ANTES DE LER É BOM SABER...

CONTATO: (Whatsapp) 84.99903.6081 - e-mail: luiscarlosfreire.freire@yahoo.com. Este blog - criado em 2008 - não é jornalístico. Fruto de um hobby, é uma compilação de escritos diversos, um trabalho intelectual de cunho etnográfico, etnológico e filológico, estudos lexicográficos e históricos de propriedade exclusiva do autor Luís Carlos Freire. Os conteúdos são protegidos. Não autorizo a veiculação desses conteúdos sem o contato prévio, sem a devida concordância. Desautorizo a transcrição literal e parcial, exceto breves trechos isolados, desde que mencionada a fonte, pois pretendo transformar tais estudos em publicações físicas. A quebra da segurança e plágio de conteúdos implicarão penalidade referentes às leis de Direitos Autorais. Luís Carlos Freire descende do mesmo tronco genealógico da escritora Nísia Floresta. O parentesco ocorre pelas raízes de sua mãe, Maria José Gomes Peixoto Freire, neta de Maria Clara de Magalhães Fontoura, trineta de Maria Jucunda de Magalhães Fontoura, descendente do Capitão-Mor Bento Freire do Revoredo e Mônica da Rocha Bezerra, dos quais descende a mãe de Nísia Floresta, Antonia Clara Freire. Fonte: "Os Troncos de Goianinha", de Ormuz Barbalho, diretor do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, um dos maiores genealogistas potiguares. O livro pode ser pesquisado no Museu Nísia Floresta, no centro da cidade de nome homônimo. Luís Carlos Freire é estudioso da obra de Nísia Floresta, membro da Comissão Norte-Riograndense de Folclore, sócio da Sociedade Científica de Estudos da Arte e da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Possui trabalhos científicos sobre a intelectual Nísia Floresta Brasileira Augusta, publicados nos anais da SBPC, Semana de Humanidade, Congressos etc. 'A linguagem Regionalista no Rio Grande do Norte', publicados neste blog, dentre inúmeros trabalhos na área de história, lendas, costumes, tradições etc. Uma pequena parte das referidas obras ainda não está concluída, inclusive várias são inéditas, mas o autor entendeu ser útil disponibilizá-las, visando contribuir com o conhecimento, pois certos assuntos não são encontrados em livros ou na internet. Algumas pesquisas são fruto de longos estudos, alguns até extensos e aprofundados, arquivos de Natal, Recife, Salvador e na Biblioteca Nacional no RJ, bem como o A Linguagem Regional no Rio Grande do Norte, fruto de 20 anos de estudos em muitas cidades do RN, predominantemente em Nísia Floresta. O autor estuda a história e a cultura popular da Região Metropolitana do Natal. Há muita informação sobre a intelectual Nísia Floresta Brasileira Augusta, o município homônimo, situado na Região Metropolitana de Natal/RN, lendas, crônicas, artigos, fotos, poesias, etc. OBS. Só publico e respondo comentários que contenham nome completo, e-mail e telefone.

domingo, 21 de abril de 2024

ACTA NOTURNA – DÉCADA DE 40 - NATAL/RN: EMBARQUE DOS NORTE-AMERICANOS MORTOS DURANTE A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL...



Durante a Segunda Guerra Mundial, Natal recebeu os caixões com os restos mortais dos soldados norte-americanos, mortos em diversas partes do mundo. Os ataúdes foram trazidos para a Base Aérea Norte-Americana instalada em Natal/RN, sepultados provisoriamente em solo potiguar como uma espécie de acomodação temporária, cujos ossos seriam trasladados ao final da guerra, como de fato aconteceu. Também aconteceu de soldados chegarem aqui muito feridos e vinham a óbito em seguida.
 
À ocasião do translado, todos foram cobertos com a bandeira daquele país. A Guerra trouxe alguns avanços para Natal e imediações, por mais irônico que pareça. Como dizem, foi o único lugar no mundo que lucrou com esse mal. Os norte-americanos chegaram por aqui em 1942 e partiram em 1945. Foi um período eufórico. Muita transformação. Muita novidade. Os natalenses, ainda sob efeito do maior choque até então – proveniente da “Intentona” Comunista – tremeram com toda sorte de novidades. E os norte-americanos também. Eles conheceram as presepadas dos potiguares. Quase urubu por galinha. Compraram saguis selvagens - meigos e doces, sob efeito de cachaça - mas, despertados da água que passarinho não bebe, ‘tascaram’-lhes mordidas. Por sorte havia antirrábica em estoque. Aprenderam que brasileiro é criativo. Aprenderam que o povo potiguar levanta uma casa em um dia. 
 
Tom Browning, de 22 anos

Daqui eles levaram centenas das famosas “Natal Boots”, feitas pelo sapateiro Edísio. Ele enriqueceu depois que sua invenção agradou aos filhos do Tio Sam, os quais desconheciam aquele modelo. Casamentos? Houve muitos. Mas muitos pais e mães norte-americanos choraram a perda de seus filhos, os quais saíram alegres e esperançosos de diversas regiões dos Estados Unidos, dizendo “vou para a guerra, mas volto!” E voltaram, mas mortos. Assim também foi o caso de muitos brasileiros, no céu, na terra e no mar. 
 

Dentre poucos americanos mortos exatamente em solo natalense, um permaneceu enterrado no Alecrim, vítima de meningite. Foi Tom Browning, de 22 anos (esse da fotografia 3x4). A noiva brasileira pediu que não levassem o seu corpo. Os pais do noivo aceitaram aquela espécie mórbida de casamento. Com certeza amenizava as dores de ambos os lados. Contam que, enquanto teve vida, ela chorou sob o seu túmulo... coisas que talvez não existem mais... coisas do passado... coisas da guerra... São os bastidores da história de Natal, dentre incontáveis outros…

 

 

Reconhecimento e Reparação a Nísia Floresta Brasileira Augusta...


Alguns estados brasileiros e de alguns países estão em festa, orgulhosos, por assistir a USP, maior universidade da América Latina, jogar holofotes sobre seus conterrâneos notáveis da literatura. Alguns de repercussão nacional, outros, internacional. Do Rio Grande do Norte teremos o nosso nome maior – Nísia Floresta Brasileira Augusta – conhecida mundialmente e a mais velha da lista. Houve uma nova seleção de leituras obrigatórias para o exame da Fuvest, vestibular para o ingresso na Universidade de São Paulo (USP) para o período de 2026 a 2028 e, a meu ver, pagou-se um dívida grande que tinham com Nísia Floresta. 
 
Há muito rigor nessas escolhas. O objetivo da USP é claramente valorizar o papel das mulheres na literatura, não apenas como personagens, mas como autoras. No que se refere a escolha do nome de Nísia Floresta, acredito que, mais do que reconhecê-la como uma intelectual ímpar, visualizo uma reparação à sua história e à sua obra. Parece-me que se tornou insustentável a USP, enquanto o grande centro intelectual da América Latina, seguir alimentando empecilhos que travavam essa reparação. Não havia mais como resistir diante do “Dai a César o que é de César”. O caso de Nísia Floresta é de vanguarda. Ela veio primeiro, abrindo o caminho com facão. A USP não podia continuar postergando ainda mais a necessária visibilidade a Nísia Floresta em detrimento do que quer que fosse.
 
Na verdade quase todas as mulheres dessa lista, precisamente as pioneiras sofreram marginalização. Ao longo das décadas, os louros foram jogados à elite, como se só da elite fluísse uma mente genial. Não era comum ver homens pretos, indígenas e pobres – mesmo geniais – levados ao panteão da glória, e quando se tratava de mulheres, o percentual era zero. Nísia Floresta, por sua história de vida chocar a sociedade da época, simplesmente pelo fato de ser separada do marido e, depois, viúva, já era motivo de ser “uma pessoa non grata” à época.
 
Nísia reunia em si tudo o que causava desconforto à mentalidade da época. Essa sociedade não enxergava nem reconhecia pensadoras como ela. Pesava ainda o fato de ela ser nordestina, considerando que o eixo Rio/São Paulo sempre foi visto como berço de grandes vultos históricos, pelo menos é o que sempre mostravam as mídias da época. A propósito, é possível constatar em diversos jornais e revistas do eixo Rio/São Paulo do início do século XIX, algumas mulheres divulgadas como pioneiras em áreas cujo mérito verdadeiro pertencia a Nísia Floresta. Mas como a história e a obra de Nísia estavam em locais esquecidos – inclusive fora do Brasil –, outros ganhavam os louros até que a história de Nísia Floresta fosse redescoberta e os erros reparados.
 
Com relação a lista, são 10 nomes. Escolheram exclusivamente autoras de língua portuguesa, brasileira e estrangeiras como a ucraniana (praticamente brasileira) 1) Clarice Lispector (1920-1977), criada no Pernambuco desde os 2 anos de idade, também jornalista e tradutora brasileira. Autora de romances, contos e ensaios. É considerada uma das mais importantes do século XX. 2) A paulista Lygia Fagundes Telles (1918-2022, também conhecida como "a dama da literatura brasileira" e "a maior escritora brasileira" enquanto viva, foi considerada por acadêmicos, críticos e leitores uma das mais importantes e notáveis escritoras brasileiras do século XX e da história da literatura brasileira. Advogada, romancista e contista, Lygia teve grande representação no pós-modernismo, e suas obras retratam temas clássicos e universais como a morte, o amor, o medo e a loucura, além da fantasia). 3) A norte-rio-grandense Nísia Floresta (1810-1885), escritora, educadora e poeta – a mais antiga da lista – foi a primeira feminista da América Latina, tendo escrito em livro, em 1832, que a mulher precisava ter acesso a todas as ciências, pois só assim teria condições de até mesmo governar o país e colaborar na construção de uma nação civilizada; primeira mulher a tecer ideias abolicionistas no Brasil (muitos anos da Princesa Isabel nascer), foi indianista, republicana e suas reflexões inegavelmente a elevam à condição de filósofa. 4) A cearense Rachel de Queiroz (1910-2003), escritora, jornalista, tradutora, cronista prolífica e importante dramaturga brasileira. É considerada uma das maiores escritoras brasileiras do século XX, tendo sido uma figura pioneira no cenário literário nacional, sobretudo, na produção intelectual e criativa feminina. 5) A carioca Julia Lopes de Almeida (1862-1934) cronista, teatróloga e abolicionista, uma das idealizadoras da Academia Brasileira de Letras. Tem uma produção grande e importante para a literatura brasileira, de romances, crônicas, peças de teatro e matérias jornalísticas. Foi colaboradora sistemática da publicação A Semana Ilustrada e na revista Brasil-Portugal. Seu primeiro romance, Memórias de Marta foi publicado em 1899. Seus temas tratam a República, a abolição e direitos civis. Colaborou com periódicos da imprensa de mulheres, como a revista A Mensageira, de São Paulo. Pioneira da literatura infantil no Brasil, seu primeiro livro, Contos Infantis (1886), foi escrito em parceria com sua irmã, Adelina Lopes Vieira. Em 1887, em Portugal, publicou Traços e iluminuras, outro livro de contos. Escreveu também para teatro. Sua coletânea de contos Ânsia Eterna, 1903, sofreu influência de Guy de Maupassant e uma das suas crônicas inspirou Artur Azevedo ao escrever a peça O dote. Em colaboração com o marido, escreveu, em folhetim do Jornal do Commercio, seu último romance, A Casa Verde, em 1932. 6) A mineira Conceição Evaristo (1946), linguista e escritora afro-brasileira. É uma das mais influentes literatas do movimento pós-modernista no Brasil, escrevendo nos gêneros da poesia, do romance, conto e ensaio. Como pesquisadora-docente, seus trabalhos focavam na literatura comparada. Após seu doutoramento, serviu como professora em diversas universidades. Suas obras, em especial o romance Ponciá Vicêncio, de 2003, abordam temas como a discriminação racial, de gênero e de classe. A obra foi traduzida para o inglês e publicada nos Estados Unidos em 2007. Foi laureada, em setembro de 2023, com o Troféu do Prêmio Juca Pato de Intelectual do Ano de 2023, mérito recebido por conta de sua contribuição à literatura brasileira, bem como também em decorrência do lançamento de ‘Canção para Ninar Menino Grande’, na qual a autora aborda de forma habilidosa as contradições e intricadas nuances que envolvem a expressão da masculinidade por parte de homens negros, explorando também suas repercussões nas relações com mulheres negras. Conceição foi condecorada com o título de doutora Honoris Causa pelo Instituto Federal do Sul de Minas Gerais, Universidade Federal do Oeste da Bahia e pela Universidade Federal do Paraná. Em 15 de fevereiro de 2024 foi eleita para a cadeira de número 40 da Academia Mineira de Letras, sucedendo a escritora e professora Maria José de Queiroz. 7) A angolana Djaimilia Pereira de Almeida (1982), professora da New York University. Cresceu em Portugal, nos arredores de Lisboa. Considerada representante de uma literatura acerca de raça, gênero e identidade, ganhou notoriedade em 2015, com o seu primeiro romance Esse Cabelo, que combina elementos biográficos com romance e ensaio e parte da experiência de uma garota de pele negra e cabelo crespo, oriunda de Angola, na sociedade portuguesa de meados dos anos 1980. Escreveu no New York Times, Granta, la Repubblica, Folha de S.Paulo, Serrote, etc, Escreve na Revista Quatro Cinco Um. Na Primavera de 2022, foi a escritora residente da Literaturhaus Zürich. Entre 2021 a 2023 foi nomeada consultora para os Direitos Humanos, Igualdade de Oportunidades e Não-Discriminação da Casa Civil do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa. Desde Setembro de 2023, é professora da New York University. Entre Maio a setembro de 2023, foi nomeada pelo Ministério da Cultura para integrar, como vogal, o conselho diretivo da Fundação Centro Cultural de Belém para o mandato 2023-2026. 😎 A carioca Narcisa Amália (1852-1924), tradutora, poeta, escritora, crítica literária, jornalista brasileira e professora. Foi pioneira como jornalista profissional no Brasil, além de abolicionista, republicana e feminista. 9) A moçambicana Paulina Chiziane (1955). Na juventude, atuou na Frente de Libertação de Moçambique, durante a Guerra de Independência. Publicou seu primeiro romance — “Balada de amor ao vento” — em 1990. É possível perceber que a escritora usa seus romances para fazer crítica de costumes e destacar a diversidade cultural de seu povo. 10) A portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004), uma das mais importantes poetas portuguesas do século XX. A primeira mulher portuguesa a receber o mais importante galardão literário da língua portuguesa, o Prémio Camões, em 1999. O seu corpo está no Panteão Nacional desde 2014 e tem uma biblioteca com o seu nome em Loulé.

"O Rio Grande do Norte não tem indígenas"...

Fotografia, feita no IFRN em 2020, traz alguns indígenas do RN.

O título desse texto é frase que sempre ouvi desde que que cheguei ao Rio Grande do Norte. Certa vez, conversando com um amigo, sobre os remanescentes indígenas potiguares, soube de uma informação que desconhecia em termos locais. Ele disse que durante a sua vida escolar, os professores falavam “O Rio Grande do Norte não possui indígenas... eles foram totalmente extintos”. Essa informação era praticamente uma sentença. 
 
Com essa tese moldada na própria escola, restou-lhe deixar os bancos escolares com essa informação tida como definitiva. Não tem indígena e acabou. E assim, durante anos ele olhou o cenário norte-rio-grandense como uma terra sem os povos originários.
 
Um dia ele entrou na universidade e descobriu que uma música tinha razão: “Não adianta ir a igreja rezar e fazer tudo errado...”. Ele só trocou a palavra ‘igreja’ por ‘escola’. Se bem que eu trocaria também ‘fazer’ por ‘saber’. Ele tinha aprendido errado durante o ensino fundamental.
 
Na UFRN os acadêmicos disseram que vivíamos emoldurados por remanescentes indígenas. Há pequenas comunidades em alguns pontos do estado. São poucos, mas são descendentes diretos dos indígenas originais.
 
O idioma e os dialetos deles desapareceram, mas são indígenas. Restou o seu sangue. Restaram os seus traços mesclados mas são indígenas. E estão lutando, ao lado de especialistas, para ressuscitar tradições e até mesmo o idioma principal.
 
Ele soube também que existiam remanescentes quilombolas. O Rio Grande do Norte é muito branco. A escravidão preta andou por aqui acanhadamente. Muito diferente da imensidão indígena. É outro assunto, mas parecido no trato historiográfico. Na realidade os intelectuais potiguares que escreveram sobre a escravidão preta e os povos indígenas no RN o fizeram de maneira diluída. Ninguém se aprofundou. Uns alegam que isso se deu porque ninguém dava valor a pretos e indígenas e era melhor esquecer essa página. Outros falam outras coisas que você já sabe. As garimpagens sobre tais temas são recentes, de certo modo, ela se ampliou mesmo durante o primeiro mandato do governo Lula, primeiro a ampliar as políticas públicas verdadeiramente cidadãs em prol dos povos originários. A pesquisa mais substancial sobre indígenas e pretos potiguares não tem trinta anos. Vejam o quanto se perdeu.
 
A partir daí o rapaz citado acima começou a olhar de maneira diferente para o Rio Grande do Norte, pois, com indígenas e pretos se tornava mais autêntica e fortalecida a identidade do povo potiguar. Aos olhos da atualidade é estranho ouvir uma professora dizer que não existem povos originários no RN. Mas naquela ocasião era esse o discurso e pronto! Como eles desapareceram sem deixar marcas? Ninguém fez essa pergunta. Nem certos pesquisadores. Mas infelizmente, naquele momento não tínhamos abertura para provocar uma discussão. É parecido como, atualmente, falar sobre ciganos.
 
É muito curiosa essa reflexão. Os indígenas potiguares viram a borduna do preconceito e da desvalorização de seus povos se virar contra eles. Sofreram perseguição e, amedrontados, passaram a negar a sua condição. Assim se miscigenaram cada vez mais. Era ruim ser indígena. Vergonhoso. 
 
Quem queria ser mal visto?
 
Mas a geografia humana impediu que esse conceito deplorável se eternizasse. Muitos ficaram em seus cantos ou nas proximidades. Outros se isolaram. Para ajudar a descortinar a identidade indígena, como disse, Lula, e depois, Dilma criaram e fortaleceram políticas públicas de respeito e valorização aos povos indígenas e isso deu um gás na coragem deles. de maneira que passaram a gritar aos quatro cantos “eu sou indígena”, “eu sou preto”. A partir de então a tese dos professores do passado passou a ser derrubada. A vida deles não é feita apenas de flores, mas aos poucos se fortalecem em todos os seus aspectos.
 
Hoje podemos dizer: O Rio Grande do Norte tem muitos indígenas. Eles estavam apenas escondidos, invisibilizados por quem deveria jogar-lhes os holofotes. Existem atualmente onze comunidades formadas por sete povos que legitimam o movimento indígena no Rio Grande do Norte. São esses:
 
1) Santa Terezinha, Marajó, Açuncena e Cachoeiras, comunidades formadas por um único povo que se denomina Mendonças Potiguaras do Amarelão;
2) Lagoa do Apodi, cujos índios se reconhecem Tapuias Paiacús.
3) Amarelão; Serrote de São Bento;
4) Sagi-Trabanda, cujo povo se declara Potiguara;
5) Caboclos de Açú, que se afirmam índios Caboclos;
6) Lagoa do Tapará, formada pelos Tapuias da Lagoa do Tapará ou Tapuias Trarairiús;
7) Catu, onde se identificam Potiguaras Eleotérios;
 
O Rio Grande do Norte tem índios, sim!
 
Após essa conquista o Brasil foi reorganizar a sua biblioteca. O MEC e o Ministério da Cultura passaram a elaborar materiais didáticos e de divulgação sobre os povos indígenas de todo o Brasil. Com relação ao Rio Grande do Norte foi derrubada a tese de respeitáveis intelectuais potiguares que davam como inexistentes qualquer comunidade indígena no RN. Não sei se isso foi um preconceito incubado ou não se preocuparam no vexame como seriam vistos no futuro.
 
Outro ponto interessante - e parecido - diz respeito aos escravizados africanos e descendentes diretos. Sabemos que os pretos escravizados chegavam ao solo potiguar por terra, vindo de Recife, pois, se até hoje nosso porto é praticamente um cais, imagine naquela época. Isso fez com que tivéssemos poucos pretos escravizados. Outro detalhe é que a miscigenação diluiu a cor. Raramente vemos um preto tisnado no Rio Grande do Norte, e quando vemos, com toda certeza, mais próximos eles estão de seus ancestrais africanos. 
 
Em Nísia Floresta, por exemplo, conheci várias famílias com pessoas plenamente pretas. Com certeza isso revela, não diria um quilombo (e até o poderia), mas grupos que se esconderam em suas imensas florestas no passado, e ali ficaram até o presente. E quando sabemos que nesse município houve um levante escravocrata na época da escravidão, óbvio que a coisa foi forte ali. Uma prima da minha mãe, Dirce Peixoto, contou-me que um velho oitizeiro plantado entre o Engenho São Roque e a estação Papary era uma ponto de compra e venda de escravos. O que não soa estranho em sendo toda essa localidade berço de incontáveis engenhos.
 
Há pouco mais de 20 anos o jornal Folha de São Paulo publicou uma informação bastante interessante sobre a vinda de um grupo de antropólogos e pesquisadores de áreas afins da USP que vinham ao Rio Grande do Norte ensinar línguas originárias a remanescentes indígenas, justamente para permitir-lhes reconhecer sua identidade perdida e suas raízes culturais.
 
Já estou careca de contar por aqui mesmo, no facebook que nasci em meio aos povos Guarani-Kaiowá, no Mato Grosso do Sul. Eles falam fluentemente diversos dialetos originários, mesmo falando o idioma guarani. Nesse caso - diferente dos indígenas potiguares - eles nunca perderam suas raízes comunicativas, portanto acredito que dificilmente eles retomariam a sua comunicação em seus dialetos e idiomas originários. E, falando francamente, não vejo isso como um defeito. Eles são indígenas e pronto. São indígenas e são iguis a mim e a você. Não importa que muitas de suas linguagens originárias se perderam juntamente com hábitos e tradições. Sabemos que nessa reparação recente em que o Governo Federal resolveu criar políticas públicas de dignidade aos povos indígenas, algumas pessoas pegam carona, forçam a barra e se passam por indígenas (conheço de perto alguns casos), mas são minorias. A honestidade não ficou para todos (é outra história).
 
Em 1992, falando sobre a riqueza dos povos indígenas num determinado município e analtecendo-os, apontei uma bela jovem e disse "você é uma índia pura". Para quê? Ela teve um susto e a partir de então conservou um rancor terrível de mim. Foi acabar muitos anos depois, certamente percebendo que eu não falei aquilo como ela entendeu (como ofensa, espécie de xingamento). De fato eles sentiam vergonha, mas justamente por séculos de apedrejamentos. Demorou para que eles acordassem às custas de muito incentivo. 
 
Particularmente, sempre tive profundo respeito por eles. Nasci cercado deles e os amarei até morrer. São seres humanos iguais e tão capazes quanto qualquer outro ser humano do planeta. Obviamente que há os que não querem se familiarizar com a urbanidade, preferem o mato e devem ser respeitados, e há os que chegaram às universidades como alunos e professores. Inclusive, há poucos dias um intelectual indígena chegou brilhantemente à Academia Brasileira de Letras.

 

A primeira indianista do Brasil e que também era indigenista...

 
Nessa data significativa, trago a reflexão de um trecho de "A Lágrima de Um Caeté", extenso poema histórico da nossa notável Nísia Floresta Brasileira Augusta, reeditado algumas vezes pela professora mineira Constancia Lima Duarte que doutamente o comenta. Em pleno ano de 1849, Nísia aponta todos os holofotes aos Caetés e GRITA ALTO contra o genocídio indígena. Eu disse 1849, ou seja, há 123 anos. Vejam que é antiga a guerra injusta contra os povos indígenas. Então ela nos mostra um índio que se sentia derrotado naquela época. Ora! Há quase um século e meio. DERROTADO? E quando sabemos que essa era a realidade dos indígenas de quase todo o Brasil, reconhecemos, claramente que ela elegeu os Caetés para traduzir a realidade nacional.
 
Percorram as literaturas e a Historiografia e procurem indianistas indigenistas antes dela. Ou contemporâneos dela. Talvez alguém citará José de Alencar - bem depois - com sua tríade de obras famosas, que todo brasileiro traz na ponta da lingua. Mas não! Alencar veste os índios com roupas de heróis. Seus índios são idealizados, são alegorias... São cavaleiros que nada tem de índios na acepção pura da linguagem. Lembram os pintores europeus que pincelavam índios de sobretudo e fraques. Ou os diários de viagem, que narravam índios alegorizados.
 
A nossa Nísia tira essa roupa. Ela despe-o, desnuda-o... elá descortina uma floresta destruída e índios derrotados. O espetáculo é triste e emociona. Enquanto Alencar os faz chorar por desilusões amorosas, conflitos culturais e mortes, POIS SEUS ÍNDIOS SÃO INVENTADOS, 'NOVELIZADOS', a nossa Nísia nos faz chorar apresentando o índio real. E qual era o índio real? O índio real - pelo menos em quase todo o Nordeste de sua época - os Caetés especificamente - ERAM ÍNDIOS SEM IDENTIDADE - sem terra, sem eira nem beira. Antes, a selva os sombreava com árvores que arranhavam os céus.
Trecho do livro "A lágrima de Um Caeté", 1847, relançado por Constância Lima Duarte.
 
 De repente passaram a viver à sombra dos portugueses, das armas, das guerras, dos desmatamentos, da invasões de área... Os pobres nativos não poderiam se sentir índios porque uma cultura estranha emanava de todos os lados, obrigando-os a não serem ninguém.
 
Se não eram mais SELVAGENS, então se tornaram CIVILIZADOS? Claro que não! Como ser civilizado numa cultura alienígena e hostil? Como ser civilizado vomitando palavras em tupi, sem entender nada do idioma invasor? QUE ERAM OS ÍNDIOS ENTÃO? É essa a grande pergunta. E somente a nossa Nísia a fez, diferindo de todos, inclusive dos famosos autores que caíram na graça e no modismo da Literatura daquele período, classificados como os primeiros indianistas do Brasil. Ora! Muito mais que isso foi a nossa Nísia, e no entanto é renegada.
 
A Historiografia não enxergou-a como primeira indianista do Brasil. E para coroar a sua capacidade visionária, ainda garanto a você, leitor, que ela também foi a primeira indigenista brasileira. Antes dela ninguém se debruçou sobre o assunto com acuidade e aura jornalística. Talvez por isso que "A Lágrima de Um Caeté" - em cujos versos também é acomodada o episódio da Revolução Praieira, e ela enaltece um de seus grandes líderes - foi censurada pelos olheiros do Imperador.
 
Embora ela nunca escreveu sobre isso, fica fácil supor pelos pontilhados em que ela, INTELIGENTEMENTE, permeou os versos. A obra, de fato, era um insulto. Se fosse hoje a nossa Nísia seria cognominada "Comunista", o diabo a quatro... fazer o quê?! Pois bem, aproveitei essa data que tanto respeito para lembrar aos leitores que a nossa Nísia não andou por aqui para brincar...

 

ESCULTURA DE UMA CRIANÇA INDÍGENA FEITA POR DIONÍSIO, PAI DE NÍSIA FLORESTA

 

Hoje, no dia dos povos indígenas, nada melhor que apreciarmos essa lembrança que mais nos aproxima da família de Nísia Floresta, tendo em vista ter sido feita por Dionísio, pai de Nísia Floresta. Trata-se de uma criança indígena esculpida por ele em pedra-sabão e adaptada às paredes de pedra da sacristia da Igreja Matriz de Nossa Senhora do Ó (1735-1755), em Nísia Floresta/RN. É uma escultura bem criativa. A criança está com as mãos para cima, como quem leva algo sobre a cabeça. E esse algo é um lavabo (pia) onde os sacerdotes lavam as mãos antes e depois das celebrações. Esse conjunto é todo em pedra-sabão. A escultura desperta alguns pensamentos... tipo: onde o sr. Dionísio a esculpiu? (Certamente foi no sítio Floresta). Quem teria presenciado? O que motivou e como se deu a instalação dessa peça dentro da Matriz? 

 
Dizem que “não há um mal que não traga um bem”. Por curiosidade, devo-lhes informar que só se sabe a autoria dessa escultura graças a Isabel Gondim. Está naquela “famosa” carta de 1884, que ela escreveu o que o leitor bem conhece (e quem não sabe é só procurar pelo título “A Carta de Isabel Gondim e Outros Textos Malditos”) no meu blogue. No corpo do texto, Isabel traz essa importante informação. Se Isabel não tivesse escrito a tal carta, ninguém saberia desse detalhe tão importante, e a escultura seria, hoje, de autoria desconhecida, assim como tantos elementos decorativos existentes na Matriz. Pois bem, eis uma pérola que temos em Papary, e que, graças a Isabel, temos a importante informação... As demais fotografias são da pia onde Nísia Floresta recebeu o sacramento do batismo.


 

 

O Palácio Catetinho, em Brasília, uma visita que fiz em 1996...

Eu ao lado do sr. Antonio, compadre do  ex-presidente Juscelino.

Aproveitando que hoje é o aniversário de Brasília, saúdo o seu povo e, em especial, os Candangos nordestinos. Em 1996 visitei Brasília pela primeira vez, onde residem alguns parentes meus. À ocasião, quis ir ao Catetinho, que foi a primeira construção erguida em Brasília. É toda em madeira. Foi feita para acomodar o então presidente Juscelino Kubistcheck de Oliveira (fundador da nova capital) quando tudo aquilo era uma floresta. Uma prima me levou ali e o ambiente me impressionou muito pelo bucolismo do local que nem parece que estamos na capital do Brasil. Parece um sítio, tem até um riacho natural. 
 
Imagino quão remoto seria o local em 1957. O local foi escolhido por ter um riachozinho de águas cristalinas e ser adequado para pousos de aeronaves. Mas a maior curiosidade do local foi ter conhecido o Sr. Antonio, compadre de Juscelino Kubishtcheck. Ele era aposentado pelo distrito , mas trabalhava ali como uma espécie de funcionário de honra, afinal ele próprio era a história viva dos primórdios de BSB. O Catetinho é uma casa muito confortável e espaçosa. 
 
Tudo ali é grande: a cozinha, as salas, o banheiro. Inclusive ela foi construída bem alta por causa dos animais selvagens que apareciam em abundância por ali. Tudo na casa é original e de época. O sr. Antônio me contou episódios incríveis vividos ali com o seu grande amigo. Disse que Juscelino era a simplicidade em pessoa. Consegui algumas informações curiosas dele em razão de a minha prima ir muito ali, e já ser considerada amiga do Sr. Antonio. Ali houve sucessivas fogueiras, bailes, bingos, rodas de conversa, churrasco... sob a cumplicidade da escuridão da floresta e os olhinhos dos bichos acesos nas matas... assim ele me contou... Ele também contou que Juscelino era a simplicidade em pessoa, muito alegre e fazia todos se sentirem bem ao seu lado. Eis que, mexendo em fotografias velhas, dei-me com esses exemplares marcantes de 1996.

 

 

sábado, 13 de abril de 2024

O Hino Nacional em Guarani...

Como aprender nunca é demais, eis o Hino Nacional numa versão em Guarani. Aprendi-o quando adolescente, ensinado pelo Sr. Ambrósio Lemes Galvão, então com 104 anos de idade. Ambrósio era um sul-mato-grossense da gema, tropeiro famoso que desbravou os sertões desse rincão centroestano. Criatura esplêndida, encantadora. Morreu aos 106 anos. Era um velho esguio, com traços indígenas e europeus. 

As pálpebras oblíquas e o aspecto sutilmente mongol não escondiam o índio de seus dedentros. Enquanto a meninada da minha idade pescava, jogava bola, pulava da ponte do rio Pardo, ou meramente praticavam ócio, eu me sentava horas e horas junto dessa enciclopédia viva, rara, lúcida, repleta de histórias. Pegava do lápis, do papel, de um gravador e registrava suas lembranças de vida. Assim aprendi a cantar o hino em guarani. Eis que a quarentena joga nas minhas mãos essa pérola incalculável, a qual compartilho com vocês... só não me chamem de Policarpo...
OBS. Nessa foto, Ambrósio teria uns cinquenta anos. 2016.
 

 

A Roupa da Palavra: Labirinto...


Esqueçam o labirinto do minotauro, terror da nossa infância, quando assistíamos ao “Sítio do Pica Pau Amarelo”. Vamos passear n’outro mundo, cheio de tramas, trabalho, suor, talento e arte. Sem medo. Refiro-me ao artesanato de labirinto. Na verdade, vamos conhecer uma porciúncula sobre essa bela renda, ampla em motivos. Ela é elaborada por meio de um emaranhado de pontos que se faz desfiando o tecido preso num bastidor de madeira. Tudo artesanalmente.
A técnica veio nas caravelas, assim como o bilro e a renda. Em Portugal ainda se faz labirinto. As artesãs não sabem a origem. Dizem sempre que aprenderam com a mãe, avó, vizinha…
Desfiado o tecido, a artesã une os fios com nós e preenche os espaços com cerzimentos. É um tipo de renda de agulha de costura, feita em tecidos industrializados, como cambraia, linho ou algodão, submetidos a vários processos. A conclusão da peça dura meses, quase um ano, dependendo da engenhosidade dos desenhos. Imagine alguém passar sete meses confeccionando uma única peça!
Nesse nosso mundo maquinizado e desumanizado, onde as máquinas fazem quase tudo (daqui a pouco o chatGPT fará tramas em renda de labirinto… será? Não duvide!). Pois bem, via de regra os preços dessas peças assustam, principalmente toalhas de mesa e passadeiras. O turista que acha lindo e desconhece a engenhosidade e morosidade dos bastidores, estranha o preço. A coisa é tão feia que nos próprios lugares onde o labirinto é produzido, quase nenhum nativo usa o labirinto em casa. É produzido apenas para venda. Só as famílias que têm um dinheirinho a mais usam toalhas de labirinto em casa, normalmente para vestir com elegância a mesa de Natal, do casamento do filho e festas especiais. Excetuando isso, dormem nas gavetas, aguardando evento especial.
Normalmente não é uma toalha de uso diário como as labrojeiras, encontradas em feira. Há pessoas tão caprichosas que ainda engomam a peça com fécula de mandioca (massa de tapioca). Essa prática não está ultrapassada e nem caiu totalmente em desuso. É um artifício eficaz para deixar as peças bem alinhadas, lisas e livres de “amassados”. Prepara-se uma água rala com a fécula e borrifa nas roupas antes de passar a ferro em temperatura média.
Pois bem, mas como se faz a renda de labirinto? Vamos lá. Em 1992, acompanhei essa atividade em Campo de Santana, distrito de Nísia Floresta, interior do Rio Grande do Norte. Dez anos depois, em 2002, convidado pela professora Marjorie da Foseca e Silva Medeiros, da pró-reitoria de pesquisa e extensão da UFRN, acompanhei o projeto “Comunidade Solidária”, coordenado por Ruth Cardoso, esposa do presidente Fernando Henrique Cardoso. Houve uma parceria com a UFRN, cujos participantes do projeto “Trilhas Potiguares” se envolveram. Coincidentemente participei da primeita versão do “Trilhas”.
Mas vamos ao processo: A) Desfiar: cortar fio por fio tirando 3 linhas e deixando 5 no sentido do comprimento do tecido. Na largura tiram-se 4 linhas deixando-se 6. B) Prender a peça: fixar o tecido na grade/bastidor com barbante, deixando-o bem esticado para facilitar o manuseio. C) Encher: colocar o modelo do desenho sob o tecido, este norteará todo o trabalho; contar as “maias” (buraquinhos). Esse último processo permitirá saber quantas vezes será possível repetir o mesmo desenho. D) Torcer: passar uma agulha com linha em volta de todos os buraquinhos com a finalidade de destacar a renda. E) Perfilar: (as mulheres pronunciaram “prifilá”) dar acabamento em toda a peça e checar alguma imperfeição. F) Lavagem: retirar a peça e lavá-la com sabão neutro. G) Engomar: passar uma goma rala sobre o tecido ainda úmido. Após a secagem, corta-se as belotas (beiras). Está pronto a renda de labirinto, ou melhor uma obra de arte.
A arte do labirinto é para os fortes. É necessária uma organização mental incrível para que as mãos das rendeiras percorram com maestria seus emaranhados.... é labirinto mesmo.. Extraordinário! Faz-se de tudo com renda de labirinto: camisas, blusas, vestidos, jogos americanos, guardanapos, caminho de mesa, toalha de bandeja, centro de mesa, capa de almofada, bandôs e aplicações para cortinas, toalhas de lavabo e outras peças. O projeto “Comunidade Solidária” ministrou cursos sobre empreendedorismos e uma diversidade de políticas organizacionais acerca do labirinto no citado distrito. Na verdade, apesar de o labirinto ser mais forte em Campo de Santana, há outros distritos em que encontramos labirinteiras, como Alcaçuz (forte em renda de bilro) e outros locais.
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Inaugurei hoje esse quadro. Apaixonado pela palavra, desde criança presto atenção nas narrativas populares. Assim colho pérolas. Para alguns, é palavra corriqueira e invisível... Para mim encanta tanto que a registrei há alguns anos… e o encanto permanece. Aparecerei por aqui, eventualmente, com uma palavra diferente e explicarei a roupa que ela veste. Sejam bem vindos “A roupa da palavra”. 9.4.23.














 

 

O Mito do Amor Materno, Elisabeth Badinter...

 

Longe de mim adentrar em campos profissionais diversos, mas julgo importante explicar já desde o início que a minha reflexão é fruto de uma leitura que fiz há muitos anos, e hoje, com o assassinato do menino Henry Borel, cujo suspeito é o pai, sob a cumplicidade da mãe, veio-me a lembrança da obra “UM AMOR CONQUISTADO - O MITO DO AMOR MATERNO”, escrito pela francesa Elisabeth Badinter. Na realidade, uni o meu entendimento com a citada obra. Ressalto que não generalizo em momento algum a minha observação, até porque conheço uma infinidade de mães que verdadeiramente dão a vida pelos filhos, assim como fazem também muitos pais, mas trago à baila a curiosa reflexão dessa obra em caráter de conhecimento.
 
O título desse livro impacta por si, justificando o escândalo causado quando foi publicado na França, em meados da década de 80, tendo em vista que culturalmente aprendemos que o amor maternal humano é sagrado, implacável, que destoa, por exemplo, do amor paternal. Aprendemos nas literaturas, nas igrejas, em diversas instituições, e nos discursos sociais que o amor materno é um instinto feminino, espécie de tendência inata. A mãe é aquela leoa que protege os filhos e arrisca a sua própria vida. Elisabeth Badinter desconstrói isso.
 
Esse amor incondicional, onde a mulher é capaz de renunciar a tudo e arriscar a sua própria vida em prol dos filhos, segundo a autora é mito. Ela alega que o amor materno não integra a natureza feminina, mas é fruto de diversos fatores, como as variações sócio-econômicas da história e podem existir, ou não, dependendo da época e das circunstâncias materiais, dentre diversas outras, que vivem as mães. Ela defende que a tese do amor materno não é uma realidade em toda mãe, em todos os lugares e época. 
 
A argumentação de Elisabeth Badinter é firme, tem muita substancialidade e é impossível negar que assim como todos os sentimentos humanos, o amor materno pode ser falho, inexistente, imperfeito ou puramente forte. Na realidade, não vou entrar em detalhes sobre todas as reflexões dessa obra para não dar “spoiler”, até porque muitos poderão se interessar pelo livro, apesar de ser de certo modo uma obra antiga, creio publicada em meados da década de 70, embora a li em meados da década de 80. Mas isso nem importa.
 
Elisabeth Badinter defende que o amor mãe/filho é apenas um sentimento humano como outro qualquer, que pode nascer, morrer, optar por um filho ou a todos, recusar a todos, amar a todos de igual forma, mas que isso também é inerente ao pai da mesma forma. Ela estudou com profundidade a evolução das atitudes maternas em várias épocas, verificando que o interesse e a dedicação à criança não existiram em todas as épocas e em todos os meios sociais. As diferentes maneiras de expressar o amor vão do mais ao menos, passando pelo nada, ou quase nada. 
 
O amor materno, segundo ela, não constitui um sentimento inerente à condição de mulher, ele não é um determinismo, mas algo que se adquire ou não. Ela cita um período em que as mães entregavam os filhos para serem criados por amas, afastadas de casa, e só voltavam após cinco anos, mal visitando-as. Muitas nem iam, outras os abandonavam para sempre. Essa reflexão nos faz lembrar a observação feita por Nísia Floresta em meados de 1870, quando testemunhou, na França, tal fato e ficou horrorizada. Inclusive ela narra o caso de uma criança nesses conformes que foi comida por um porco e a mãe não fez questão.
 
Essa senhora Monique Medeiros, mãe biológica de Henry Borel é a personificação dessa tese. O caso “Isabela Nardoni” é outro, dentre tantos. Essas mães, por sinal, pessoas que tinham tudo na vida, não eram estressadas, nem tinham problemas psicológicos. Tinham boa vida e mesmo que não tivessem, poderiam ter protegido seus filhos, mas foram cúmplices de suas mortes. Monique Medeiros tem um cargo comissionado no Tribunal de Contas do Rio de Janeiro, ganhando 12.000,00 (doze mil reais) mensais, num emprego arranjado pelo vereador Jairinho. Ela parece ter escolhido o marido e o bom salário ao filho. O caso dela, e o de Alexandre Nardoni e Ana Carolina Jatobá (caso Isabela) se casam com a tese de Elisabeth Badinter, dentre tantos.
 
Mas o que estou querendo dizer com tudo isso? Pois bem, meu objetivo é refletir sobre o sentimento de amor entre pai/mãe e filhos. Na minha opinião, pelo que vi ao longo da minha vida, e pelo que já li, não apenas baseado na obra acima citada, mas em muitas, a maternidade e a paternidade, em seu sentido de proteção e amor pode existir ou não, ser fraca ou forte, aparecer ou desaparecer tanto no homem quanto na mulher. 
 
Existem histórias reais inacreditáveis e emocionantes que evocam o amor incondicional tanto de de pais como de mães. É certo que fatores culturais, econômicos etc podem ocasionar uma espécie de mal entendido nesse amor pai/mãe para com os filhos, mas creio que ele seja igual em ambos. O pai, ao longo da história, esteve mais ausente, principalmente no passado, pois era o provedor. Portanto, a amorosidade entre mãe e filhos sempre pareceu maior, pois quem está constantemente distante não cria laços talqualmente iguais a quem está constantemente perto. Mas isso também não justifica que um pai não daria a sua vida pelos filhos. Ambos dariam ou não. É relativo. Monique, esposa do dr. Jairinho, por exemplo, escolheu o seu salário de onze mil reais. Trocou o salário pelo filho.
 
Se você pesquisar no youtube, encontrará o caso de um homem, no Pará, cuja esposa o abandonou junto com sete filhos biológicos de ambos. Esse pai assumiu as crianças como uma galinha que junta todos os pintinhos sob as asas. Há muitos e muitos e muitos casos, tanto de mulheres que abandonam para sempre os filhos e desaparecem, como homens que agem da mesma forma. A falta ou a existência desse amor protetor é relativa. 
 
O amor e a proteção do pai ou da mãe para com os filhos é algo que pode existir ou não. Talvez a delicadeza da mulher seja confundida com a aparente dose mais grandiosa de amor, mas o amor de ambos é igual ou não. Pode existir fracamente, excessivamente, mais ou menos, com normalidade etc, mas esse sentimento não é típico de um ou de outro sexo, é sim construído. E dura para sempre.
Os filhos podem criar cabelos brancos, mas terão eternamente um pouco daquele cheiro de óleo Johnson. Tanto para o pai quanto para a mãe. Talvez o pai até disfarce, por bobagens culturais, mas a coisa está dentro, pulsante. E não se enganem, há mães aparentemente frias no aspecto de externar esse amor, mas é o mesmo. O nó górdio da questão é sempre cultural. Assim penso. Óbvio que no bojo dessa reflexão há uma infinidade de fatores, mas, grosso modo, é assim que enxergo. E hoje, com os novos comportamentos humanos, assistimos casais homoafetivos que adotam filhos, independentes de seus entendimentos de gênero, e agem da mesma forma acima discutida. Enfim, não sei se estou errado, mas concordo com Elisabeth Badinter. (2022).

 

terça-feira, 2 de abril de 2024

sexta-feira, 15 de março de 2024

terça-feira, 5 de março de 2024

Acta Noturna - A Visita de Dom José à Vila Imperial de Papary - 1882...


Há 142 anos o bispo de Olinda, Dom José Pereira da Silva Barros visitou a então "Vila Imperial de Papary", mas vamos entender o contexto a partir de seu desembarque no cais do porto, em Natal, a bordo do navio Pirapara. 

Natal foi ao êxtase, como se chegasse um semideus... Houve comissão de recepção, clérigos, autoridades, banda de música... o diabo a quatro se desmanchando em mesuras típicas das que até hoje se fazem à rainha Elizabeth II.

Um cortejo gordo acompanhou o bispo a pé até a igreja do Bom Jesus. Na sacristia ele se paramentou e seguiu a pé até a catedral de Nossa Senhora da Apresentação, onde era vigário um que seria santo: João Maria Cavalcanti de Brito (coincidentemente o padre João Maria havia deixado a Vila Imperial de Papary há 1 ano, onde exercera 4 anos de vigariato naquela matriz). 


Diferentemente do padre João, cuja casa era a sacristia, e muitas vezes dormia no chão por presentear a própria rede aos pedintes, o bispo ficou hospedado durante uns três dias no Palácio da Assembleia, depois Palácio do Governo (hoje EDTAN, na rua Chile, Ribeira). 

Ali lhe chegava de tudo da melhor qualidade. De comida a souveniers oferecidos pelas madamas natalenses. Após a realização dos mais diversos trabalhos eclesiásticos, seguidos de visitas a todos os órgãos públicos e às casas das pessoas mais ricas de Natal, ele empreende uma verdadeira odisseia por diversas cidades e vilas locais. Uma delas é a então "Vila Imperial de Papary". 

Ele estava em Canguaretama, quando embarcou na "Maria-Fumaça" da Great Western. Ao chegar na Estação "Papary", que ainda iria completar um ano de construída, mais ou menos às 17h00, como dizem os nordestinos "estava um moído"... não tinha lugar para se colocar o pé. Música, autoridades, paroquianos, tudo o que se tem direito e mais um pouco promovia a maior festividade. 

Por incrível que pareça, as autoridades mandaram uma "cadeira de arruar" para que o ilustre visitante viajasse confortavelmente até o centro da vila (igual a essa da foto com escravisados). O bispo nega. Escolhe ir a pé. 


Ao se aproximar do centro da freguesia, se surpreende. A partir da entrada do Engenho Descanso, perfilava uma sequência de fogueiras que ia até o átrio da Matriz. A vila estava um verdadeiro dia, tudo muito enfeitado pelos fieis. Então ele celebra na Matriz de Nossa Senhora do Ó e segue para um jantar nababesco no dito Engenho Descanso. 

Até então a vila nunca tinha visto um bispo. Ele passa dois dias ali, onde celebra casamentos, batizados, crismas, discursos, celebrações, visitas às famílias mais ricas da localidade, incluindo a do "Cavaleiro da Rosa" – que à essa época já era um homem idoso – e outras. 

Realizado o compromisso, ele segue para a estação "Papary", sob forte comoção popular. Contam que ele não deu um passo em Papary sem que uma multidão o acompanhasse, como se para levá-lo... um misto de curiosidade, o impacto da novidade, a imagem de semideus etc.


Enfim ele embarca para Natal. É outro vavavu na Estação. No outro dia a Vila Imperial de Papary se transformou num cemitério. Em Natal, ele passa mais uns dias e toma destino ao Pernambuco. 

Naquela época, a província do Rio Grande era subordinada à Diocese de Olinda. Dom José Pereira da Silva Barros foi o primeiro e único conde de Santo Agostinho. Era de São Paulo. Foi bispo de Olinda e do Rio de Janeiro. Foi o último bispo de S. Sebastião do Rio de Janeiro.

Acta Noturno - Antonio de Sousa (Polycarpo Feitosa) - "Quase Romance Quase Memória"...

Polycarpo Feitosa

O livro intitulado “Quase Romance, Quase Memória”, assinado por Polycarpo Feitosa, alcunha de Antonio José de Melo e Souza (Papary: 24.12.1967 - Recife: 5.7.1955), foi publicado em 1969, pela Imprensa Oficial, com apoio do IHGRN e ANRL muito tempo após a morte do autor, graças à compreensão da irmã do escritor, dona Isabel Emiliana de Melo e Sousa, que disponibilizou os manuscritos. É uma obra não concluída, mas bastante vasta e com informações preciosas. Antonio de Sousa era um grande observador de tudo. Altamente crítico. Foi governador algumas vezes e ocupou pastas respeitáveis no estado. Embora esquecido pelas grandes massas, é figura conhecidíssima nos meios intelectuais norte-rio-grandenses. É considerado por especialistas como uma revelação na Literatura do período modernista, embora não seja reconhecido nacionalmente como tal. No capítulo “No tempo da República”, o autor estuda os primeiros dias do novo regime, entre nós, figuras principais, posição de liberais e conservadores, destacando o jornal “A Alvorada”, ou seja, A República, como centro das atividades republicanas. Quem conhece a história social e política do estado, idetifica logo, em Paulo Júnior, A. Benévolo, Andrade Brasil, as figuras de Pedro Velho, o Líder, e Augusto Severo e Brás de Melo, os redatores do jornal.O dr. Deodato Juazeiro, bacharel em direito, filho de  fazendeiro, poeta por desenfado, iniciannte em política, candidato a deputado, está a exigir um exame mais detido, a fim de ser devidamente identificado. 


No segundo capítulo “Diário de um recolhido”, memórias igualmente inacabadas, o autor analisa tipos e figuras da vida político-partidária potiguar, sem descer ao mau gosto do remoque e da pilhéria picante e dessaborida. As figuras de seu diário, tocadas pela magia do seu estilo, retornam, assim, ao cotidiano da vida norte-rio-grandense, mais engrandecidas e atualizadas, na palavra comedida e austera do memorialista contemporâneo. José Augusto, Castriciano, Sebastião Fernandes e tantos outros são ali discutidos, observados e analisados à luz dos fatos de sua época, por um autêntico observador da vida nordestina. Antonio de Sousa possuía uma biblioteca impecável. Era poliglota e assinava algumas revistas internacionais. Escreveu em diversos jornais potiguares e na revista do IHGRN. 

Maria Alice de Melo e Sousa


Dedicou-se principalmente ao conto e ao romace de costumes, escrevendo e publicando vários livros de ficção, com destaque pa “Flor do Sertão” (1928) e “Gizinha” (1930) Quando governador, marcou época, tendo em vista que era muito enérgico e exigente nas coisas públicas. É muito citada a sua honestidade. Tinha umas excentricidades. Certa vez, aleatoriamente, sua irmã recebeu uma jóia de um empresário natalense. Antonio de Sousa mandou que ela devolvesse imediatamente. O empresário queria privilégios em compras. O governador indeferiu imediatamente a sua má intenção. Dizem que mandou retirar o pneu do carro oficial para que ninguém usasse. 

Maria Isabel Emiliana de Melo e Sousa


Nasceu e morreu solteiro. Em 1997 fui procurado pelo dr. Erich Gemeinder, de São Paulo, profundo pesquisador e conhecedor da vida e obra de Antonio de Sousa. Não pude ajudá-lo, pois até então não possuía grandes coisas. O melhor de tudo é que ficamos amigos. Enviei-lhe uma revista da UFRN e recebi dele "O Bando", de 1955. Muito tempo depois chegou às minhas mãos relíquias de Antonio de Sousa, mas Erich Gemeinder havia falecido. Cedi alguma parte para o dr. Manoel Onofre Jr. É assim... a História é assim...

Do livro “Quase Romance, Quase Memória” retirei alguns ditos populares curiosos, já que não devo contar o conteúdo. Vejamos:

“Pobre como urubu de sertão em ano de inverno e sem epizootias”

(p.33)

“Quem tem uma pena e não tem vaidade ainda vai nascer” (p.33)

“Os cabelos de uma serra estão sempre sujeitos aos ventos de todos os quadrantes” (p.46)

“Não há nada melhor que que um dia atrás do outro e uma noite no meio” (p.46)

“É como macaco em loja de louças” (p.51)

“Pobre arbusto seco que, incapaz de dar frutos, apenas cria bichos para estragar os dos outros” (p.52)

“Cachorro com gafeira não pode deixar de se coçar” (p.52)

“É como paletó de estudante pobre, quando está muito sujo, como estava o Império, leva-se ao adelo, este desmancha tudo, vira o pano pelo avesso, põe novos forros, e aí está uma farpela nova… mas o pano é o mesmo, com o sujo escondido” (p.55)

“Todo sujeito avarento é mau” (p.54)

“Olhos de carneiro mal morto” (p.78)

OBS. As fotografias trazem Antonio de Sousa e suas irmãs, Maria Alice de Melo e Sousa e Maria Isabel Emiliana de Melo e Sousa. 6.6.2016.