ANTES DE LER É BOM SABER...

CONTATO: (Whatsapp) 84.99903.6081 - e-mail: luiscarlosfreire.freire@yahoo.com. Este blog - criado em 2008 - não é jornalístico. Fruto de um hobby, é uma compilação de escritos diversos, um trabalho intelectual de cunho etnográfico, etnológico e filológico, estudos lexicográficos e históricos de propriedade exclusiva do autor Luís Carlos Freire. Os conteúdos são protegidos. Não autorizo a veiculação desses conteúdos sem o contato prévio, sem a devida concordância. Desautorizo a transcrição literal e parcial, exceto breves trechos isolados, desde que mencionada a fonte, pois pretendo transformar tais estudos em publicações físicas. A quebra da segurança e plágio de conteúdos implicarão penalidade referentes às leis de Direitos Autorais. Luís Carlos Freire descende do mesmo tronco genealógico da escritora Nísia Floresta. O parentesco ocorre pelas raízes de sua mãe, Maria José Gomes Peixoto Freire, neta de Maria Clara de Magalhães Fontoura, trineta de Maria Jucunda de Magalhães Fontoura, descendente do Capitão-Mor Bento Freire do Revoredo e Mônica da Rocha Bezerra, dos quais descende a mãe de Nísia Floresta, Antonia Clara Freire. Fonte: "Os Troncos de Goianinha", de Ormuz Barbalho, diretor do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, um dos maiores genealogistas potiguares. O livro pode ser pesquisado no Museu Nísia Floresta, no centro da cidade de nome homônimo. Luís Carlos Freire é estudioso da obra de Nísia Floresta, membro da Comissão Norte-Riograndense de Folclore, sócio da Sociedade Científica de Estudos da Arte e da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Possui trabalhos científicos sobre a intelectual Nísia Floresta Brasileira Augusta, publicados nos anais da SBPC, Semana de Humanidade, Congressos etc. 'A linguagem Regionalista no Rio Grande do Norte', publicados neste blog, dentre inúmeros trabalhos na área de história, lendas, costumes, tradições etc. Uma pequena parte das referidas obras ainda não está concluída, inclusive várias são inéditas, mas o autor entendeu ser útil disponibilizá-las, visando contribuir com o conhecimento, pois certos assuntos não são encontrados em livros ou na internet. Algumas pesquisas são fruto de longos estudos, alguns até extensos e aprofundados, arquivos de Natal, Recife, Salvador e na Biblioteca Nacional no RJ, bem como o A Linguagem Regional no Rio Grande do Norte, fruto de 20 anos de estudos em muitas cidades do RN, predominantemente em Nísia Floresta. O autor estuda a história e a cultura popular da Região Metropolitana do Natal. Há muita informação sobre a intelectual Nísia Floresta Brasileira Augusta, o município homônimo, situado na Região Metropolitana de Natal/RN, lendas, crônicas, artigos, fotos, poesias, etc. OBS. Só publico e respondo comentários que contenham nome completo, e-mail e telefone.

terça-feira, 30 de março de 2021

Memória de São José de Mipibu - A frase latina no umbral da igreja matriz de Sant'ana e São Joaquim...



Memória de São José de Mipibu - A frase latina no umbral da igreja matriz de Sant'ana e São Joaquim...

A frase acima, em latim, significa "Nós  próprios somos a casa de Deus". Ela está no base do coro da Igreja Matriz de Santana e São Joaquim, em São José de Mipibu/RN. É óbvio que a maioria do povo sabe essa tradução, mas fica aqui para quem desconhece. A igreja Católica prestigia muito o latim. Originalmente os cultos católicos eram celebrados nesse idiona, a língua-mãe da língua portuguesa e de diversas outras. Os livros católicos eram todos nesse idioma, portanto  não poderia ser diferente que placas comemorativas, túmulos de religiosos, letreiros  no interior dos templos também fossem nessa língua. 

O latim, hoje, é usado mais na Igreja Católica, embora acanhadamente se comparado ao passado. Não é à toa que muitos documentos publicados pelo Vaticano trazem o título em latim. Mas alguns padres intelectuais tanto falam quanto escrevem nessa língua. Outros, estudam o essencial para a interpretação de breves citações nessa língua, feitas por certos documentos da igreja. No Rio Grande do Norte um dos maiores latinistas é o padre José Mário, também exorcista. Por falar em latinidade, na Igreja do Rosário dos Pretos, no Bairro Cidade Alta, em Natal, ocorrem missas em latim todo domingo, pela manhã. A linguagem acadêmica também conserva diversas expressões e vocábulos nessa língua, por exemplo "essa medida é sine qua non", ou seja, indispensável/essencial, dentre tantas outras. 

O universo do Direito também se serve muito do latim. Recentemente o Abrigo Anízia Pessoa mandou instalar em suas dependências um Narco de Memória pelos 40 anos de fundação da instituição, feito numa placa de bronze, sob os cuidados da Ir. Iva Guedes - idp. O marco traz uma citação em latim, em conformidade com essa tradição católica. A valorização do latim, por mais que pareça antiquado, é fundamental, pois como entenderemos a nossa própria língua se o desconhecemos totalmente? É bom que o conheçamos, mesmo que pouco. OBS. As fotografias exteriores são de  Jose Amauri Freire , registradas quando o templo era revestido de azulejo de banheiro. A imagem interna é de Otávio Carvalho.

Memória de Natal - O palacete de Juvino Barreto...


Memória de Natal - O palacete de Juvino Barreto...

Da janela mais alta do palacete, construído em 1888, a bela Inês Barreto, filha de Juvino Barreto, paquerava às escondidas o jovem e belo Alberto Maranhão, que correspondia à paquera na janela de seu casarão defronte ao palácio. Passavam horas se olhando. Para aquela época tal comportamento era uma sorte enviada por Eros, pois praticamente consistia em namoro. Namoro garantido em janelas fixas, sem fiscalizações, não floresciam em qualquer lugar. Havia a desculpa de se estar apreciando o rio Potengi... Os jovens, na flor da idade, tiveram o privilégio de terem as casas olhando uma para a outra. Após longo "namoro de olho" se casariam algum tempo depois. O casamento parou a freguesia. 



A Vila Barreto, onde está assentado o imponente exemplar arquitetônico, foi totalmente iluminada e os apetrechos mandados vir da Europa. Os natalenses não conheciam a sensação de estar debaixo de luz elétrica, então imagina-se a sensação desse casamento nababesco. Mais tarde, no Brasil então republicano, Alberto Maranhão se tornaria governador do estado, ela, dona de casa. Dessas dadas a leitura dos açucarados franceses. O palacete foi construído na Vila Barreto, olhando a fábrica de fiação de Juvino Barreto, pai de Inês, divisando-se com a estação de trem. Juvino era um industrial ricaço que ergueu um império na província do Rio Grande.


O palacete de Juvino Barreto possuía o maior e mais belo jardim de Natal. À época em que as madames ricas disputavam as belezas da jardinagem, pagando caro aos melhores jardineiros inclusive estrangeiros, que transformavam a paisagem em cartão postal. As senhoras ricas iam ao êxtase vendo os seus buquês admirados. Elas presenteavam com flores a Igreja Matriz de Nossa Senhora da Apresentação nas ocasiões festivas. Outras se vangloriavam de ter fornecido todas as flores para o casamento de alguém. Muitos mortos foram enterrados antes da hora, sepultados já no ataúde pelas flores desses jardins, sejam em guirlandas ou na roupa de flores que os emolduravam aos quilos. A jardinagem exuberante era um divertimento social, uma tradição. Cada um queria ter as melhores e mais perfumadas flores para disputar em beleza junto aos figurinos pessoais e bailes  de gala. Eram as brincadeiras das madames daquele tempo… hoje disputam carros, aquisições em shoppings, viagens internacionais e outras fantasias.

Lado esquerdo: Palácio de Juvino Barreto, lado direito: casarão onde morava Alberto Maranhão, de onde ele e Inês "namoravam"...

Juvino Barreto era casado com Inês Augusta de Albuquerque Maranhão, filha de Amaro Barreto (a filha herdou o nome da mãe). Juntos, tiveram 14 filhos. Em 1887 ele comprou o amplo terreno de 8.000 m² e criou a Vila Barreto (uma parte ficava onde atualmente funciona a Caixa Econômica da Ribeira, a outra parte ficava onde hoje funciona o Colégio Salesiano). Ali ele construiu uma empresa de fiação com maquinário importando da Inglaterra, inaugurando-a em 1888. Teve o cuidado de também construir uma escola e capela para os filhos dos funcionários. Os natalenses baseavam as horas de acordo com a fumaça saída das chaminés.



A primeira vez que o povo potiguar viu luz elétrica foi exatamente em 1893, muito antes de ser providenciada pelo estado, quando ele mandou iluminar toda a fábrica. Ali ele criou um programa de saúde para os seus funcionários e patrocinou recursos para fins sociais, estimulando o surgimento de vários estabelecimentos de ensino, como o Colégio Imaculada Conceição e Santo Antônio, hoje Colégio Marista de Natal. Fundou a “Libertadora Macaibense”, inclusive alforriando vários escravos. Foi condecorado com a Imperial Ordem da Rosa, pelos serviços prestados à causa abolicionista. Foi sócio do Clube do Cupim e Oficial Superior da Guarda Nacional.



Sobre a sua fábrica, Câmara Cascudo nos conta que ela movimentava 48 teares, movimentado por 1600 fusos, produzindo tecidos para todos os gostos e orçamentos. Também produziam tecido para cama mesa e banho. Nesse tempo houve febre de roupas diferentes, principalmente para as mulheres, pois antes os tecidos vinham de outros países, e somente os ricaços se vestiam bem. Pobre andava com roupa de saco e descalço. De repente as pessoas nem tão ricas passaram se vestir melhor. A primeira luz elétrica que os natalenses viram foi justamente na fábrica de tecidos de Juvino Barreto, no ano de 1893, cinco anos depois de a fábrica ser inaugurada.


Em 1906 o presidente da república Afonso Pena visitou Natal, e Juvino Barreto mandou iluminar toda a área, causando admiração ao estadista que percebeu que a província não pecava muito em progresso. Mas tudo acaba. Vieram as concorrências, as coisas enfraqueceram. Lentamente os chaminés ficaram a fogo morto. A última chaminé ruiu em 1958. O maquinário foi vendido para uma indústria similar de Belém do Pará. Ainda vivo, ele doou seu palacete à Ordem dos Salesianos, onde hoje está instalado o Colégio Salesiano São José.


Curiosamente a primeira mangueira rosa de Natal foi plantada no quintal desse palácio pela família Barreto. Espécie aninda desconhecida no estado, era considerada o manjar dos deuses. Antes a fruta vinha de Recife, sob encomenda, e consistia num grande presente. A primeira manga rosa era destinada ao consumo do governador e do bispo, respectivamente. Até hoje os pés estão ali, por sinal muito prósperos. Ainda há quem se refira a elas como "as mangueiras-rosa de dona Inês".  Juvino Barreto era conhecido como “o pai dos pobres”, pois ajudou muita gente a melhorar de vida e sempre solidário com os mais pobres. 

A velha versão da praça Augusto Severo, tendo ao fundo o palácio de Juvino Barreto...

Faleceu em sua residência em 9 de abril de 1901 provocando forte consternação em Natal. O cortejo contou com a presença de quase 3.000 pessoas. Assumindo o imóvel presenteado, a Ordem Salesiana mandou construir um colégio, cujas instalações abraçaram o prédio, ofuscando a sua lateral. A área onde se vê o Ginásio de Esporte, verdadeiro trambolho, matando a beleza e imponência da edificação antiga. A única vantagem é não ter sido demolido. Observe no topo das partes mais altas alguns elementos decorativos em bronze. No centro do pavimento mais alto está uma delicada peça de bronze com o acrônimo “JB”, ou seja, Juvino Barreto. Dizem que o que temos de valioso é o nome... esse pelo menos ficou...

Casarão onde morou Alberto Maranhão



















Nunca a história morreu tanto...




Nunca a história morreu tanto...

Diante da pandemia, penso muito nos idosos. Não tem preço o amor que sentimos por eles, sejam pais, mães, tios, avós, bisavós, tataravós... Há outro aspecto forte e preocupante no caudal dessa tragédia. Primeiramente refiro-me a perda deles como seres humanos adoráveis, nossos portos seguros. Quem não tem um idoso por perto? Mas chamo a atenção da morte da HISTÓRIA. Ou melhor, das HISTÓRIAS que estamos sepultando, levadas pelos velhos. Está havendo um rombo na histórias de cada bairro, cada aldeia indígena, cada condomínio, cada casa, cada família... Todo dia sepultamos incontáveis histórias. Diariamente sepultamos pessoas lindas...
Dissemos sempre que velhos são baús de sabedoria. Muito do que fazemos recorremos aos mais velhos. Dia desses fui preparar um arroz com pequi e recorri a minha mãe - que conta 89 anos de idade - para tirar uma dúvida. É a eles que perguntamos: como é a receita daquele pão caseiro que a senhora fazia? Como era a cidade quando eles eram jovens? O que existia naquele bairro antes de se transformar naquela urbanidade toda? como é mesmo aquela lenda tal? Qual erva é boa para dor de barriga? Quem é aquele homem que tem a foto pregada na parede? Quando foi que calçaram a primeira rua do município? É verdade que houve um padre que dormia na sacristia? Só eles sabem!
São tantas perguntas que fazemos aos velhos que nem nos damos conta. Não percebemos porque eles estão vivos ao nosso lado. Velhos são referências. São livros vivos e deliciosos, disponíveis sempre para esclarecer com a palavra. Não há como descrever o prazer de ouvir uma história contada pelos velhos.
Certo dia um jovem engenheiro recorreu a um idoso, antigo mestre de obras da cidade, queria saber se era verdade que a parede da velha Igreja não tinha viga de concreto. Ele mexia na obra e ficou em dúvida. O idoso explicou minuciosamente, descrevendo a técnica dos antigos construtores do século XVIII. Outro, perguntou à velhinha se era real que aquela rua foi construída sobre um rio aterrado... Velhos são baús de sabedoria incalculável.
Tenho pensado muito neles. Com a pandemia não temos ideia da morte em massa da HISTÓRIA. Estão indo embora bibliotecas inteiras... Bibliotecas feitas de gente que amamos, que nos conforta, que aconselha, que afaga, que ensina a serenidade, a resiliência, o amor, a justiça, a paciência, a bondade, a oração... Sei que antes de tudo sentimos suas mortes pelo lado humano, a presença física, a companhia protetora, a palavra certa na hora certa... mas não há como negar o prejuízo incalculável para a HISTÓRIA. Nunca a história morreu tanto. Com a morte deles, morremos um pouco.

quinta-feira, 4 de março de 2021

Vila Imperial de Papary - A visita do bispo Dom José - 1882


"VILA IMPERIAL DE PAPARI" - A VISITA DO BISPO DOM JOSÉ - 1882

Há 139 anos o bispo de Olinda Dom José Pereira da Silva Barros (24.11.1835 - 15.4.1898), espichou-se até a pequenina e bucólica "Vila Imperial de Papari", num conjunto de visitas feitas à então província do Rio Grande do Norte. O religioso era natural de Taubaté, estado de São Paulo. Mas vamos entender o contexto a partir de seu desembarque em Natal, a bordo do navio Pirapara, no velho cais do porto. Natal foi ao êxtase, como se recebesse um semideus... Houve comissão de recepção composta por religiosos, altos comerciantes e uma plêiade de madames ricas. Clérigos de toda a província se espremiam na comissão de frente, autoridades, banda de música... o diabo a quatro se desmanchando em mesuras típicas como fazem, hoje, à rainha Elizabeth II. Contam que uma multidão se espraiava, emocionada, esparramada como formigas.
 

O cortejo caminhou junto ao bispo até a igreja do Bom Jesus. Na sacristia ele se paramentou e continuou seguindo a pé até a catedral de Nossa Senhora da Apresentação, onde era vigário João Maria Cavalcanti de Brito, que seria um dos raros santos (coincidentemente ele havia deixado a Vila Imperial de Papary há 1 ano, tendo exercido 4 anos de vicariato naquela vila). Diferentemente do padre João, cuja casa era praticamente a sacristia, pois dormia no chão, sobre uma esteira por presentear a própria rede aos pedintes, o bispo ficou hospedado durante uns três dias no Palácio da Assembleia (depois Palácio do Governo, hoje EDTAN, na rua Chile, Ribeira), onde lhe chegava tudo da melhor qualidade. De comida a souveniers oferecidos pelas madamas natalenses. Todos queriam ver e presentear o bispo.

CEDOC

Após cumprir uma série de compromissos eclesiásticos seguidos de visitas aos órgãos públicos e às casas das pessoas mais ricas de Natal, Dom José empreendeu uma verdadeira odisséia pelas diversas cidades e vilas da província. Uma delas foi a então "Vila Imperial de Papari". Ele estava em Canguaretama, quando embarcou na "Maria-Fumaça" da Great Western. 


Ao chegar à Estação "Papary" cheirando a nova, pois fora construída no ano anterior, o velho carrilhão marcava 17h00. Um formigueiro humano se comprimia. Como dizem os nordestinos "estava um moído"... não havia lugar para se colocar o pé de uma moça. Banda de Música, autoridades, paroquianos, tudo o que se tem direito e mais um pouco promovia a maior festividade. São José de Mipibu desceu feito avalanche de católicos e curiosos. Por incrível que pareça, as autoridades mandaram uma "cadeira de arruar" para que o ilustre visitante viajasse confortavelmente até o centro da Vila Imperial de Papary, carregado a muque, pela plebe católica. Se a vila era imperial, e as autoridades imperiosas, os “imperadores” de seu tempo entenderam providencial providenciar o carrinho semelhante ao do Santo Papa Leão XIII. O bispo recusou o carrinho sem pestanejar. Escolheu ir a pé, como fizera em Natal. Pudera! O polêmico bispo era abolicionista. Os “imperadores” locais ficaram perplexos com a atitude do bispo. Certamente acharam uma desfeita. E o cortejo desceu para o centro da vila, pisando em barro batido.

 

Modelo de uma "cadeirinha de arruar" da época (MAM-RJ)
  
Dom José Pereira da Silva Barros era bispo de Olinda e do Rio de Janeiro. Era chamado de “bispo abolicionista”, Ordenou-se presbítero em 1858. Foi capelão-mór de Dom Pedro II e um de seus primeiros conselheiros, tendo a oportunidade de falar abertamente sobre a importância da Abolição da escravidão. Era a figura principal do Clero da Igreja Católica no Movimento Abolicionista. Onde ia, discursava que o maior presente que o Brasil poderia dar a Deus e ao Papa seria a Abolição da Escravatura no Brasil. Ele foi um dos poucos dentro do movimento abolicionista publicamente homenageados por Dom Pedro II e Pela Princesa Isabel. Foi feito por ocasião da Lei Áurea, pela Princesa Isabel, em 16 de maio de 1888, Conde Santo Agostinho. E Agraciado por Dom Pedro II, de quem foi capelão-mór, com o título de Conselheiro da Casa Imperial.
 
 

Chegando a entrada da vila o bispo se surpreendeu. A partir da cancela do Engenho Descanso, perfilava-se uma sequência de fogueiras dando no átrio de Nossa Senhora do Ó. A moldura de fogo resplandecia como dia fosse, guiando o povo à casa divina. Contam que a paisagem era surreal. O lume de velas e candeeiros carregados pelos fiéis, tangiam a escuridão, matizando luzes no véu da noite. Então o bispo celebrou a missa, depois informou as atividades que se seguiriam nos três dias que passaria na vila, debulhando um rosário de críticas contra a escravidão - chocando boa parte dos senhores ricos locais - que endossavam tal mazela. Só se viam narizes franzidos e caras dobradas, escondendo a desfeita. Enfim o bispo seguiu para um jantar nababesco na imponente casagrande do Engenho Descanso, onde hospedou-se. Nessa localidade, no ano seguinte, nasceria a beata Antonia Emília de Paiva, ou “Yayá Paiva”, como a chamariam os nativos, considerada santa por muitos.

 

 

 Até então a vila nunca tinha visto um bispo. Ele passou três dias na localidade de nome monárquico, absorto numa sorte de compromissos eclesiásticos: casamentos, batizados, crismas, discursos, celebrações, confissões, visitas às famílias mais ricas da localidade, incluindo a do "Cavaleiro da Rosa", Coronel Alexandre de Oliveira (falecido seis anos após este fato, aos 59 anos de idade) e outros nobres locais. Contam que ele não deu um passo em Papari sem que uma multidão o acompanhasse, como que para levá-lo ao colo... um misto de curiosidade impactada pela novidade, a imagem de semideus e esses costumes pitorescos todos. Cada dia era uma festa. Não havia lugar para um mosquito no centro da vila em polvorosa. Uma parte dos senhores de engenho locais o viam com reservas, mas faziam corte ao bispo, pois de certo modo não deixavam de estar enodoados por esse clima pitoresco de estender tapetes pelpudos para quem era o poder em pessoa. Eles não podiam fazer cara feia para uma autoridade que também era conselheiro do Imperador Dom Pedro II. Teatro puro!    

 

Modelo de "Maria Fumaça" usada à época da visita de Dom José (RRFESA - Ferrovias do Brasil império).

O religioso cumpriu a sua missão e chegou o dia da despedida. As últimas horas foram comparadas a fechamento de ataúdes funerários. Parte da multidão chorava copiosamente. Dom José  seguiu para a estação "Papary", sob forte comoção popular. O cortejo deslizou  mansamente até a estação Papary. Foi outro vavavu com banda musical, cumprimentos às autoridades, novo diabo a quatro. No dia seguinte a vila acordou como se alguém morrera. A monotonia reivindicou o seu panteão de imediato. Em Natal, Dom José passou mais uns dias e embarcou para o Pernambuco. 

 

Naquela época, a província do Rio Grande era subordinada à Diocese de Olinda. Dom José Pereira da Silva Barros foi o primeiro e único conde de Santo Agostinho. Era de São Paulo. Foi bispo de Olinda e do Rio de Janeiro. Foi o último bispo de S. Sebastião do Rio de Janeiro. Sua visita à Vila Imperial de Papary rendeu assunto para um mês inteiro. Pudera! Naquele tempo, padres e bispo - casados com o Estado - tinham foros de reis. E os fiéis, de plebe. 

 


Estátua em bronze de Dom José, em Taubaté/SP.
 
Enfim o bispo foi-se, e foice deixou contra a escravidão. Restou aos senhores poderosos juntar os cacos deixados pelo visitante nem tanto ilustre para eles. E sobre a “cadeirinha de arruar”, não há registros de quem fora o autor da espalhafatosa ideia. Suponho - suponho! - pelo emaranhado de coisas velhas guardadas nesse cérebro de meio século, lidas nesses acervos quase esquecidos, que pudesse ser uma sugestão do Coronel José de Araújo, chefe político da Vila Imperial. Mas ressalvo que nesse tempo ele ainda não era presidente da Intendência, mas literalmente o “chefe político” conforme chamavam à época. E isso não era pouco. Ele receberia tal titulação nove anos adentro. Coronel José de Araújo foi um homem imperioso, representante da Oligarquia Maranhão, fiel até os dentes. Sua história está na ponta da agulha. A qualquer hora coloco sua música para tocar. Dramática por sinal!
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Texto de autoria de Luís Carlos Freire, baseado nas obras de Dom Rodovalho e Dom José de Felix  e Francisco Fernandes Marinho; Jornal "O Caixeiro", documentos avulsos (Arquivo Estadual de Natal) e Documentos Governamentais da Província do Rio Grande do Norte.

terça-feira, 2 de março de 2021

Memória de Lagoa Salgada - 1931 - Cordel do filho que matou a mãe

Meu tio Júlio Amaro Freire, aos 94 anos, em sua casa, em São José de Mipibu.

 
CORDEL DO FILHO INGRATO (AUTOR DESCONHECIDO)
 
I
 
Neste pequeno folhete
Contarei um caso estranho
E tanto para contar
Como enversar me acanho
De um caso que se deu
Nunca vi desse tamanho
 
II 

Há muito tempo que dizem
Que filho não mata pai
Pois se matar não é filho
Leitor, atenção prestai
Que o coração alheio
É terra que ninguém vai
 
III
 
E agora o segundo Nero,
Novamente apareceu
Na povoação Salgada
Esse ano aconteceu
O filho pródigo matou
A mãe que Deus lhe deu
 
IV
 
No ano de 31 José Joaquim faleceu
Foi um pranto amargurado
O dia que ele morreu
Deixando para a família
Tudo quanto era seu
 
V
 
E João Zózimo, filho mais velho
Do senhor José Joaquim
Desde que seu pai morreu
Aos seus bens pegou dar fim
Tanto tinha o pai de bom
Quanto o filho de ruim
 
VI
 
E dona “Sindá” lhe pedia:
- Meu filho João
Não acabe com seus bens!
Ele mal dava atenção
E passava 10, 12 dias
Sem lhe tomar a benção
 
VII
 
E dona “Sindá” lhe dizia:
- Meu filho não gaste tanto!
Ele ficava zangado
Se amuava em um canto
Dizendo lá um dia
Se acabava o seu pranto
 
VIII
 
E uma noite que seus filhos
Vieram para Salgada
Já com medo de João Zózimo
Dormiam em outra morada
E dona “Sindá” ficou só
Com uma filha e mais nada
 
IX
 
Às onze horas da noite
João Zózimo em casa chegou
A sua mãe abriu a porta
E ele calado entrou
Nao tirou o chapéu
E nem na rede se deitou
 
X
 
E dona “Sindá! recolheu-se
No seu quarto de dormida
E fez as suas orações
Por Maria Concebida
Pedindo a Deus por seus filhos
Felicidade na vida
 
XI
 
E dona “Sindá” terminou
De fazer as suas orações
Nesse momento entra Zózimo
Com uma faca na mão
Deu-lhe uma facada
Em cima do coração
 
XII
 
- Não me mate, filho ingrato!
Chorava e pedia ela
Deu-lhe a segunda facada
Em cima da espinhela
A outra em cima do peito
Saiu atrás na costela
 
XIII
 
Correu ao seu morador
Ainda tremendo a fala
Que um ladrão tinha morto
A sua mãe para roubá-la
Ele que estava dormindo
Não viu, não pode salvá-la
 
XIV
 
O morador José Gerônimo,
Homem digno, de confiança
Prendeu João Zózimo na hora
Por haver desconfiança
Pois ele jurava ela
Em tomar uma vingança
 
XV
 
E o nome deles eu já lhe digo
Mauro, Paulo e Severino
Aristides um bom filho
desde o tempo de menino
João Zózimo o filho mais velho
Verdadeiro assassino
 
XVI
 
 
O nome das duas filhas
Chama-se a mais velha Vanda
A outra de sete anos
É a caçula Yolanda
A derramar suas lágrimas
Que a consciência lhe manda
………………………………………………………..
 
TEXTO EXPLICATIVO: Essa história é real. Ouvi-a desde criança, narrada no formato de História Oral por minha mãe Maria Freire. Ela dizia, inclusive, que quando frei Damião colocou os pés, pela primeira vez, em Lagoa Salgada, passado esse fato, ele dizia "Vejo uma nuvem negra sobre essa cidade". Minha mãe nasceu em 1932, um ano após o deplorável fato, mas cresceu ouvindo essa história, narrada por sua genitora, que, segundo ela, amedrontou a cidade durante muitos anos. Ela própria dizia que se arrepiava só de ouvi-la. Hoje minha mãe tem 88 anos. O fato aconteceu em 1931, portanto há exatos 90 anos, em Lagoa Salgada, quando a localidade era distrito de São José de Mipibu. Algum tempo após ter chegado a esse município, fiquei admirado quando ouvi meu tio Júlio Amaro Freire declamando a história, dizendo ser um cordel que ele aprendeu na infância. Ele estudou com Severino, um dos filhos da vítima. Meu tio decorou esse cordel em 1929, aos 8 anos de idade. Ele o declamou para mim outras vezes, até que numa ocasião o copiei, conforme ele ia recitando vagarosamente, enquanto eu checava alguns trechos, pedindo-lhe que repetisse para ter a exatidão das palavras. Meu tio nasceu em 1921, e se encantou em 2018, aos 97 anos de idade. Seu encantamento se deu com a mesma lucidez da juventude, tanto é que sabia inúmeros cordéis, decorados com perfeição, declamando-os com o seu jeito expansivo e alegre. Dono de uma memória prodigiosa, guardava informações importantes de inúmeros fatos do passado, inclusive trechos completos de histórias que lia nos livros escolares de seu tempo. Sabia os títulos de todas as cartilhas e livros que usava. Eram impressionantes as suas narrações sobre a escola do passado. Era preciso nas datas. Com certeza fui displicente em não pedir-lhe a autoria e o título desse cordel, portanto conto com algum leitor que porventura conheça o presente cordel e possa colaborar para que eu mencione a autoria. Obs. No primeiro verso é mencionada a palavra “folhete” (folheto), portanto o referido cordel foi impresso, inclusive meu tio dizia que o adquiriu na feira.