ANTES DE LER É BOM SABER...

CONTATO: (Whatsapp) 84.99903.6081 - e-mail: luiscarlosfreire.freire@yahoo.com. Este blog - criado em 2008 - não é jornalístico. Fruto de um hobby, é uma compilação de escritos diversos, um trabalho intelectual de cunho etnográfico, etnológico e filológico, estudos lexicográficos e históricos de propriedade exclusiva do autor Luís Carlos Freire. Os conteúdos são protegidos. Não autorizo a veiculação desses conteúdos sem o contato prévio, sem a devida concordância. Desautorizo a transcrição literal e parcial, exceto breves trechos isolados, desde que mencionada a fonte, pois pretendo transformar tais estudos em publicações físicas. A quebra da segurança e plágio de conteúdos implicarão penalidade referentes às leis de Direitos Autorais. Luís Carlos Freire descende do mesmo tronco genealógico da escritora Nísia Floresta. O parentesco ocorre pelas raízes de sua mãe, Maria José Gomes Peixoto Freire, neta de Maria Clara de Magalhães Fontoura, trineta de Maria Jucunda de Magalhães Fontoura, descendente do Capitão-Mor Bento Freire do Revoredo e Mônica da Rocha Bezerra, dos quais descende a mãe de Nísia Floresta, Antonia Clara Freire. Fonte: "Os Troncos de Goianinha", de Ormuz Barbalho, diretor do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, um dos maiores genealogistas potiguares. O livro pode ser pesquisado no Museu Nísia Floresta, no centro da cidade de nome homônimo. Luís Carlos Freire é estudioso da obra de Nísia Floresta, membro da Comissão Norte-Riograndense de Folclore, sócio da Sociedade Científica de Estudos da Arte e da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Possui trabalhos científicos sobre a intelectual Nísia Floresta Brasileira Augusta, publicados nos anais da SBPC, Semana de Humanidade, Congressos etc. 'A linguagem Regionalista no Rio Grande do Norte', publicados neste blog, dentre inúmeros trabalhos na área de história, lendas, costumes, tradições etc. Uma pequena parte das referidas obras ainda não está concluída, inclusive várias são inéditas, mas o autor entendeu ser útil disponibilizá-las, visando contribuir com o conhecimento, pois certos assuntos não são encontrados em livros ou na internet. Algumas pesquisas são fruto de longos estudos, alguns até extensos e aprofundados, arquivos de Natal, Recife, Salvador e na Biblioteca Nacional no RJ, bem como o A Linguagem Regional no Rio Grande do Norte, fruto de 20 anos de estudos em muitas cidades do RN, predominantemente em Nísia Floresta. O autor estuda a história e a cultura popular da Região Metropolitana do Natal. Há muita informação sobre a intelectual Nísia Floresta Brasileira Augusta, o município homônimo, situado na Região Metropolitana de Natal/RN, lendas, crônicas, artigos, fotos, poesias, etc. OBS. Só publico e respondo comentários que contenham nome completo, e-mail e telefone.

segunda-feira, 19 de junho de 2023

Cidinha, uma história de terror...



Quando criança, nossa mãe contava uma história aterrorizante do primeiro crime monstruoso ocorrido na cidade, bem antes de nascermos. O assassinato, dado com requintes de selvageria, nos amedrontava só de ouvir alguém contando.  

Minha mãe tinha 38 anos de idade à época. Hoje ela tem 90. Passaram-se 53 anos. A narração da nossa mãe nos causava arrepios, a ponto de dormirmos com olhos e ouvidos redobrados de atenção. Naquele tempo não haviam histórias horrorosas na cidade, desse modo tal crime foi o primeiro filme de terror das nossas vidas, pois o “modus operandi” do assassino revelava um potencial psicopata, o que justifica o nosso pavor. 

Confesso que o fato impactou a mim e a meus irmãos de tal maneira que nunca esquecemos. Aliás, a cidade inteira. Foi quando descobrimos que existia uma coisa estranha, chamada morte, e que alguém podia matar alguém, e se houve quem matasse um ser tão inocente e bela - como Cidinha -, todos poderiam ser vítimas de monstros semelhantes. E onde estariam os outros monstros? Escondidos em que lugar? Dentro de quem? O que planejavam? Quem seriam as próximas vítimas?

Habitávamos os recônditos do Mato Grosso do Sul. Àquela época era região bucólica e pacata, recém desmatada para a construção da cidade, um gigantesco loteamento. Vivíamos ainda sob os resquícios da famosa “Marcha Para o Oeste”, projeto empreendido por Getúlio Vargas, visando a ampliação demográfica do Centro-Oeste e Norte do Brasil. Os recônditos da cidade eram emoldurados de florestas, cujas árvores precisavam de vários homens para abraçá-la.

Meus pais fizeram parte da primeira leva de moradores, sendo um dos pioneiros. O município, que ainda não tinha nome, era abraçado por dois rios caudalosos, imensos, largos, e um sem fim de mata nativa, berço de avifauna esplendorosa. Era o “novo mundo”, o “el dorado” de muitos.

Na época do crime, a cidade se alumiava de energia elétrica movida a motor. Uns cinco minutos antes das dez horas da noite, as lâmpadas davam umas piscadas seguidas. Era o aviso que, às 22h00, o funcionário da “casa do motor” apertaria o botão. Depois disso, a terra se uniria ao céu num azeviche absoluto. Nesse momento, para alongar a noite, os habitantes acendiam lampiões, lamparinas ou velas. O período de lua cheia ainda permitia mastigar conversas na frente da casa. Fora isso, só com lampião.

Nas ruas, os postes de madeira de aroeira, bem distantes uns dos outros, pareciam segurar pequenos sóis, amarelos que eram; seus raios clareavam poucos metros, de maneira que formavam um rosário de bolas de ouro e bolas pretas perfiladas ao longo dos quarteirões. Grande parte das cidades brasileiras carregam esse mesmo histórico no que se refere aos prefácios da energia elétrica. 

Dizem que a arte imita a vida e que a vida pode imitar a arte. Creio que nem sempre a arte imita a vida porque ainda não vi novelas ou filmes retratando a história que vou contar (e nem quero!). 

Sabemos que escritores e novelistas eventualmente escrevem histórias baseadas em fatos reais, de maneira que a Arte imita a vida. Muitos criticam as novelas, alegando o mal que fazem à sociedade (não estão errados). 

Mas, se analisarmos com honestidade, a vida real pode ser mais aterrorizante que as novelas. A diferença é que a televisão tem o poder nocivo de agigantar os fatos, dar extraordinária visibilidade, e isso inspira algumas pessoas a imitar o bem e o mal despejado em nossas casas. 

Percebem que da década de 90 para cá tem aumentado o números de brasileiros que, armados, invadem espaços públicos e matam pessoas? Seriam os filmes norte-americanos, terríveis, os inspiradores? De 90 para trás isso não existia.  Haja país para produzir psicopatas! Mas, preâmbulos à parte, vamos à história... 

Era o ano de 1970, portanto lá se foi mais de meio século do ocorrido. Eu me resumia a um quase-bebê de três anos de idade, portanto fui saber desse episódio e entendê-lo muito lá adiante. A cidade em que nasci foi receptáculo de estrangeiros em seus primórdios. Há alemães, húngaros, tchecos, russos, espanhóis, paraguaios, japoneses e obviamente descendentes desses povos. 

Havia uma família, descendente de espanhóis que morava numa pequena propriedade rural há uns seis quilômetros da cidade, era o “Sítio Pioneira”. Como já escrevi em outras minhas memórias, havia muita mata nativa nos derredores do município. 

As estradas de acesso às propriedades rurais se emolduravam de gigantescas árvores, cujas copas formavam túneis, tornando o percurso sempre sombreado, sempre escuro, bastante agradável aos bichos. À noite tudo adquiria uma consistência de piche. Luz? Só de farol de carro.

Essa família era simples. Gente honrada e querida. Vivia dignamente do que produzia. Mas como é comum, as crianças crescem e desenvolvem vontades de coisas que a terra não produz. 

Meninos daquela época e naquele contexto, querem bola de futebol, sapato igual aos que usam na cidade, brilhantina… Alguns almejam trabalhar e ter uma fonte de renda que não dependa dos pais. 

Meninas sentem necessidades diferentes. Querem pó, rouge, adereços de cabelos, sapatos da moda, cremes, figurinos da moda, diademas, brincos, gargantilhas…

Uma das moças desse sítio se chamava Cidinha. Se a beleza pudesse descer do céu e interpretar uma menina virando moça, Cidinha seria a representação fiel de esplendorosa beleza. Sua imagem era singular. Os cabelos desciam abaixo da cintura. 

Contam que, quando ela se deslocava à cidade, a pé ou na carroça dos pais, chamava a atenção por onde passasse. Os rapazes de idade semelhante a ela inventavam de cruzar a rua e atravessar o seu caminho em suas visitas à cidade. 

Vê-la era como contemplar uma obra de arte viva. E sua pulcritude se ampliava, dotada que era de modos delicados. Embora involuntariamente, ela trazia a postura de uma princesa europeia, tornando-a centro das atenções. “Lá vai a filha da dona Serafina!”. “Vejam, é a filha do senhor Joaquim!” São unânimes em descrevê-la dessa forma todos quantos a conheceram, portanto transcrevo a síntese dessa oralidade.

Cidinha devia contar os seus dezoito anos de idade, e começou a se incomodar com a falta de assessórios femininos que às moças muito encantam: cosméticos, roupas mais elaboradas, sapatos diferenciados, bijouterias e coisas do tipo. 

Um dia ela disse para a mãe que queria trabalhar.  Já não era mais a época dos caixeiros viajantes, portanto ela deveria sair do lugar comum. A mãe orientou que ela se aquietasse, afinal eles tinham de tudo e ela certamente alimentava vaidades. 

Ela dizia aos filhos que a cidade nascia e ainda não oferecia um bom comércio, não havia oportunidades de emprego, exceto de empregada doméstica, já que muitos fazendeiros mantinham casas no centro da cidade. 

A menina dedilhava daquela tecla diariamente, instigada por esses quereres naturais, que afetam a todos.

Outra vez, dobrada pela insistência da filha, a mãe a deixou ir à cidade para o seu intento. Havia chovido durante a manhã e alguns trechos da estrada de barro formaram grandes poças de água e lama. 

Foi exatamente na aproximação de uma dessas poças que, de tardezinha, o meu pai a viu de longe e desacelerou o seu caminhão Studebacker, 1947, comprado do senhor Ziza, um seu compadre, padrinho de uma irmã mais velha. Assim os pneus não espirraram lama na jovem Cidinha. 

Enquanto o meu pai ia para a cidade, retornando da fazenda Uerê, Cidinha retornava para o sítio. Caminhos opostos (mas antes ele estivesse indo ao destino dela, pois lhe teria oferecido carona, e eu não estaria aqui contando essa história bárbara e que muito me cansa).

A tarde envolveu a cidade. Cada um em suas casas. Cada um fazendo o corriqueiro. Uns preparando a janta, outros passando o café, uns colocando lenha no fogão, outros chegando da lida da vida, mas àquela casa lá do Sítio Pioneira, Cidinha não retornou. 

A família já havia se abalado até o centro da cidade, procurando-a. Passava das cinco horas. Não era momento de andar a pé naqueles ermos de matas onde transitavam animais silvestres nos finais de tarde. Anoiteceu. Anoiteceu talqualmente os modos narrados acima. Naquele tempo a escuridão trazia uma fisionomia de carvão, então não era prudente que Cidinha voltasse sozinha.

Seus pais julgaram que ela se despercebeu do avançado da tarde e temeu retornar. Então correram até a cidade para buscá-la. Teria ficado na casa de algum conhecido? 

Na cidade corria de boca em boca que uma moça havia deixado o sítio depois do almoço e até aquela hora não retornara, e que seus pais peregrinavam as casas dos conhecidos, indagando se acaso ela teria estado ali. Nada!

A notícia estampou-se na cidade com muitas cores diferentes. O imaginário popular começou a pintar as mais variadas matizes. Ela teria fugido por alguma razão? Teria sido atacada por uma onça? Estaria na casa de algum conhecido e aguardava os pais? 

Os familiares baixaram na delegacia. A cidade entrou em polvorosa. Os amigos começaram a procurá-la. A família era querida por todos e Cidinha era muito conhecida. Mas, independente de tudo, aquele episódio era anormal, tendo em vista que eventualmente ela se deslocava, a pé, até cidade e retornava antes do anoitecer. 

A praça tornou-se uma espécie de ancoradouro do fato, cujas pessoas se reuniram, umas para ajudar a procurar, outras por mera curiosidade, outras ansiosas sem ter o que fazer, outras por serem amigas mais próximas dos familiares da moça. 

A igreja Matriz de São João Batista ficava defronte à praça. O padre celebraria missa às dezenove horas e foi-lhe solicitado que tocasse no assunto no final da cerimônia.

Pouco tempo depois, naquela mesma praça, um senhor passeava com um menino de uns 10 anos de idade, chamado de Chigueta. Era mais ou menos sete horas da noite.

Igual a todo menino de cidade interiorana, ele fazia das matas o seu parque de diversão. Os passarinhos de todo o Mato Grosso do Sul pareciam ter escolhido aquela região para viver. A fartura de matas e rios se tornava ideal para eles viverem e procriarem. 

O menino Chigueta criava passarinhos em gaiolas. Tinha o costume de rasgar as matas para montar armadilhas e arapucas. De tardezinha ele retornava com as gaiolas cheias daquilo que, para ele, eram os melhores brinquedos. 

Mesmo sendo contrário ao aprisionamento de animais, devo confessar que esse foi um caso cujos passarinhos foram peças fundamentais para elucidar um crime bárbaro, tendo em vista a autoria insuspeita.

Na praça também caminhava o pastor da igreja evangélica Assembleia de Deus. Ele era vizinho do garoto, no centro da cidade. Janela com janela. A igreja ficava no mesmo quarteirão. Foi a segunda denominação religiosa a se arranchar na cidade bem depois da católica. 

Era aquele homem o guia das almas protestantes do lugar. Homem calmo, solidário, querido por muitos. De repente, sem ter para quê, o menino solta as mãos do pai e corre desembestado para casa. O pai o chama, mas ele desaparece.

Era a segunda vez naquele mesmo dia que Chigueta se comportava de maneira estranha. Naquela mesma tarde, pouco mais das cinco horas, ela havia chegado em casa desesperadamente, sem gaiola e sem bicicleta, corrido até o quarto e entrado debaixo da cama, como se o diabo o perseguisse. Tremia como vara verde. 

A mãe indagou aquela maluquice. Ele disse que havia visto uma onça na mata e ela o perseguiu. Estava com medo. “Estás vendo? É por isso que eu vivo pedindo para você não andar sozinho por aí, há muito bicho nesses matos, mas você é teimoso; não quero você nunca mais nessas matas, vou mandar seu pai pendurar a bicicleta no telhado e quebrar suas gaiolas!”

Logo o pai de Chigueta chega e conta o acontecido. A esposa diz sobre o que se passou à tarde. Eles entenderam que o menino estava sob os efeitos do susto com a onça, portanto agia dessa forma esquisita. Ele trazia a fisionomia transfigurada. Uma impressão de pavor parece ter se congelado no seu rosto. 

Chigueta estava na calçada de sua casa, junto a seus pais, sentados. O movimento era intenso na rua. Os amigos passavam, cumprimentavam, conversavam. O assunto era o mesmo. Havia muitos transeuntes lá e cá, inquietados com o estranho fato. Dado momento, Chigueta entra para tomar água e vê o pastor se esgueirando em seu quintal, como cobra, ensaiando o bote.

O menino deu um grito e disparou para a calçada, gritando, assustando seus pais. Mas não disse o que era. Em sua inocência, jurado que estava, ele pensava que, contando aos pais, teria morte igual a Cidinha. 

Diante daquele comportamento estranho, o casal resolveu colocá-lo contra a parede: “afinal de contas, o que é isso, Chigueta? O que está acontecendo? Você está escondendo alguma coisa muito séria, o que houve?”. O garoto se debulhou em lágrimas, mas dizia que não era nada, que não sabia porque estava sentindo aquilo. 

Os pais já não ligavam mais aquele comportamento à história da onça. Eles sabiam que algo grave incomodava o filho, mas não faziam ideia do que era e estavam angustiados.

Chigueta chorou copiosamente durante uns trinta minutos, então a mãe, com muito cuidado, foi conversando, lhe acarinhando, dizendo que ele deveria falar o que o incomodava, que ela e o pai o iriam proteger fosse o que fosse. Logo o menino começou a debulhar a assustadora história.

Ele contou que tinha ido à mata, na região da Pioneira, que havia subido numa árvore e deixado a bicicleta escorada no tronco. No finalzinho da tarde ele viu um “Rapazinho-do-chaco”, um lindo pássaro que só existe no Mato Grosso do Sul, mas àquela ocasião era raro ver algum por ali, devido às migrações, portanto ele pastoreava a armadilha imóvel e em silêncio. Queria garantir aquele brinquedo. 

Eis que, sem nem mais para quê, ouviu um grito aterrorizante, mas muito curto porque pareceu ter sido abafado. Ele teve a impressão de ser voz feminina. Em seguida ouviu pisadas pesadas adentrando a mata, cujos galhos e folhas secas estalavam. Durante um bom tempo ele ouvia gemidos como se uma mulher tentasse gritar, mas eram sufocados, e um debater nos galhos secos. Também ouvia uma espécie de gemido grosso, trancado, como um porco chafurdando lama.

Chigueta se comportou como um tronco de árvore, teve medo, mas sabia que era impossível ser visto devido a densa vegetação. Ficou parado, tentando ler o ambiente. Chegou a imaginar que era uma onça ou um tamanduá-bandeira adulto, ou mesmo um boi ou vaca que houvesse estourado alguma cerca de fazenda. Mas não se convencia. Era estranho demais.

Os barulhos de folhas secas continuavam, mas ninguém aparecia. Algum tempo depois a mais traumatizante cena se desenhou diante de seus olhos. Ele vê um homem arrastando o corpo seminu de uma mulher. Sua pele era tão branca que os filetes de sangue se destacavam. Ela estava com muitos sinais vermelhos pelo corpo. 

Chigueta não imaginava quem era o cadáver, mas reconheceu o homem imediatamente. Era o seu vizinho pastor. O menino ficou petrificado. Seu coração palpitava numa profusão tão louca que ele ouvia o som abafado e intermitente, parecia um sino gigantesco crescendo, bimbalhando e doendo a sua alma, querendo explodir de dentro dele.

O homem deixou o corpo próximo a um arbusto e começou a arrancar capim, folhas e galhos, cobrindo o cadáver. Conforme recolhia mato, se distanciava do corpo para arrancar novos arbustos mais baixos. 

Eis que, ao se aproximar da árvore, viu a bicicleta, olhou para cima e ficou cara a cara com o menino. A fisionomia do assassino – descrita, depois, por Chigueta - era deplorável. A impressão que teve era que a retina dos seus olhos estavam dilatada; estavam vermelhos como fogo. 

Ele respirava como perdendo o fôlego, arfando igual a bicho e reconheceu o garoto. Mas, com a mesma destreza símia, Chigueta saltou para um galho do lado oposto, deslizou e pulou bem adiante, correndo desabaladamente. 

Dessa vez não era a onça imaginária que vinha em seu encalço, mas um assassino cruel e real. A iminência da morte se transformou no combustível que o encetava a correr como um louco, sem olhar para trás.

Chigueta conhecia a mata como se sua casa fosse, portanto levou vantagem. O assassino, com dificuldades de vencer as garrancheiras, árvores e os arbustos, e constatando que não conseguiria alcançar o garoto, berrava insandecido “não conte pra ninguém o que você viu, se contar eu mato você, te pego pela janela da sua casa, fique calado e eu não farei nada!” Aquelas palavras transformaram os pesinhos do menino num foguete.

Conforme Chigueta narrava o acontecimento, suas palavras soavam como espinhos pinicando as carnes.  Estava explicado o motivo de ele ter inventado a história da onça. Temia ser morto pelo pastor. Ele chorava copiosamente. Às vezes perdia o fôlego devido aos soluços que pareciam sair de sua alma. 

Encerrada a narração, os pais não contaram conversa. Pegaram o menino e partiram para a delegacia, que se encontrava abarrotada de gente. Era o único lugar de saber dos fatos, portanto uma multidão se aglomerou nas imediações. 

A denúncia foi feita. Naquele tempo as leis de proteção às crianças não eram como hoje. O pai prestou depoimento baseado na narração do filho. O menino acompanharia tudo.

Contam que a princípio, o delegado aparentou desacreditar no que ouvia, mas conservou suas impressões em segredo, afinal a cidade era um embrião nos idos de 1970, e todos se conheciam. 

O filme de terror não combinava com a imagem daquele santificado homem de Deus que ele conhecia. A presença do casal na delegacia - e com uma criança -, despertou curiosidade na população, mas até aquele momento ninguém sabia o que os trazia ali. 

Minutos depois o delegado e a família denunciante embarcaram numa Rural branca e preta com destino certo. A multidão, curiosa, não entendia.

Logo o veículo parou na frente da casa do pastor. Ele negou tudo, considerando ultrajante a abordagem, mas não perdeu a serenidade comparável aos monges. Ofereceu ajuda, acaso quisessem procurar no dia seguinte, ressalvando se tratar de um absurdo a acusação. Muito cordial com os vizinhos, o pastor os cumprimentou, mas ignorou a criança. 

A mãe do menino tremia como vara verde, enquanto Chigueta se protegia em seu corpo, cheio de pavor. Ele não conseguia olhar o religioso. A reação do garoto falava sem precisar palavras. A cena era um dilema. Em quem acreditar? A esposa do pastor presenciou tudo, aturdida, mas atenta. Ela seria peça importante no desfecho da história.

Naquela tarde Cidinha havia estado em várias residências no centro da cidade. Ela passou em diversas residências, pedindo emprego como empregada doméstica, mas não obteve sucesso. 

Eis que uma das casas que ela visitou foi do dito pastor, melhor dizendo, foi a última casa, tendo em vista o adiantado da tarde. Foi muito bem recebida pelo casal. Eles moravam sozinhos. A única filha residia no interior de São Paulo, onde estudava. 

Como é costume do povo sul-matogrossense, a esposa do pastor preparou café e preencheu a mesa de comida, enquanto conversavam. A anfitriã puniu-se por não poder empregá-la, alegando que era apenas ela e o pastor na casa, portanto dava conta dos serviços sem maiores contratempos.

Cidinha, em sua simplicidade, contou que morava no Sítio Pioneira, e que dali voltaria para casa, pois estava na cidade desde depois do almoço. Ressaltou que queria muito trabalhar para não depender dos pais. 

Ficaram conversando no alpendre do quintal, enquanto o pastor, mais reservado, passava lá e cá, executando algum afazer, sempre discreto. Pouco mais, ele se despediu de Cidinha, desejou-lhe boa sorte, disse à esposa que ia à igreja resolver uma demanda e retornaria ao finalzinho da tarde. Nada anormal. Aquilo era praticamente a sua rotina.

Percebendo que o tempo se alaranjava, Cidinha agradeceu a cordialidade daquela família tão delicada e se despediu. Seria possível chegar em casa nos últimos cabelos do sol. A anfitriã a levou até o portão, e Cidinha partiu. O que se passou minutos depois o leitor, barbaramente, já tomou conhecimento.

Pois bem, a essa altura, os pais de Cidinha se encontravam em estado deplorável na delegacia. A mãe já havia desmaiado. A multidão presente, chorava. A notícia da suspeita de que a filha havia sido morta pelo pastor era o único assunto da cidade. 

A perplexidade tomava conta de todos. Os fiéis da igreja tratavam o fato com reservas. As demais opiniões da população variavam entre dúvidas, defesas e condenação. Alguns entendiam que uma criança não podia mentir com tantos detalhes.

Eis que diante das alegações do pastor, o delegado o convidou para entrar no veículo e ir até o local alegado pelo menino. Assim tudo seria esclarecido, já que ele defendia que era fantasia do menino. 

Ele negou enfaticamente, não queria entrar no veículo, dizia que estava diante de uma desmoralização à sua pessoa, pois era um pastor, tinha consciência de o quanto o fato ia contra os valores cristãos. Enfim, se recusava a fazer o que o delegado sugeria. 

Àquela altura a casa do religioso fervilhava de fiéis de sua igreja. Eles diziam que as acusações eram obra do demônio, que o pastor estava sendo caluniado por pessoas endemoniadas, e que tudo seria esclarecido.

O pastor, ao se recusar a ir até o local alegado pela criança, o fazia com calma e tranquilidade impressionantes. Não era difícil a qualquer pessoa julgar que aquilo era uma injustiça feita a ele.

Conversa vai, conversa vem. Diante da recusa do religioso de ir ao possível local do crime, o delegado mandou os policiais algemá-lo e foram todos para a estrada do Sítio Pioneira. 

O veículo se afastou da cidade e adentrou a estrada rural. A escuridão era absoluta. A única luz era a do veículo. Minutos depois o garoto apontou o trecho: “pode parar ali, dá para entrar”. 

Todos desceram com faroletes acesos. O pastor dizia a cada instante que aquilo era uma injustiça, que ali não tinha nada e eles deveriam investigar quem de fato fez o que o menino alegava.

A criança, agarrada ao pai, ia na frente, mostrando o caminho, dizendo com firmeza “é ali, a moça está ali”. Logo começaram a ver galhos quebrados e mato prensado por pisadas recentes. 

Havia sangue em alguns troncos de árvore e arbustos. A bicicleta foi vista em seguida. No mesmo lugar. Não demorou muito eles se viram diante de uma montanha de mato. O garoto disse “a moça está aqui embaixo”. 

Os policiais pediram para os pais se afastarem com a criança. De fato, era Cidinha. Estava como uma pedra branca de mármore, gelada, pintada de marcas roxas e sangue. As formigas caminhavam sobre o corpo. 

O pastor demonstrou-se horrorizado com a cena, alegando misericórdia à vítima; afirmava, com a tranquilidade de um santo, que aquilo não tinha sido feito por ele, que tamanha monstruosidade era obra de um endemoniado. Dizia que faziam uma grande injustiça a ele.

Constatado o assassinato, todos retornaram ao centro da cidade. A polícia deixaria o casal e a criança em casa, e levaria o pastor para a delegacia. 

Ele não poderia ser liberado, inclusive os pais contaram a cena passada no quintal, cujo filho flagrou o pastor na escuridão. Eram muitos indícios, mas faltavam provas concretas. Na delegacia o pastor seria ouvido com mais rigor. Naquele tempo eles torturavam barbaramente os criminosos. 

O delegado providenciou a equipe para retirar o corpo. Apesar de toda aquela materialidade, não havia como incriminar o pastor, mas, como suspeito, ele deveria ficar na delegacia, onde uma multidão se instalava. Tudo poderia acontecer, então entraram pelos fundos e instalaram o pastor numa cela, único lugar seguro.

Assim que chegaram, receberam a visita da esposa do pastor. Ela pediu um momento com o delegado. Conversaram alguns minutos a sós e saíram acompanhados de um policial até a casa dela. A multidão fervilhava.

Nesse interim, a energia elétrica da cidade havia sido desligada. A cidade estava preta. Ao chegar, ela acendeu o lampião e levou o delegado e o policial até o fundo do quintal. Havia uma lata de alumínio ao lado de um tanque de lavar roupa. O pastor, pela primeira vez em toda a sua vida, havia colocado a sua roupa suja de molho. 

A esposa observou aquela novidade e estranhou muito. Horas antes, quando os policiais chegaram para questioná-lo sobre as alegações da criança, ela ligou os fatos, por isso ficou atenta. 

Somente quando todos saíram ela foi até a vasilha e observou muitas manchas vermelhas na calça e camisa. Mas não tocou. Preferiu esconder a vasilha e mostrá-la apenas à polícia. O depoimento da esposa do pastor e a prova do crime foram decisivos na elucidação dos fatos.

Posteriormente, foi constatado se tratar de material humano. Era o sangue de Cidinha. Seu álibi de ter estado na igreja naquela tarde não funcionou, pois uma irmã informou que, de fato, ele havia estado ali muito rapidamente, mas saiu em seguida, pouco mais de quinze horas da tarde.  

A família estava dilacerada. A cidade viveu o seu momento mais triste. Foi um dos velórios e enterros mais piedosos que se tem notícia. Para a população era como enterrar um anjo. 

No local do assassinato a família mandou fincar uma grande cruz de madeira de lei. Eles mandaram abrir uma pequena clareira na mata, deixando à mostra aquela lembrança triste. Quem passava naquela estrada, olhava e via a cruz. 

O fato, horroroso, se demorou décadas nas mentes da população. O local do crime adquiriu uma aura macabra. Durante longo tempo, ninguém andava a pé por ali depois das cinco horas da tarde. 

Eu mesmo, que era menino-mateiro, mas de outra geração, nunca andava ali sozinho, pois cresci ouvindo essa história de terror. O local adquiriu um aspecto que chamávamos de “mal assombrado”. Só depois, adolescente, andava de bicicleta e passava próximo. 

Hoje a cruz não existe mais, pois a cidade se espraiou amplamente, empurrando as matas para longe. O progresso foi chegando e a cidade nada lembra o que foi. 

Aquela cidade que nascia, que não tinha comércio, que não tinha emprego, hoje está completamente asfaltada e muito evoluída, pois passaram-se muitos e muitos anos. Contaram-me que o local exato do crime, atualmente é a entrada de uma casa, exatamente o jardim.

Depois, apurados os fatos, todos tomaram conhecimento do que realmente se passou nos bastidores do crime. 

O assassino deixou a sua casa, se despediu de Cidinha, passou na igreja para garantir o álibi e foi em destino à estrada da Pioneira. Ficou na tocaia, atrás dos abundantes arbustos, sabendo que ela voltaria para casa em seguida, conforme escutou o diálogo com sua esposa. No momento que ela passou, ele a atacou, tapando a sua boca com um pano.

A descrição dos autos é assustadora. Além de estuprar Cidinha, ele mordeu todo o seu corpo. Havia partes em que ele arrancou os pedaços de suas carnes. Ele mordeu os seus seios de tal forma que arrancou os mamilos (que chamamos “bicos”). Em sua sanha psicopática, ele a enforcou, unindo os tecidos do próprio sutiã e calcinha da vítima. Somente um psicopata faria isso.

Confrontando o depoimento de Chigueta com o depoimento do assassino, é possível reconstruir com exatidão a cena do crime, como se estivéssemos presenciado. 

Quando Chigueta ouviu o grito foi quando ele a atacou. As pisadas pesadas, quebrando folhas secas e galhos, deram-se quando ele a arrastava para a mata. Os gemidos abafados ocorreram no momento do estupro. O silêncio revelava o enforcamento e morte. As demais cenas o leitor já conhece.

Sabe-se que se ele tivesse pego o menino no quintal, o teria matado e certamente jamais alguém teria descoberto o fato. 

A esposa, que percebeu a cena inusitada , quando ele colocou a roupa de molho pela primeira vez em toda a sua vida, até poderia tê-lo questionado, mas com certeza ela teria o mesmo destino da vítima.

Especialistas afirmam que os psicopatas, quando encurralados, matam pessoas como matamos pernilongos. 

Também observamos que, a princípio, o delegado aparentou desacreditar no que ouvia. Não era estranho, afinal se tratava de um pastor. Estamos falando de um fato que aconteceu há mais de 50 anos. Num tempo que tal fato era inédito, portanto era muito fácil descartar o acusado da cena do crime. 

O delegado conservou suas impressões em segredo – pela dúvida e pelo dilema –, e a verdade foi se anunciando conforme as colcha de retalho era costurada.

Pois veja. Essa é uma história real. Ela impactou muito a minha infância e adolescência devido ao grau de monstruosidade do assassino. Aliás, todos da cidade sempre contavam essa barbárie. 

O fato de o meu pai ter passado por Cidinha, minutos antes de sua morte, o entristeceu muito também. Ele sempre contava que se soubesse do que estava prestes a acontecer, a teria salvo. Mas quem imaginaria algo tão indescritível?  

Essa história percorreu muitos municípios sul-mato-grossenses. Logo em seguida um compositor de músicas sertanejas compôs uma letra que foi musicada por alguns intérpretes da região. 

Era comum escutá-las nos bares locais, mas ninguém ousava cantá-la na presença dos pais de Cidinha nem dos familiares. Eles não suportavam ouvi-la. 

Em 1981, uma escritora local escreveu um livro da história do município e colocou a letra dessa música nos excertos. Está na última página. 

Na última vez que estive no Mato Grosso do Sul, o assunto caiu numa roda de tererê. Soube que os evangélicos não gostam que contem nem que cantem essa história na cidade. Mas isso é bobagem, pois história é fato. História é História. Aquele pastor foi aquele pastor. Aquela história foi a história dele. Ele escreveu para ele.

O monstro foi preso, julgado e permaneceu preso. Morreu preso. Mas também matou a alegria da mãe.  Contam que, enquanto teve vida, ela guardou os pertences da filha numa caixinha de madeira, inclusive esse seu comportamento gerou diversas fábulas no imaginário popular. 

E Chigueta? Infelizmente a aterrorizante experiência mexeu tanto com o seu psicólogo que ele se tornou uma pessoa introspectiva. Não quis mais estudar e se transformou-se num alcoólatra. Infelizmente morreu muito cedo, sempre contando às pessoas sobre o crime que, de certa forma,  também o matou.

Seja como for, aquela mãe forte, trabalhadora, do bem, nunca mais foi feliz. Nem ela, nem o marido. Os irmãos ainda pareciam dissipar a dor, mas o casal se fechou numa amargura que levaram para o cemitério. O reencontro com a filha se deu da maneira como não costumamos esperar. Hoje todos estão juntos no mesmo túmulo...




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