ANTES DE LER É BOM SABER...

CONTATO: (Whatsapp) 84.99903.6081 - e-mail: luiscarlosfreire.freire@yahoo.com. Este blog - criado em 2008 - não é jornalístico. Fruto de um hobby, é uma compilação de escritos diversos, um trabalho intelectual de cunho etnográfico, etnológico e filológico, estudos lexicográficos e históricos de propriedade exclusiva do autor Luís Carlos Freire. Os conteúdos são protegidos. Não autorizo a veiculação desses conteúdos sem o contato prévio, sem a devida concordância. Desautorizo a transcrição literal e parcial, exceto breves trechos isolados, desde que mencionada a fonte, pois pretendo transformar tais estudos em publicações físicas. A quebra da segurança e plágio de conteúdos implicarão penalidade referentes às leis de Direitos Autorais. Luís Carlos Freire descende do mesmo tronco genealógico da escritora Nísia Floresta. O parentesco ocorre pelas raízes de sua mãe, Maria José Gomes Peixoto Freire, neta de Maria Clara de Magalhães Fontoura, trineta de Maria Jucunda de Magalhães Fontoura, descendente do Capitão-Mor Bento Freire do Revoredo e Mônica da Rocha Bezerra, dos quais descende a mãe de Nísia Floresta, Antonia Clara Freire. Fonte: "Os Troncos de Goianinha", de Ormuz Barbalho, diretor do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, um dos maiores genealogistas potiguares. O livro pode ser pesquisado no Museu Nísia Floresta, no centro da cidade de nome homônimo. Luís Carlos Freire é estudioso da obra de Nísia Floresta, membro da Comissão Norte-Riograndense de Folclore, sócio da Sociedade Científica de Estudos da Arte e da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Possui trabalhos científicos sobre a intelectual Nísia Floresta Brasileira Augusta, publicados nos anais da SBPC, Semana de Humanidade, Congressos etc. 'A linguagem Regionalista no Rio Grande do Norte', publicados neste blog, dentre inúmeros trabalhos na área de história, lendas, costumes, tradições etc. Uma pequena parte das referidas obras ainda não está concluída, inclusive várias são inéditas, mas o autor entendeu ser útil disponibilizá-las, visando contribuir com o conhecimento, pois certos assuntos não são encontrados em livros ou na internet. Algumas pesquisas são fruto de longos estudos, alguns até extensos e aprofundados, arquivos de Natal, Recife, Salvador e na Biblioteca Nacional no RJ, bem como o A Linguagem Regional no Rio Grande do Norte, fruto de 20 anos de estudos em muitas cidades do RN, predominantemente em Nísia Floresta. O autor estuda a história e a cultura popular da Região Metropolitana do Natal. Há muita informação sobre a intelectual Nísia Floresta Brasileira Augusta, o município homônimo, situado na Região Metropolitana de Natal/RN, lendas, crônicas, artigos, fotos, poesias, etc. OBS. Só publico e respondo comentários que contenham nome completo, e-mail e telefone.

terça-feira, 22 de setembro de 2020

ENGENHOS DE PAPARI E O MERCADO DE ESCRAVOS DO OITIZEIRO

No centro, acima, logo após o Pelotão de Polícia, é possível ver o Oitizeiro referido no texto (Crédito da imagem: Restaurante Marina Camarões)


ENGENHOS DE PAPARI E O MERCADO DE ESCRAVOS DO OITIZEIRO

Em 1994, uma prima de minha mãe, por nome Dirce Maranhão, filha de Luzia Peixoto Maranhão, contou-me que sua bisavó falava que o local onde se comercializavam escravos, na Vila Imperial de Papari, era exatamente sob uma centenária árvore denominada oitizeiro, fincada na estrada que liga a referida vila a vila de Mipibu, hoje São José de Mipibu. Até hoje é  possível sombrear-se deliciosamente nela, inclusive construíram ao seu lado o Pelotão da Polícia Militar de Nísia Floresta. É árvore histórica e precisa ser preservada como monumento natural da história de Nísia Floresta. Meu primo Tamires Ítalo Peixoto, do Engenho Morgado, que era historiador, também me contou sobre esse local de comércio de escravos nas imediações dessa árvore.

Exatamente nesse ponto, fervilhava o comercio de escravos que eram vendidos para os engenhos das redondeza. Vamos torcer para que depois dessa publicação as autoridades não cuidem de derrubar o Oitizeiro, ao invés de colocar ali um monumento com as inscrições pertinentes.

Sabemos que a faixa litorânea que abrange de Canguaretama, Goianinha, Arês, Papari, São José de Mipibu, Parnamirim até Ceará-Mirim era permeada de engenhos de cana de açúcar. Alguns lugares com menos, outros com muitos. Era o caso de Mipibu e Papari. Em Mipibu contam que eram 47 e em Papari 27. Esses números precisam ser confrontados com algumas informações e contextos. Nem todo engenho era igual. Na realidade nem todos eram engenhos de fato, mas carregavam a denominação devido a semelhança de papéis. O engenho verdadeiro fabricava açúcar, rapadura, melaço e cachaça. Tinha âmbito comercial. As mercadorias abasteciam o comércio local e até mesmo de outros estados. Tudo funcionava a vapor com maquinários importados que vinham da Europa. Diferiam deles os “Banguês”, ou seja, engenhos entre aspas. Eram bem mais simples e produziam para o consumo próprio e vendas acanhadas para a vizinhança. Eram movidos à força de bois ou tração humana. Também o denominavam de “engenho trapiche”. Aqui no Rio Grande do Norte não existiram engenhos movidos à “roda d’água”, mas em estados com fartura hídrica, os banguês funcionavam o dia inteiro pela força da água. 

Engenho Morgado (é a casa mais antiga de São José de Mipibu - aqui hospedou-se o Dr. Miguel Carlos Caldeira de Pina Castelo-Branco, Juiz de Fora e Provedor, ocasião em que veio instalar a Vila de São José do Rio Grande foi instalada a 22 de fevereiro de 1762

O local onde se encontra a árvore de Oitizeiro é estratégico. A começar pela proximidade com a Estação Papary, inaugurada em 1881, ou seja, sete anos antes da abolição da escravidão. É fácil supor o quanto esse trecho era fervilhante de senhores de engenho, fazendeiros, sitiantes, comerciantes e outros homens de negócio, os quais tinham nesse local um ponto de referência para negócios. Na realidade existiam outras árvores, era local muito sombreado e funcionava também como ponto de venda de animais, justificando a sua grande movimentação. Quem descesse do trem e fosse homem de negócio, tinha ali o local certo para negociar e conversar com outros negociantes.

Engenho Mipibu (fica quase defronte ao Engenho Morgado - só restou a chaminé)

Fica a poucos minutos do engenho São Roque (de Roque Maranhão), pai de Mirtes Maranhão (pessoa que citei acima: filha de Luzia Peixoto Maranhão: a “Lula Maranhão”, filha de Ezequiel Peixoto). Num pequeno raio geográfico temos o engenho Descanso, (de Vicente Xavier de Paiva, atualmente em ruínas), o Engenho São Luiz (de José Inácio Ribeiro), conhecido como “Engenho do Dedo” devido a semelhança de sua chaminé com um dedo, Engenho Mipibu (José Henrique Dantas e Salles), Engenho Morgado (de Antonio Ezequiel Peixoto - pai de Luzia Maranhão: mãe de Mirtes Maranhão, mencionada acima, que ainda pertence aos antepassados de minha mãe - e segue até hoje na família), Engenho Canadá (família Araújo - próximo a fábrica Berckmans), e Engenho Sapé (de José Joaquim de Carvalho). 

Túmulo de Antonio Ezequiel Peixoto (Engenho Morgado)

Ainda nesse raio temos o Engenho Capió (da família Souza, onde nasceu o escritor e ex-governador Antonio de Souza) e Engenho Pavilhão (de Joaquim Januário de Carvalho - anteriormente pertenceu a Trajano Leocádio de Medeiros Murta, daquela história que já contei aqui, quando seu filhinho morreu e foi transportado de pé durante o cortejo). Quando você adentra Papari se descortina outros engenhos, como o Engenho Boa Esperança (de Accúrcio Marinho - no Porto), Engenho Tororomba (de Hermógenes Ribeiro da Silva). No local onde hoje é o centro de Papari havia o engenho do Coronel Alexandre de Oliveira de Oliveira, exatamente onde está a prefeitura atual, cuja propriedade ia até o casarão onde ele morava (não me recordo agora o nome de seus engenhos, mas posto depois). Essa casa - a mais antiga de Papari - ainda resiste. Nela mora o Senhor Arnaldo. Atualmente pertence à família Gondim. 


Nesse documento vê-se os nomes dos Engenhos Morgado, de Antonio Ezequiel Peixoto (explicado no texto: da família da minha mãe, e Entre a Cruz e o Braço Salgado, do meu avô Abel Gomes Peixoto) e "Sapê" e "Engenho Sapê". Observe que aparecem nomes de proprietários diferentes no "Engenho Sapê".

Em 1920, há exatos cem anos, Papari possuia 27 propriedades rurais com representatividade (eram muito produtivas). São as seguintes: Engenho São Cristovão (de Francisco Alcides Ribeiro), Sítio Pirangy (de José Dias Freire), Sítio Ilha (de Joaquim Augusto Freire), Sítio Viração (de Abdon Januário de Carvalho), Sítio Estrada da Ilha (de Pedro Paulo de Carvalho), Sítio Bom Jesus, de José R. de Oliveira, Sítio Estrada da Ilha (de Francisco A. M. de Carvalho), Engenho Sertãozinho (de Jovino de Oliveira Salles), Engenho Sertãozinho (de Manoel dos Passos Rosa), Engenho Pavilhão (de Joaquim Januário de Carvalho), Sítio Capió (de Anísia Souza), Engenho Descanso (de Vicente Xavier de Paiva), Engenho São Roque (de Roque Maranhão), Engenho Mipibu (de José Henrique Dantas e Salles), Engenho Belém (de Avelino Leocádio de Souza), Engenho Santa Luzia (de Francisco Duarte da Silva), Engenho Sapé (de José Joaquim de Carvalho), Sítio Sapé (de Manoel Feliciano de Souza), Sítio Sapé (de Alfredo Cunha), Sítio Golandy (de Joaquim Augusto Freire), Engenho São Luiz (de José Inácio Ribeiro), Engenho Tororomba (de José M. C. Costa), Engenho Tororomba (de Hermógenes Ribeiro da Silva), Sítio Tororomba (de Manoel S. Bezerra), Engenho Boa Esperança (de Accúrcio Marinho de Carvalho Araújo), Sítio Morrinho (de Targino da Silva Leite), Sítio Morrinho (de Joaquim de Vasconcelos). 

Casagrande do Engenho São Roque
 

Em caráter de curiosidade, vale informar que Accúrcio Marinho de Carvalho Araújo, dono do Engenho Boa Esperança, situado no porto, é irmão mais velho do Coronel José de Araújo Marinho (primeiro presidente da Intendência da Vila Imperial de Papari), função que equivalia a prefeito. Ele governou durante 47 anos, no período de 1873 a 1921, também senhor de engenho. Era filho de S. Martinho de Carvalho Araújo.

Sobre as propriedades rurais citadas acima, é necessário considerarmos contextos de época. Essas 27 propriedades são mencionadas oficialmente, em documentos, como pertencentes à geografia de Papari. Mas como? Escreverei sobre esse detalhe em outro momento, mas ressalvo logo que os limites geográficos entre São José de Mipibu e Nísia Floresta mudaram umas três ou quatro vezes antes da divisão de 1852, portanto ora um engenho é informado num documento como pertencente a Papari, ora como sendo de Mipibu. Depende do ano em que a informação foi impressa ou escrita é possível entender a partir do conhecimento dessas diferenciadas demarcações territoriais. 

Engenho Descanso (fiz essa fotografia, e as que seguirão no final, em 2003, mas hoje é apenas ruínas)

Percebe-se também que algumas vezes os próprios documentos oficiais trazem algumas informações erradas. Papari já fez divisa até com Natal, antes de surgir Parnamirim, que era um lugarejo de Natal, como se sabe. Então isso se explica quando vemos 27 propriedades citadas como pertencentes a Papari, e hoje sabemos que algumas delas estão dentro da área geográfica de São José de Mipibu, como é o caso dos engenhos Mipibu, Dedo e São Luiz. É válido saber de Papari pertenceu a Mipibu até o início de1852.

Dentre esses nomes citados, observa-se a existência de 12 estabelecimentos com a nomenclatura de "Engenho". Os demais são sítios, inclusive há engenhos e sítios com nomes repetidos, por exemplo Sítio Sapê, Sítio Sapê (novamente) e Engenho Sapê, e dois Engenhos com o nome de Sertãozinho. Há documentos que citam apenas o nome sem mencionar "Engenho" ou "Sítio". Um professor/Historiador de Nísia Floresta, por nome de Carlos Augusto Bezerra Dias, contou-me, em 1995, que o seu pai era mestre de engenho no Engenho Descanso, década de 1960.

Observe que está manuscrito "Vicente Elízio, 1936, Engenho São Francisco".

Quando escrevi a história de Vicente Elísio, em 2009, no curso de uma entrevista que demandou três meses de conversas com três de seus filhos, subsidiado por parcos documentos pessoais do objeto da pesquisa, constatei que a denominação "Engenho" carregava um status, ou seja, dizer que era dono de um engenho era muito melhor que dizer ser dono de um sítio. Era a ostentação do passado. Sobre isso os três filhos de Vicente Elísio me contaram que seu pai era proprietário de um pequeno sítio num trecho de Papari chamado Capió. O sítio se chamava "Taboão". Depois eles foram comprando terras ao lado e começaram a fabricar o famoso "Aguardente Potiguar". Assim surgiu o "Engenho São Francisco" na década de 1930. O engenho era movido à tração animal... “os empregados colocavam cangas em dois bois e engatavam na ‘manjarra’ (engenhoca feita de madeira, onde os empregados colocavam lentamente as canas para serem moídas). Eram quatro bois, sendo dois para a manhã e dois para a tarde”, informou-me Maria de Lourdes, filha de Vicente Elísio. Essa bebida era fornecida para toda a região, inclusive Mipibu, "Bagaceira" (hoje Monte Alegre), Goianinha e Arês. Esse era um engenho apenas de fabrico de cachaça. Seu nome não está mencionado nos vários documentos que li porque surgiu bem depois.


Nem todos os engenhos de Papari tinham uma demanda comercial ampla, como o Engenho São Roque, o qual fornecia açúcar e rapadura para vários municípios. Da mesma forma eram os engenhos do Coronel Alexandre de Oliveira (Cavaleiro da Rosa), cujos nomes de seus engenhos ainda não me chegaram. No bojo desses engenhos e sítios todos, suas produções se diferiam. Uns produziam apenas cachaça, outros rapadura e melado, outros açúcar. Os melhores produziam todas essas mercadorias. 

Sobre essas propriedades, tenho inúmeras interrogações a trazer. Talvez mais interrogações que esclarecimentos, portanto o leitor pode me ajudar a consertar a história com a sua colaboração. Não sei informar ao leitor a localização de alguns engenhos, pois os documentos não se detém a isso, nem os próprios nativos sabem a localização de muitos deles, pois nunca ninguém se debruçou no assunto para registrar tais detalhes. Repasso para você a investigação. Observe que não é mencionado a famosa propriedade de Joan Lustau Navarro (escrevi assim porque tal nome é mencionado com cinco maneiras diferentes). Refiro-me ao local onde ocorreu o Massacre de Barra de Tabatinga, cuja essa história eu trouxe pela primeira vez aos nativos nisiaflorestenses em 1993, quando passei a tratar o assunto, depois escrevi sobre o fato no meu blog em 2009.

Restos do maquinário (caldeira, moenda e pilares) do Engenho São Roque
 

Vejam como a história tem pontos engraçados e curiosos. Os nativos diziam que esse massacre era uma invenção minha. Se fosse minha invenção também seria de Olavo de Medeiros Filho, verdadeiro monumento da História do RN. Além de escrever sobre isso, ele me contou com mais subsídios, em 1997, quando passei 5 anos enfiado no Instituto Histórico e Geográfico e tive o privilégio de conviver diariamente com a simplicidade e sabedoria dele.

Esse sítio era muito importante. Não teria sido mencionado em razão de já não ter mais valor em 1920? Também falam de um engenho existente próximo de Boacica, mas nunca alguém me forneceu o nome ou detalhes.

O outro documento que pesquisei data do ano de 1912 ou 1913. Não posso precisar porque o documento não tem data. Estou elegendo essa data porque nele é citado o vigário Manoel Maria de Vasconcelos Gadelha a frente da Paróquia de Nossa Senhora do Ó. E como o referido padre atuou ali no período de 1912 a 1913, não pode ser nem antes ou depois desse período. O referido documento cita outros proprietários rurais de Papari, permitindo-nos conhecer quem representava a sociedade patriarcal daquele tempo. São as seguintes pessoas: Francisco Duarte da Silva, Joaquim Januário de Carvalho, José Ferreira Xavier, João da Silva Leite, José Ignácio Ribeiro, José Joaquim de Carvalho, José Dantas Salles, José Marinho de Carvalho Costa, Jovino de Oliveira Salles, Olyntho Ferreira de Mesquita, Roque Maranhão, S. Marinho de Carvalho Araújo, Vicente Xavier de Paiva, Antonio F. Accioly, Accurcio Marinho de Carvalho Araújo, Joaquim Januário de Carvalho, Dona Belmira, Joaquim Augusto Freire, Manoel José Gonçalves, Manoel José de Moura, João Batista de Albuquerque Gondim, Joaquim Augusto Freire, José Joaquim de Carvalho, José Augusto de Oliveira, Manoel José Gonçalves.

Fundos do Engenho Descanso 2003 (atualmente está em quase completa ruína)

 Embora esse documento seja anterior ao documento mencionado no início, optei por colocá-lo depois porque o primeiro menciona a propriedade e o seu dono, e o seguinte menciona apenas os proprietários rurais. Não menciona o sítio ou engenho. Outro detalhe bastante curioso é a menção da senhora Belmira, que é nada mais que a viúva do Coronel Alexandre de Oliveira - “Cavaleiro da Rosa” que se encontra sepultado nas paredes da Igreja Matriz de Nossa Senhora do Ó. Como Belmira era bem mais nova que ele, seguiu cuidando das propriedades após a sua morte, em 1886.

Observe também que em Pirangi é assinalado o “Sítio Pirangy”, de propriedade de José Dias Freire. Precisamos entender se esse José Dias Freire é parente de Joan Alustau Navarro, pois sabemos que Manoel Laurentino de Alustau Navarro é descendente de Joan (só não sei precisar se é bisneto ou tataraneto), inclusive Manoel Laurentino é pai de Cândido Freire de Alustau Navarro (“Seu Candinho”, o “médico de Papari”, que percorria o município inteiro, de Pirangi a Jenipapeiro cuidando dos doentes). Seu nome dignamente batizou o Posto de Saúde do centro da cidade de Nísia Floresta (antiga Papari).

Ruínas do Engenho São Roque


Resumindo, percebe-se que a velha árvore de Oitizeiro, que esteve para Papari e Mipibu como o Valongo esteve para o Rio de Janeiro, fez sombra a pior página da história do Rio Grande do Norte. Ali eram vendidas as “peças”, cujos escravos eram comprados nos mesmos moldes de como se compram cavalos. Olhavam os dentes para ver se eram sadios e até as partes íntimas para não levar para a senzala a gonorreia ou sífilis, contaminando outras peças. Ali eram separados crianças dos pais, irmãos, enfim, o velho Oitizeiro testemunhou muito sofrimento.

Apesar de tudo, no Rio Grande do Norte o número de escravos não foi tão elevado. Nada se compara a São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia e Minas Gerais. Mas existiu. É fruto de um contexto - vergonhoso, mas é um contexto. Observando o Seridó e Sertão, por incrível que pareça, encontramos pessoas de pele muito alva e olhos azuis ou verdes. E quando percorremos Canguaretama, Goianinha, Arês, Papari, Mipibu até Ceará Mirim ainda encontramos pretos ainda retintos, comprovando a tese de que nessas áreas a escravidão foi muito mais forte. Isso não significa que outros lugarejos do Rio Grande do Norte não tiveram escravos. Pelo contrário há muitos registros que mencionam Luís Gomes, Mossoró, Macau, Currais Novos, enfim em  quase todo o estado.

Câmara Cascudo nos conta que o primeiro escravo negro chegou ao Rio Grande do Norte quinze dias após a fundação da cidade do Natal, em janeiro de 1600. No tocante à escravidão as informações de Cascudo se assemelham muito com as de Tavares de Lyra, mas uma coisa é certa: escravo sempre sofreu e foi humilhado. Seja aqui ou no Rio Grande do Sul. Essa história de bons senhores é como encontrar agulha em palheiro. Em 1850, auge dos engenhos, existiam 156 engenhos funcionando no Rio Grande do Norte, com predominância no trecho acima explicado. Porém, a partir de 1870, uma queda drástica do número de escravos aparece em todo o Rio Grande, embora os engenhos permaneceram a todo o vapor e força animal. Mas é certo que em solo potiguar a escravidão preta funcionou durante 288 anos.

Em Nísia Floresta há algumas famílias de cor preta que se casaram com outras famílias de pessoas de cor preta, preservando com muita autenticidade a cor original de sua etnia. Isso é muito visível no Porto. Já foi muito mais forte, pois o fenômeno do projeto “Minha Casa Minha Vida” desalojou as pessoas de seus lugares originais, tornando mais difícil essa constatação. Não que isso seja errado, mas me refiro a uma impressão que sempre tive, de que o Porto e o Timbó nasceram como uma espécie de “Mucambo”, após a abolição da escravidão, pois observei nesses dois locais a predominância do “preto-retinto”, principalmente entre 1993 a 1997, diferindo, por exemplo, da comunidade de Boágua, cujos moradores originais parecem holandeses e italianos.

Infelizmente as autoridades brasileiras foram cuidar muito tarde da cidadania dos povos pretos. Isso impediu que soubéssemos o que de mais precioso seria para todo antropólogo, e principalmente para o próprio povo preto. Eles perderam a identidade de suas tribos originais da África. Junto foi sepultado todos os saberes que seus bisavós trouxerem daquele continente. Até seus nomes de batismo tiveram que ser jogados nas fornalhas dos engenhos, substituídos por sobrenomes de origem portuguesa, copiados de seus senhores, ou catados a esmo para ter um sobrenome. Aqui chegavam, vindos de Recife, sem saber falar a língua portuguesa. E nem precisava, pois a linguagem falada era a linguagem do chicote. Detalhe deplorável.

Pois bem. Eis que mexendo em velhos papéis, deparei-me com esse material velho e o digitei aqui para não perdê-lo, como já aconteceu a alguns registros velhos e preciosos que poderão ajudar a tantos, e só são úteis se publicados. Como disse acima, talvez trago mais interrogações que respostas, mas essas insignificantes informações servem para pensarmos a história de Nísia Floresta e chegarmos a um denominador comum. É uma pena que nunca alguém aparece para contribuir com mais informações. Quem sabe é agora!



quarta-feira, 16 de setembro de 2020

Só existe uma solução para o Pantanal não morrer de vez...

 

 SÓ EXISTE UMA SOLUÇÃO PARA O PANTANAL NÃO MORRER DE VEZ...

Sabemos, desde o primário, que só chove por causa dos grandes mananciais de água e reservas de florestas existentes na Amazônia e no Pantanal brasileiro. Até mesmo o pouco que chove no Nordeste se deve a essa região. Digo Nordeste porque no Nordeste continuam destruindo o resto do resto do que restou.
Salvar o Pantanal é caso de vida ou morte. As queimadas anteriores precisariam de cinco anos para razoavelmente se reconstituir, pois a fauna e flora tem reação em cadeia. Ela só prospera coletivamente. Mas, infelizmente, vem uma queimada ainda pior em menos de um ano após a queimada anterior. E - DIGA-SE DE PASSAGEM: ESSA QUEIMADA É CAUSADA POR HOMENS.


SÓ EXISTE UMA SOLUÇÃO PARA O PANTANAL NÃO MORRER DE VEZ...

Sabemos, desde o primário, que só chove por causa dos grandes mananciais de água e reservas de florestas existentes na Amazônia e no Pantanal brasileiro. Até mesmo o pouco que chove no Nordeste se deve a essa região. Digo Nordeste porque no Nordeste continuam destruindo o resto do resto do que restou. Salvar o Pantanal é caso de vida ou morte. As queimadas anteriores precisariam de cinco anos para razoavelmente se reconstituir, pois a fauna e flora tem reação em cadeia. Ela só prospera coletivamente. Mas, infelizmente, vem uma queimada ainda pior em menos de um ano após a queimada anterior. E - DIGA-SE DE PASSAGEM: ESSA QUEIMADA É CAUSADA POR HOMENS.
O desastre ambiental é gigante e as consequências serão piores do que estamos passando com a Pandemia do Novo Corona Vírus. A falta de educação e entendimento das autoridades brasileiras - E PARTE SIGNIFICATIVA DO POVO BRASILEIRO - é culpada.
Na realidade, falta nobreza de caráter da parte de muitos agropecuaristas, pois não era mais para estarem queimando pasto para renová-lo ou para fazer roças. E eles sabem disso. Esse fogo é colocado por pessoas que conservam essa tradição antiga, ao invés de buscar outras soluções já existentes. Impressionantemente, muitos fazendeiros pantaneiros são inconsequentes, incapazes de se conscientizarem de que eles são responsáveis pelo futuro aumento de seca (estiagem/falta de chuva), desaparecimento de muitos tipos de animais e plantas, surgimento de doenças diversas, enfim um caos futuro que está sendo entregue aos nossos bisnetos... ao futuro.
 
A única atitude que cessará a morte definitiva do Pantanal é a desapropriação de uma faixa razoável de propriedades particulares que emolduram o Pantanal. O Governo Federal precisa se unir aos Governos estaduais e municipais, e pessoas que tem muito dinheiro (e alma boa), e comprar as fazendas que emolduram o Pantanal. É necessário muito dinheiro, MAS É A ÚNICA SOLUÇÃO PARA SALVARMOS AO PANTANAL, SE QUISERMOS SALVAR O PLANETA, e garantir aos nossos netos e bisnetos o direito de conhecer aquilo que nós conhecemos ao vivo. E essa atitude é possível. Falta ação e conscientização. É muito egoísmo deixarmos tudo isso se destruir. Há determinados charcos (áreas pantanosas) que secaram desde a queimada do ano passado. A tendência é a gradual desertificação. É ótimo dizermos que uma boa chuva resolverá tudo. JAMAIS! é COMO QUEIMADURA DE PELE: NUNCA SE RECONSTITUI INTEIRAMENTE. É fantasioso dizer isso. A chuva será alento passageiro. Logo uma meia dúzia de fazendeiros põe fogo novamente. Ou vândalos. A solução é desapropriação e compra das fazendas vizinhas. ESTAMOS FALANDO DE UM SANTUÁRIO... SÃO VIDAS ANIMAIS E VEGETAIS, INCLUSIVE AS NOSSAS VIDAS!
 
O mais sensato seria o altruísmo e desapego dos proprietários. Na realidade isso deveria ser doado, mas jamais os mercenários fariam isso. ENTÃO RESTA DESAPROPRIAR E PAGAR O QUE VALE NA FORMA DA LEI. O Pantanal deve ser transformado em SANTUÁRIO SAGRADO E INTOCÁVEL DA HUMANIDADE, assim como a AMAZÔNIA.
Nós, brasileiros, precisamos com urgência, varrermos da política partidária os homens públicos incompetentes, corruptos e descomprometidos com causas nobres e urgentes como essa do Pantanal (dentre tantas), pois é caso de vida ou morte. Não dá mais para olharmos homens e mulheres inescrupulosos no poder, apelidados de senadores, deputados, prefeitos, vereadores, presidentes cheios de mimimi. Eles, sim, vivem dizendo mimimi. Há exceções dentre eles, mas são raríssimas.
 
É inadmissível e intolerável o que está acontecendo. São milhares de animais mortos, das mais diversas espécies. Eles perderam os seus "cantinhos", suas tocas, seus refúgios. Há comunidades de macacos que morreram em massa, pois viviam em santuários naturais, de mata intransponível, e não houve como sair. Imagine a dor desses pobres animais. Morrer queimado! Os animais que sobreviveram poderão morrer de fome, assim como esses cavalos selvagens do Pantanal mostrados na imagem aqui postada (inclusive essas fotografias são do nosso amigo Gustavo Basso). Esses animais não tem mais o que comer. É muito triste. E revolta saber que quase ninguém está fazendo nada. Isso acontecerá com muitas aves, enfim com várias espécies. Muitos morrerão por causa do estresse. Alguns animais sobreviventes morrerão depois porque tiveram seus movimentos limitados, ficaram deficientes, portanto susceptíveis aos outros animas. Virarão presas fáceis. Para que o bioma seja parcialmente reconstituído são necessários muitos anos. E QUEM GARANTE QUE DAQUI A UM ANO NÃO TEREMOS UMA QUEIMADA AINDA PIOR? 
 
Vocês sabiam que alguns fazendeiros alimentam essas queimadas por má fé? É uma forma de usar o Pantanal como o quintal de seus latifúndios? Eles adiantam suas cercas gradualmente, ampliando suas propriedades e enfiando gado. É por isso que eu acho muito difícil, e que somente uma atitude extrema resolveria isso. Sei que a conscientização é importante - e escrevo acreditando nela - mas há muitos fazendeiros inescrupulosos. A religião deles é AGRO É POP, AGRO É TUDO!
 
Quando ouço minha mãe, de 88 anos, que mora no Mato Grosso do Sul, dizendo que acorda e dorme com cheiro de fumaça, que não se vê as nuvens e o céu, fico sem ter o que dizer a ela. São facadas no meu coração. Confesso que vendo vídeos na televisão e nas redes sociais, não me canso de chorar, e tenho vergonha por só ter o meu choro para oferecer. Aliás, meu choro e minha palavra. Por tudo isso, peço a quem pensar igual a mim, que compartilhe isso, que escreva também, que faça denúncias, que conscientize pessoas, que ajude da forma que puder, inclusive não elegendo todos aqueles políticos que estão em silêncio, ou que fazem apenas mimimi...
 


















 

sábado, 12 de setembro de 2020

A filologia nisiaflorestense (como as palavras são pronunciadas em Nísia Floresta) Trabalho de Oralidade



"Ciça" do pecado Maneiro, uma das pessoas mais especiais que conheci. O que aprendi com esse ser humano pleno não tem dinheiro que pague e não há academia que ensine.

Em 1997 uma professora de uma escola estadual que tenho pouco contato, contou-me que uma colega, na sala dos mestres, alertou os demais professores a não conversar alto perto de mim. Disse que eu "mangava" do modo como eles falavam.
Eu gosto de contar essa história para permitir uma importante reflexão. Eu sempre fui meio "Manoel de Barros", um apaixonado pela palavra e os modos de se pronunciá-la. Isso me encanta de maneira incomum. Por esse motivo, seja no Mato Grosso do Sul, no Rio Grande do Sul, no Paraná, em Santa Catarina, em São Paulo, lugares onde passei e, por último, no Rio Grande do Norte, sempre observei os modos de as pessoas falarem, a pronúncia, as palavras "diferentes", ou melhor, os regionalismos e afins. Mas sempre fiz isso com paixão e profundo respeito, pois acho muito linda a linguagem regional. 
É certo que algumas palavras - ou frases - pelo menos para mim, que não sou potiguar, soavam estranhas ou engraçadas, como por exemplo cu de burro, mulesta dos cachorros, diabo é, vou chegando (para dizer que está saindo), peia, sostô, iapois, danado é, dentre tantas que permitem tais sensações. Mas jamais "mangei", como alegou a professora. Inclusive a própria palavra "mangar" me é curiosa e interessante também. O que sempre fiz foi anotá-las, estudá-las e compilá-las para que jamais se perdessem, pois, por incrível que pareça, muitos nativos sentem uma espécie de vergonha de usar essa espécie de dialeto dos seus pais e avós.
O meu olhar sobre tais palavras é de pesquisador, de educador. Jamais foi ou é um olhar imbecil, capaz de ver como errado ou inferior o grande tesouro que é a linguagem popular. A propósito disso sempre sensibilizei os nativos a entender que a linguagem é o seu maior patrimônio, que não existe falar errado; o que existe são modos diferentes de se falar, e que a linguagem erudita é outra coisa, e que também tem o seu lugar. Foi apenas isso!
Mas equívocos à parte, vamos lá...
A filologia nisiaflorestense tem pontos interessantes, cuja raiz perde-se no tempo. Não existe nada escrito sobre o assunto. Acredito que a evolução semântica, como ocorreu em quase toda essa região, deu-se sob o falar indígena, africano, holandês e português (refiro-me ao português antigo – dos primeiros habitantes que vieram de Portugal, no qual se inclui o linguajar mouro). Nós, brasileiros, falamos há 503 anos, um bom período para que o jeito de falar fosse se lapidando aos poucos, de acordo com as influências estrangeiras que cada região recebeu.
Por aqui a letra “v” torna-se “r” quando usada em certas palavras. Normalmente o verbo vir costuma ser conjugado com um “r” no lugar do “v”, por exemplo: “rou” (vou), “rai” (vai), “renha” (venha), “reio” (veio), “ramo” (vamos),etc.
A maioria das pessoas omite o “s” ao final das palavras, como o caso do ramo, ao invés de “ramos”. É muito comum ouvirmos as pessoas dizendo “andá” (andar), “falá” (falar), “corrê” (correr), “cumê” (comer), “pegá”(pegar). O “r” também é comumente omitido.
Palavras terminadas com “s”ou “z” normalmente são pronunciadas (pelos mais idosos) com um “i” antes do referido “s”, por exemplo: “meis” (mês), “nóis-moiscada” (nós-moscada), “trêis” (três), “veiz” (vez), “cóis” (cós), apóis (após), “nóis” (nós), etc.
É muito comum o uso do “i” depois do “na” seguido do “s”, por exemplo: “naiscer” (nascer) e “nais” (nas).
Os nativos mais antigos costumam pronunciar o “i” após as vogais “a”, “e” e “o”, por exemplo: “aico” (álcool), “aima” (alma), “biscaite” (biscate), “peico” (perco), “páitu” (pátio), “ceica” (cerca), “cóite” (corte), “bôin dia!” (bom dia!). No caso do “bôin dia”, a vogal “o” tem som nasal e um nítido “n” após o “i”.
Normalmente as consoantes “l” e “s” não são pronunciadas quando estão no final das palavras. Veja: “mé” (mel), “fé” (fel), “ané” (anel), “Migué” (Miguel), “Samué” (Samuel), “nai” (nas), “nóis” (nós), etc. Um interessante exemplo está na expressão “apoi” (“apois”).
Uma curiosa utilização do “i” ocorre quando certas palavras têm um “l” ou um “r” no meio, por exemplo: “caiça cuita” (calça curta), “cuito” (culto), “caivão” (calvão), “caita” (carta), “paico” (palco), “poiquêra” (porqueira), “peico” (perco), “poico” (porco), “puiquê” (porque), dentre outras.
Em alguns casos o “n” é omitido, por exemplo: “evelope” (envelope) e “edereço” (endereço).
Constatei casos raros e até incríveis em algumas famílias. Analise esses: “antonti” (antes de ontem), “dernantonti” (desde antes de ontem), “tresantonti” (três dias antes). Podemos perceber que “derna” é uma curruptela de desde.
Nas mesmas casas onde ouvi os raros palavreados acima, ouvi também: “côni” (quando) , “con’eu” (quando eu) e “disparecer” (esparecer).
A interjeição tchau é pronunciada por muitos como “chau” sem o som do “t”. Outros falam “te-chau”.
Por ser a palavra tchau de origem italiana, cuja escrita original é “ciao”, o brasileiro aportuguesou-a apenas na escrita, pois ambos os países a pronunciam da mesma forma. A propósito a consoante “c” em italiano tem o som de “t”. A pronúncia deles é “tiao”.
Outro caso semelhante refere-se às expressões “peitchu” (peito), “muintcho” (muito) e “gostcho”. No caso do “peitchu”, se considerarmos apenas a questão etimológica, ignorando o regionalismo, podemos afirmar que é uma forma errada de falar. Entretanto, por ironia, há uma semelhança incrível com a raiz da palavra. Não me refiro à semântica, mas à morfologia da palavra, a qual no seu original em latim escreve-se pectus, cuja pronúncia assemelha-se muito ao “peitchu” de Nísia Floresta e de grande parte do Nordeste.
Uma outra curiosidade faz-me reportar a palavra “entonce” (então), a qual é falada por raros idosos quase tão fielmente ao entonces espanhol. A diferença é que na Espanha se pronuncia nitidamente o “s”. É importante lembrar que a expressão “entonce”, em vigor em Nísia Floresta, é uma palavra ultrapassada e que era muito comum no português medieval, a qual tem origem no latim intunce e também extunce.
Existem raros casos de nisiaflorestenses que falam “vórrmicê” (vosmicê) (você). Uma forma diminuída de dizer Vossa Mercê (a avó de Vossa Senhoria). Interessante é que mercê (em latim: merces) significa “graça”, “proteção”, “benefício”.
Quem sabe no português medieval Vossa Mercê ou vosmicê também significou vossa graça?, ou seja vosso nome? Pois muitos por aqui usam essa expressão quando querem saber o nome de alguém: sua graça?
No universo pluralista dessas expressões regionalistas podemos encontrar casos extremos, onde pessoas que se servem parcialmente desse regionalismo, costumam “estranhar” e até zombar daquelas mais versadas no falar popular. Tais versados são rotulados de matutos.
Veja alguns exemplos: “prá sumana eu vo” (para a semana eu vou – eu vou na próxima semana), “tá quilaro” (está claro), “minhã eu vo” (amanhã eu vou), “istrui” (destruir), “istrudia” (outro dia), “apoi” (“apois” – percebemos aqui que o próprio regionalismo tem outras vertentes, as quais se diferem segundo certas peculiaridades de algumas famílias), “ingreja” (igreja), “strumo” (estrume), “nu ro não” (não vou não), “tu riu” (tu viu?), “ce rai dispois” (você vai depois), “nu dixi” (não disse), “boralá” (embora lá), “borali” (embora ali), “ramo lacolá” (vamos lá acolá – aqui ocorre uma redundância), “Avre Maria!” (Ave Maria!), “lastá-lo ele” (lá está ele), etc.
O que também chamou muito a minha atenção foi constatar casos de crianças entre 5 a mais ou menos 15 anos usando o linguajar dos avós e bisavós como um dialeto. Digo dialeto porque em vários momentos muitas frases fogem a compreensão até mesmo de quem é nativo, pois, como já expus, a prática desse linguajar não é algo homogêneo, diferindo, sim, de um distrito para outro, dependendo da expressão.
A prova maior da existência dessa espécie de dialeto está no fato de algumas crianças não utilizarem na escola ou na rua a mesma linguagem usada em casa com os avós. Entretanto é difícil a criança saber separar o que é “dialeto” e o que não é, exceto quando é alvo de zombaria principalmente na escola. Só assim ela deixa aquela palavra em casa para conversar com os avós (esses com certeza não mangam – diriam).
Podemos perceber com isso que, por mais que a linguagem se lapide, existe uma resistência involuntária, estimuladas pelos idosos (ainda bem!).
Outro detalhe interessante e que reforça a riqueza e a beleza das expressões populares, refere-se ao fato de muitos universitários e pessoas formadas conservarem vivamente o regionalismo.
Constatei que o regionalismo e a existência do que preferi denominar dialeto, torna-se mais forte nas casas onde existem menos pessoas alfabetizadas, que vivem em áreas rurais e que têm em seu seio pessoas idosas.
É possível ainda ouvirmos “pia li” (espia ali), “vareia” (varia) e outras. Casos de pronúncia apocopada é, de certo modo, comum, por exemplo: “refém” (referente), “hômi” (homem), “mué”, “mulé” ou “muié” (mulher), “Gabrié” (Gabriel), etc.
Casos de suarabacti (ou epêntese) ocorrem na mesma proporção, por exemplo: “empriquitado” (empiriquitado), “espritado” (espiritado), “intriçado” (icteriçado – de icterícia), “tramela” (taramela), “mó” (maior), “pruquê” ou “proquê” (por que ou porque), etc.
Talvez até mesmo alguns nativos possam estranhar esse apanhado de palavras, pois dispostas dessa forma, soltas e aleatórias, soam, de fato, estranhas, mas a partir do momento que integram um diálogo a coisa muda. É bom lembrar que elas foram obtidas dentro de um contexto, a partir de conversas informais, de maneira despercebida. E não foram juntadas num dia. Esse pequeno exemplo é fruto de anos de observação, até porque tenho uma quantidade incomparavelmente maior de outras, que ficam para outra postagem.
Creio que aqui está reunida uma breve reflexão em termos de regionalismo constatado em Nísia Floresta. Não se trata de uma reflexão completa, pois em pesquisa não existe fim, ademais, como já disse, a linguagem é mutante, assim como toda a natureza.