância traduzida nas tintas de Estelo. Há períodos muitas vezes longos em que ele não vende sequer uma obra durante meses. São as metralhas do caminho, e precisam ser quebradas pela paciência. Estelo age assim.

Igreja Matriz de Santana e São Joaquim, São José de Mipibu, Rio Grande do Norte.

O artista guarda algumas de suas obras como se ele próprio fosse o colecionador das próprias obras. Não vende a ninguém. São as excentricidades. Coisa de artista, diria. No bojo de nossas conversas, dado momento, quando ele me informou que se tornara evangélico, olhou para as suas obras e disse “às vezes eu olho essas telas e não acredito que sou o autor, não parece ter sido eu quem fez, mas existe uma única explicação para isso: é Deus, eu sou apenas as mãos conduzindo um pincel, Deus é o Criador de tudo, a Ele toda a honra e toda glória”.

No dia em que estivemos na residência de Estelo, ele estava – literalmente –, quebrando 'metralhas'. Ele havia começado a trabalhar logo após o almoço e estava até aquela hora nesse mister. Veio nos atender rapidamente, suado, dizendo que ia tomar um banho. Banho tomado, ele contou que não para, mesmo sentindo dor, pois percebe que quando fica muito na rede ou sentado, sente mais dificuldade em retomar qualquer atividade. No seu quintal ele está juntando sobras de alvenarias de construção, recolhidas gradualmente das ruas, depois quebra com um martelo, reduzindo os pedaços para forrar o quintal que será cimentado. Quando vi a montanha de metralhas, vi uma obra de arte. Só uma pessoa como Estelo é capaz daquela delicadeza. Ele é detalhista até na função invisível de quebrar tijolos. Impressionante! Estelo é sinônimo da mais absoluta decência revestindo o seu eu-artista.


As metralhas quebradas por Estelo involuntariamente traduzem a sua história, feita de muitos pedaços, cada pedaço um fato, um imprevisto, um hospital, um desenho, uma obra, uma doença, uma alegria, uma tristeza... e esses pedaços, juntos, formam um homem forte e cheio de dignidade. Os pedaços brancos, creio, simbolizam essa trajetória. Os pedaços rosas simbolizam suas dores.

Compadeço-me com as suas dores, ditas meramente por causa das minhas perguntas, pois, muito discreto, não o vi reclamando de nada nem de ninguém durante as longas seis horas que passamos conversando igual papagaios. É um homem do bendizer. Se não fossem as dores dando agulhadas involuntárias, suas caras e bocas, não teria percebido quão lancinantes são. Nossa visita começou no alpendre, onde conversamos uns 15 minutos com a sua esposa, depois fomos para a mesa da cozinha, tomamos café, onde ele diz que nunca se senta, e terminou no seu quarto-ateliê.

Capitania dos Portos (quando tinha a sua arquitetura ainda original), Natal, Rio Grande do Norte.

Saí de sua residência decidido a entrar em contato com Gilson Matias, presidente da Fundação José Augusto, coincidentemente conterrâneo de Estelo, ele o conhece desde criança. É necessário que outras forças se somem para ter-se o parecer. Gilson é uma pessoa muito séria. Tem-se no poder uma governadora que estará recebendo as informações que quiser sobre Estelo, tendo em vista que Gilson Matias é presidente da FJA. Sei que ele fará o possível para que isso destrave. Até porque há quem se beneficia dignamente desse direito no estado, inclusive artista plástico. É a vez de Estelo.

Sobrado em estilo puramente português, centro de São José de Mipibu, Rio Grande do Norte.

Estelo atende a todos os requisitos solicitados pela lei. Eu não diria que ele se beneficiará, mas que o estado do Rio Grande do Norte se beneficiará por estar devolvendo, em forma de conforto, o bálsamo a um dos seus maiores artistas plásticos, e que projeta o estado. Conclamo a UFRN, a Academia Norte-Rio-Grandense de Letras, a Capitania das Artes, todos os espaços públicos potiguares conhecedores do gigantismo de Estelo a se unirem em prol desse direito que lhe pertence. Às vezes as coisas vão além da burocracia...

Estelo é único, primeiramente como pessoa, depois como artista plástico. Suas obras, mesmo retratando o estilo ‘casarios’, aparentemente tão comum, e mesmo carregando nuanças bucólicas que traduzem um pouco a arte naif, são únicas. Estelo costuma ambientar os casarios reais em paisagens naturais que originalmente não estão na paisagem real, ou nem sempre são aquelas espécies. Normalmente estão no fundo, retratando a Mipibu sempre com arvoredos e coqueirais. A natureza, por vezes abraça os seus casarios. O verde predomina, assinalando esperança e as lembranças de um lugar verdejante, seu habitat a vida inteira. Ele costuma plantar uma espécie muito singular de árvore conífera nos quintais de seus casarios quando os pinta, e seus montes e morros, suas montanhas revelam uma infância que não morreu. Suas obras também são raras por estarem carregadas de dor física traduzidas para o idioma do belo. Só mesmo um ser tão singular está capacitado para essa tradução. 

As duas ferramentas azuis são inventadas por Estelo para dar suporte ao seu trabalho. A régua preta foi presente de Antônio Marques, há 45 anos.

Os servidores que, no Estado, ocupam a pasta que pode destravar o processo de Estelo, precisam agir. Mais que estar precisando, a lei foi feita para beneficiar homens como ele. Apesar de seus quase cinquenta anos de prática artística, ainda vejo Estelo invisível a muitos. Infelizmente. Espero que isso mude, que as escolas, os órgãos que trabalham com cultura e arte modifiquem isso. Valorizar tarde demais impede que a notabilidade tenha o tamanho certo. Daí virão as homenagens que não foram feitas quando deveriam. Daí uma obra desse artista que hoje vale seiscentos reais – e é tida como cara por alguns –, sendo vendida em galerias e leilões dos grandes centros por um milhão. É bom que ajamos, cada um fazendo a sua parte. Para ontem.

Como expus inicialmente, muitas vezes acontece algo muito ruim e que leva a acontecer algo muito bom. Inegavelmente, a própria doença de Estelo se fez instrumento da construção dele como artista plástico notável. Primeiro alguém lhe trouxe papel, lápis, régua e borracha para ele ‘matar o tempo’, depois apareceu alguém que se encantou com os seus desenhos e levou para um especialista, em seguida o especialista se maravilhou daquilo e doou todo o material de arte e o apresentou um artista profissional, o artista profissional lhe deu um aulão de pintura, posteriormente foi apresentado a outro especialista que passou a organizar suas exposições e assinar os seus catálogos. O restante foi consequência. Estelo é uma construção de alicerces fortes e múltiplos…

FIM
...............................................................................

Obs. 1 Os professores Antônio Marques e Erasmo Andrade foram meus professores na UFRN no período de 1993 a 1996. Erasmo, serenidade em pessoa, apaixonado pela obra de Chagal. Antônio (Toinho para os mais próximos), ágil, ligeiro, dinâmico, nos levava para aulas de campo para vermos obras de arte, painéis nas ruas, monumentos, sua galeria no Centro de Turismo, suas obras de arte, não de sua autoria, mas compradas para o seu acervo, santos do século XVII, oratórios, enfim... Duas figuras excepcionais, com as quais aprendi muito. Somente duas pessoas dessa estirpe são capazes de alicerçar alguém. Estelo teve boa escola. Essa história inspira a muitos. Ela ensina a educarmos os nossos olhares e sentimentos. Ela nos educa a enxergamos os valores, a ajudarmos o próximo. Isso é humano...
.....................................................................................................................................................


Abaixo, duas formas de você chegar à casa de Estelo:

Tendo como ponto de partida a Avenida Pedro Ferreira, lateral à esquerda do cemitério central de São José de Mipibu,  siga reto, continue sempre até chegar na rua São Pedro à direita, entre até dar numa ruazinha bem estreita, entre à esquerda, há uma bar na esquina, grudado numa vilinha de casas. Entre e verá uma rua sem saída, à esquerda, (é uma rua muito pequena chamada Lírio do Vale). A casa de Estelo fica à esquerda. 

Se você preferir, tendo como ponto de partida também a rua lateral esquerda do cemitério central de São José de Mipibu, (Avenida Pedro Ferreira), siga reto e um pouco adiante haverá uma bifurcação (um triângulo), entre na rua Senador João Câmara, vá reto até chegar na rua São Pedro, à esquerda, entre e siga até dar numa ruazinha bem estreita, há uma bar na esquina, grudado numa vilinha de casas. Entre à direita e verá uma rua sem saída (é uma rua muito pequena chamada Lírio do Vale). A casa de Estelo fica à esquerda.

Obs. 1  Ao longo da semana estarei postando inúmeras fotografias das demais obras de Estelo.






















Igreja Matriz de Santana e São Joaquim, São José de Mipibu, Rio Grande do Norte.















Abaixo, o poema de Cora Coralina que associei à cesta onde a mãe de Estelo guardava as coisas gostosas.
 

Quando eu era menina 
bem pequena, 
em nossa casa, 
certos dias da semana 
se fazia um bolo, 
assado na panela 
com um testo de borralho em cima. 
Era um bolo econômico, 
como tudo, antigamente. 
Pesado, grosso, pastoso. 
(Por sinal que muito ruim.) 
Eu era menina em crescimento. 
Gulosa, 
abria os olhos para aquele bolo 
que me parecia tão bom 
e tão gostoso. 
A gente mandona lá de casa 
cortava aquele bolo 
com importância. 
Com atenção. 
Seriamente. 
Eu presente. 
Com vontade de comer o bolo todo. 
Era só olhos e boca e desejo 
daquele bolo inteiro. 

Minha irmão mais velha 
governava. Regrava. 
Me dava uma fatia, 
tão fina, tão delgada… 
E fatias iguais às outras manas. 
E que ninguém pedisse mais! 
E o bolo inteiro, 
quase intangível, 
se guardava bem guardado, 
com cuidado, 
num armário, alto, fechado, 
impossível. 
Era aquilo uma coisa de respeito. 
Não pra ser comido 
assim, sem mais nem menos. 
Destinava-se às visitas da noite, 
certas ou imprevistas. 
Detestadas da meninada. 
Criança, no meu tempo de criança, 
não valia mesmo nada. 
A gente grande da casa 
usava e abusava 
de pretensos direitos 
de educação. 
Por dá-cá-aquela-palha, 
ralhos e beliscão. 
Palmatória e chineladas 
não faltavam. 
Quando não, 
sentada no canto de castigo 
fazendo trancinhas, 
amarrando abrolhos. 
“Tomando propósito” 
Expressão muito corrente e pedagógica. 
Aquela gente antiga, 
passadiça, era assim: 
severa, ralhadeira. 
Não poupava as crianças. 
Mas, as visitas… 
– Valha-me Deus!… 
As visitas… 
Como eram queridas, 
recebidas, estimadas, 
conceituadas, agradadas! 
Era gente superenjoada. 
Solene, empertigada. 
De velhas conversas 
que davam sono. 
Antiguidades… 
Até os nomes, que não se percam: 
D. Aninha com Seu Quinquim. 
D. Milécia, sempre às voltas 
com receitas de bolo, assuntos 
de licores e pudins. 
D. Benedita com sua filha Lili. 
D. Benedita – alta, magrinha. 
Lili – baixota, gordinha. 
Puxava de uma perna e fazia crochê. 
E, diziam dela línguas viperinas: 
“- Lili é a bengala de D. Benedita”. 
Mestre Quina, D. Luisalves, 
Saninha de Bili, Sá Mônica. 
Gente do Cônego Padre Pio. 
D. Joaquina Amâncio… 
Dessa então me lembro bem. 
Era amiga do peito de minha bisavó. 
Aparecia em nossa casa 
quando o relógio dos frades 
tinha já marcado 9 horas 
e a corneta do quartel, tocado silêncio. 
E só se ia quando o galo cantava. 
O pessoal da casa, 
como era de bom-tom, 
se revezava fazendo sala. 
Rendidos de sono, davam o fora. 
No fim, só ficava mesmo, firme, 
minha bisavó. 
D. Joaquina era uma velha 
grossa, rombuda, aparatosa. 
Esquisita. 
Demorona. 
Cega de um olho. 
Gostava de flores e de vestido novo. 
Tinha seu dinheiro de contado. 
Grossas contas de ouro 
no pescoço. 
Anéis pelos dedos. 
Bichas nas orelhas. 
Pitava na palha. 
Cheirava rapé. 
E era de Paracatu. 
O sobrinho que a acompanhava, 
enquanto a tia conversava 
contando “causos” infindáveis, 
dormia estirado 
no banco da varanda. 
Eu fazia força de ficar acordada 
esperando a descida certa 
do bolo 
encerrado no armário alto. 
E quando este aparecia, 
vencida pelo sono já dormia. 

E sonhava com o imenso armário 
cheio de grandes bolos 
ao meu alcance. 
De manhã cedo 
quando acordava, 
estremunhada, 
com a boca amarga, 
– ai de mim – 
via com tristeza, 
sobre a mesa: 
xícaras sujas de café, 
pontas queimadas de cigarro. 
O prato vazio, onde esteve o bolo, 
e um cheiro enjoado de rapé. 

Cora Coralina, Poema dos Becos de Goiás e Estórias Mais