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CONTATO: (Whatsapp) 84.99903.6081 - e-mail: luiscarlosfreire.freire@yahoo.com. Este blog - criado em 2008 - não é jornalístico. Fruto de um hobby, é uma compilação de escritos diversos, um trabalho intelectual de cunho etnográfico, etnológico e filológico, estudos lexicográficos e históricos de propriedade exclusiva do autor Luís Carlos Freire. Os conteúdos são protegidos. Não autorizo a veiculação desses conteúdos sem o contato prévio, sem a devida concordância. Desautorizo a transcrição literal e parcial, exceto breves trechos isolados, desde que mencionada a fonte, pois pretendo transformar tais estudos em publicações físicas. A quebra da segurança e plágio de conteúdos implicarão penalidade referentes às leis de Direitos Autorais. Luís Carlos Freire descende do mesmo tronco genealógico da escritora Nísia Floresta. O parentesco ocorre pelas raízes de sua mãe, Maria José Gomes Peixoto Freire, neta de Maria Clara de Magalhães Fontoura, trineta de Maria Jucunda de Magalhães Fontoura, descendente do Capitão-Mor Bento Freire do Revoredo e Mônica da Rocha Bezerra, dos quais descende a mãe de Nísia Floresta, Antonia Clara Freire. Fonte: "Os Troncos de Goianinha", de Ormuz Barbalho, diretor do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, um dos maiores genealogistas potiguares. O livro pode ser pesquisado no Museu Nísia Floresta, no centro da cidade de nome homônimo. Luís Carlos Freire é estudioso da obra de Nísia Floresta, membro da Comissão Norte-Riograndense de Folclore, sócio da Sociedade Científica de Estudos da Arte e da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Possui trabalhos científicos sobre a intelectual Nísia Floresta Brasileira Augusta, publicados nos anais da SBPC, Semana de Humanidade, Congressos etc. 'A linguagem Regionalista no Rio Grande do Norte', publicados neste blog, dentre inúmeros trabalhos na área de história, lendas, costumes, tradições etc. Uma pequena parte das referidas obras ainda não está concluída, inclusive várias são inéditas, mas o autor entendeu ser útil disponibilizá-las, visando contribuir com o conhecimento, pois certos assuntos não são encontrados em livros ou na internet. Algumas pesquisas são fruto de longos estudos, alguns até extensos e aprofundados, arquivos de Natal, Recife, Salvador e na Biblioteca Nacional no RJ, bem como o A Linguagem Regional no Rio Grande do Norte, fruto de 20 anos de estudos em muitas cidades do RN, predominantemente em Nísia Floresta. O autor estuda a história e a cultura popular da Região Metropolitana do Natal. Há muita informação sobre a intelectual Nísia Floresta Brasileira Augusta, o município homônimo, situado na Região Metropolitana de Natal/RN, lendas, crônicas, artigos, fotos, poesias, etc. OBS. Só publico e respondo comentários que contenham nome completo, e-mail e telefone.

sexta-feira, 3 de maio de 2019

Senhora Leslie Gramont

SENHORA LESLIE GRAMONT


(Conto de ficção)

A expressão “casinha de boneca” não encontra exemplo maior que não seja na casa de número vinte e oito da rua Tuiuti naquela cidade. Na verdade é uma assobradada residência centenária. A comparação se dá pelo conjunto da obra. A fachada exibe altos e baixos relevos semelhantes a renda francesa. Um par de leões de mármore embeleza o pórtico de entrada numa pose imponente. O portão de ferro, importado de Londres, traz no centro o brasão dos Gramont. O ladrilho hidráulico, os azulejos, louças do banheiro e a ferragem da imponente construção vieram da Inglaterra. Adiante, duas colunas clássicas estão enfiadas numa escadaria de mármore, dando acesso à porta de entrada, cujas visitas se anunciavam por via da aldrava de bronze afixada na porta.
O muro é encimado por um belo gradeado de ferro com aplicações de flores e guirlandas de latão. O jardim exibe toda sorte de flores e roseiras. Seu colorido contrasta com todos os tons de verde das cercas vivas impecavelmente podadas. A residência, emoldurada por uma mini-floresta plantada pelo avô da senhora Leslie Gramont, ocupa um quarteirão da cidade.
Entrar no “solar dos franceses”, como chamavam o povo, era uma viagem. A proprietária amava louças e porcelanas. A cristaleira de jacarandá guardava incontáveis exemplares que pertenceram ao conde Françoise Quepart Gramont, avô da Senhora Leslie. As peças desse móvel representavam um detalhe diante de incontáveis porcelanas distribuídas na casa inteira, vasos decorativos de limoges, jogos de jantar, travessas e uma variedade de xícaras de todos os tamanhos e cores. Muitas, dos séculos XVII e XVIII.
As paredes internas eram encapadas com obras de arte originais, assinadas por pintores europeus renomados. Sobre os móveis e prateleiras ficavam estrategicamente expostas diversas peças decorativas de prata e bronze. Três tapetes persas forravam o piso de mármore de Carrara, um na antesala, outro na sala de estar e o último na sala de jantar. Os arabescos e floreios em tom sobre tom agradavam os olhos de quem apreciasse o ambiente.
No centro do estuque desses três espaços se dependuravam três gigantescos lustres de cristal com detalhes em prata e ouro. Os exemplares foram presentes da família real espanhola, doados ao conde Françoise Quepart Gramont. Uma escultura de dom Quixote em tamanho natural se somava a outras peças semelhantes, distribuídas harmoniosamente entre as dez janelas que emolduravam a fachada. Dava gosto contemplar seus cortinados. O ambiente era arejado e pleno de luz natural. No centro da sala de estar havia uma galeria de fotografias e pinturas de gente antiga da genealogia Gramont e Valery. A primeira, do pai da Srª Leslie; a segunda, da mãe.  O solar dos franceses era um mini- Louvre. Esse “acervo museológico”, diferente de expressar uma imagem carregada, trazia leveza incomum, graças ao toque decorativo da proprietária.

Senhora Leslie era uma fortaleza. Contava cento e dois anos de idade e aparentava setenta. Sua longevidade e outras coisas mais eram objeto de comentários na cidade. Havia muita curiosidade sobre a velha senhora e o contexto que a envolvia. O avô Françoise Quepart, conde parisiense, chegou ao Brasil no meado do século XIX para pesquisar a fauna e flora locais. Também colecionava borboletas e minerais. Chegou recém casado. Sua esposa, Judith, era filha única igual ao marido. Inicialmente ele pretendeu retornar definitivamente à França, após concluir suas pesquisas, mas a paixão por estas plagas foi maior. Retornou apenas para buscar sua babilônica biblioteca e muitos pertences. Seus livros jaziam intactos num dos cômodos do solar, juntos aos cadernos de anotações, desenhos, exemplares de minérios e a bela coleção de borboletas.
       O tempo passou. Tiveram um único filho, Roger Gramont que casou-se com Georget, curiosamente filha única. Eram proprietários de joalherias e grandes fazendas na localidade. São os pais já falecidos da senhora Leslie. A sina se encerrou nela. Era literalmente uma mulher sem parentes. Para arrastar mais singularidade à sua história, não possuía herdeiro, afinal nunca se casou. Pretendentes choveram. Ela escolheu a vida de solteira.
       Como já foi dito, a senhora Leslie era tema de palestras incontinentis nas praças e ruas. Uma delas versava sobre a sua beleza e fidalguia. Não havia quem não a comparasse a uma princesa européia. A elegância natural saltava de dentro. Suas atitudes gestuais, o modo de falar e até mesmo o olhar revelavam um quê de realeza. Apesar do comportamento polido, não se furtava a esboçar sorrisos contagiantes no trato social. Era refinada, vestia-se com elegância, e dentre o seu arsenal de jóias, escolhia as peças mais delicadas. A pele louçã se assemelhava às várias de suas porcelanas inglesas.
       Uma pequena criadagem dividia espaço com ela. Cada qual nos seus devidos afazeres. Há trinta anos recebia os cuidados da senhora Bárbara, uma espécie de secretária particular de setenta anos de idade, disponível em todos os momentos. Os pais dela serviram aos antepassados da família Gramont. Dizem que a convivência torna a pessoa parecida. Era o caso dessa acompanhante, a qual aprendera modos fidalgos e se revelava quase uma cópia de sua senhora.  
Todos os negócios financeiros, despachos decorrentes das propriedades da senhora Leslie e demandas do solar, passavam pelo crivo de sua secretária, antes de ir para as mãos dos inúmeros advogados que ajudavam a administrar o patrimônio Gramont. Ambas eram mãos de ferro nesses tratos. A vivacidade, o tino para negócios contidos na senhora Leslie, lhe passara por osmose, dando à senhora Bárbara notável discernimento. A acompanhante ficara viúva há vinte anos e o casamento lhe rendera um casal de filhos que residiam na capital.
       Apesar de proativa, a idade avançada da senhora Leslie tornou-a mais caseira. Deixou de dirigir o seu Ford T aos noventa e cinco anos, obrigando-se a contratar um choffeur que a tratava como rainha. Aliás, havia esquecido de dizer, o povo a tratava assim. Todos diziam que ela era uma rainha européia. O veículo foi o segundo a chegar ao Brasil, junto com um exemplar encomendado pelo imperador brasileiro. Quando em trânsito, roubava a cena na cidade habituada a carruagens e cavalos.
Mas nada a tornou ociosa. Acordava diariamente às cinco horas, percorria as aléias de sua propriedade, apreciando a relva e o perfume do jardim, apanhava flores e não dispensava o hábito de se deliciar logo cedo com as frutas da época, colhidas por ela mesma. Sua paixão eram os sapotis e carambolas. Nunca deixava de apreciar o galinheiro e admirar os cinqüenta pavões que viviam soltos no jardim. Acostumados a ela, os bichos não se importavam, desfilando seus penachos que quase a cobriam totalmente. Os empregados que também acordavam com as galinhas não cansavam de admirar a amizade da senhora Leslie com os passarinhos. Eles ficavam ouriçados quando a viam. Voejavam sobre ela e pousavam nas galhadas numa revoada sem fim. Era uma espécie de bom dia. Alguns diziam que ela carregava algo de misterioso. A cidade sonhava ser passarinho para contemplá-la naqueles amanheceres mágicos, narrados pelos empregados.
Nessas manhãs, agarrava uma ferramenta e passava bom tempo revolvendo a terra, preparando mudas, regando plantas, colhendo flores, enfim antecedia em muito o jardineiro que costumava chegar às oito horas. Quando isso acontecia, ela o acolhia com poucas palavras e se retirava para apreciar o indispensável banho seguido do café da manhã. Logo após, viajava, como costumava dizer, na colossal biblioteca. Era apaixonada pela obra de Gustave Flaubert, Baudelaire, Vitor Hugo, Proust, Dumas e Dostoievski. Conservava lápis e papel em locais estratégicos, instigada pelo hábito de escrever contos que até então se conservavam anônimos e aos calhamaços. Explicava que vez em quando vinha-lhe insights e precisava jogar a idéia no papel. Depois, inspirada a escrever, pegava do lápis e da caneta e dava asas à imaginação. Citava Goethe, quando se enroscava em algum capítulo, alegando que a palavra era indomável, por isso jamais seria famosa.
Encerrada a viagem, estirava as pernas andando pelas salas, sentava-se em sua cadeira de balanço e aguardava a hora do almoço. Normalmente isso se dava às onze horas e trinta minutos, quando os carrilhões badalavam. Ao meio dia ela almoçava acompanhada da senhora Bárbara, que até então estava em diligência com as empregadas internas e outros empreendimentos. Após o almoço a sua sesta era sagrada, mas não passava de quarenta minutos.
Então ela se levantava e findava a tarde mergulhada na lida com as porcelanas e louças. Era quase uma oração. Retirava uma a uma, lia as inscrições no fundo de cada peça. Quando a governanta estava próxima, sobravam histórias sobre cada exemplar manuseado. Essa pertenceu ao meu bisavô, é chinesa, ele trouxe dois conjuntos desse em uma de suas viagens diplomáticas àquele país. Essa aqui é porcelana casca de ovo, é inglesa, presente de casamento de mamãe. Vovô trouxe dez vasos de limoges iguais a esse, todos de cores diferentes quando escolheu morar no Brasil.
Cada peça, uma história.
De fato parecia uma religião o hábito da senhora Leslie. Apesar de todo o seu acervo estar impecavelmente limpo, costumava lustrá-lo com uma flanela quando a devolvia ao movel. Falando em religião, a aparente ausência de espiritualidade instigava a curiosidade dos empregados. Mais que isso, era assunto da cidade. A descendente de franceses, assim como seus pais, nunca freqüentou igreja. Conservou a tradição da família. Fazia generosas doações diretamente ao arcebispo, mas exigia anonimato e não freqüentava os convites eclesiásticos. Nenhum. Nunca se ouviu dela palavras torpes sobre igrejas ou religião. Igrejas são monumentos históricos e devem ter preservadas as suas características originais e os seus acervos sacros. Era o discurso dos Gramont. Talvez cuidar de patrimônios fosse a religião deles.
A casa não possuía imagens sacras sequer para uma oração desesperada em hora de temporal. O leitor cristão talvez julgue mal a senhora Leslie, mas ela e seus familiares certamente eram santos por excelência. Todo final de mês desciam generosas doações de alimentos para os pobres das periferias. Ao asilo de idosos, hospício e orfanato locais não faltava nada, pois as somas vultosas doadas por ela garantiam seu confortável funcionamento. Ela exigia anonimato, embora muitos suspeitassem do seu gesto. Nunca pisou sequer na calçada desses lugares, apenas se informava se funcionavam bem.
       Entrar no solar dos franceses era objeto de desejo do povo da cidade. Tudo atraia a atenção. As janelas e portas monumentais. Até mesmo o prendedor de janelas, pequeno detalhe em formato de homenzinho fincado na parede. As crianças enfiavam a cabeça no gradeado e passavam horas apreciando as miniaturas, certamente supondo ser brinquedo. À noite os vitrais davam à casa um aspecto eclesiástico, embora retratavam apenas paisagens francesas e cenas mitológicas. Tudo fora obra de renomados artistas europeus.
Muitas vezes, ao anoitecer, os transeuntes viam a senhora Leslie através da janela. Então diminuíam as passadas para degustar a tela barroca, viva e intensa. Era um cenário doce. Os vitrais acesos através das luzes internas, o gramofone tocando Debussy. Ela amava Clair de lune. Dizia que a música era parente da leitura, pois nos transportava aos lugares impensáveis, e muitas vezes nos jogava dentro da filosofia.
Alguns empregados não compreendiam certas colocações dela, mas consideravam sábias, portanto valorizavam suas mínimas colocações. Depois iam discutir e digeri-las nas reuniões em algum cômodo do solar. Após o jantar ela seguia para a adoração às porcelanas. Demorava-se muito tempo contemplando os desenhos de cada peça e contando algo sobre todas. Era a sua cantilena. Sempre com espectadores cheios de cuidados e atenção. Suas criadas a tratavam com um carinho santificado, pois nunca receberam dela o mínimo maltrato. Pelo contrário, corrigia as coisas com uma delicadeza rara. Apesar de tanta fortaleza, elas sabiam que verdadeiramente a senhora Leslie era como uma louça daquelas.
Os objetos de porcelana tinham efeito de livros, pois a vasta cultura da senhora Leslie e sua mente lúcida resultavam em contações de admiráveis histórias. Cada desenho tinha explicações detalhadas. Um, retratava determinado pintor que se parecia com outro, que estudou artes em determinado lugar, cuja característica lembrava certo artista; outro, que foi infeliz na vida amorosa, que morreu de tuberculose. Desse modo ela se reportava a lugares do mundo inteiro, e seu enfronhamento nas porcelanas e louças se tornava aula interminável. Isso encantava.
Não tinham fim os livros, aliás, as xícaras, os pires, os pratos, as travessas da senhora Leslie. Por extensão, não tinham fim suas histórias. Eram informações que somente ela sabia, pois sua ilustração lhe dava esse poder. E para aquilatar ainda mais valor, cada informação se somava a fatos ou curiosidades familiares, de maneira que aquele momento era único. Diferente talvez de outras velhinhas quase mortas, ela nunca externava cansaço. Parecia de ferro. Sua voz, apesar de aveludada, era forte. Não parecia saída de uma garganta tão antiga. A governanta tinha uma aula de artes a cada reencontro com as porcelanas da patroa.
Quando, por fatalidade, alguma peça se quebrava não via o lixo. O jardineiro aprendeu com ela a fazer pó de louça. Numa espécie de pilão de ferro ele fragmentava ainda mais os cacos até moê-los e aparecer uma espécie de talco branco. Misturado a uma pasta de sabão comum, era o melhor polidor do mundo, dizia a senhora Leslie. Apesar de existir produtos importados para tal finalidade, ela priorizava a invenção vinda nas arcas dos avós. E sua tese se comprovava no aspecto das pratarias da casa. Pareciam espelhos.
Alguns hábitos tinham foros de sagrado na vida daquela senhora. Às vinte horas em ponto ela se deitava para acordar religiosamente na mesma hora de sempre. Estando na biblioteca, agachava-se para apanhar os livros na prateleira mais baixa, subia uma pequena escada de madeira e alcançar as obras em posição mais elevadas. Usava as escadarias do solar a todo o instante. Sua saúde surpreendia. Nunca foi vista sequer com gripe. Isso certamente instigava o imaginário do povo da cidade. Havia de fato algum mistério na senhora Leslie Gramont?
       Era assim a sua vida. Ela sentenciava sempre que sua vitalidade vinha de suas porcelanas, dos livros e da satisfação de poder ajudar pessoas. Ressaltava que quando doava, mesmo que a pessoa estivesse precisando muito e se desdobrasse em agradecimentos, ela era a mais feliz por ter doado. Não se cansava de proclamar que o sentido da vida, e quem sabe, da longevidade, estavam nesses detalhes. A senhora Leslie era uma fonte de inspiração, tendo despertado o gosto pela leitura e amor às coisas da arte nos seus subordinados. Eram pessoas pacificadoras e serenas, complementando a paz no solar Gramont. Os empregados tiveram os seus comportamentos lapidados por excelência, no simples convívio com aquele ser humano doce.
Mas, como dizem algumas pessoas “ninguém nasceu para lajeiro”.
No amanhecer do dia treze de maio de 1915 a elegante senhora não acendeu a luz do quarto. A governanta não ouviu o tilintar da xícara de porcelana tocando o pires inglês. Era o momento que ela bebia o seu chá de alecrim. Dizia que a fonte da saúde residia no hábito de beber água ou chá em jejum. Naquele instante deveria haver farfalhar de panos, ranger de cama e sons de passos. Mas nada, nada se ouvia. Havia silêncio. Puramente silêncio. Diante da cena incomum a empregada foi verificar o que se passava.
Longe supor que sua senhora adoecera. Sabia que aquele corpo era blindado. Deduziu que ela elegera o dia santo para se demorar mais na cama. Mas não era comum. A senhora Leslie não guardava datas santas. Muito menos pensou em morte. Mas se enganou e teve a surpresa que desde o início do parágrafo o leitor imaginou. A senhora Leslie estava gelada. Sua posição de dormir sempre fora de morta. Costumava se deitar olhando o teto. Cabeça sobre o travesseiro, mãos enfiadas uma na outra, aquietadas na altura do umbigo e pés bem juntos. Os empregados não gostavam daquela pose, mas nunca interferiram, afinal era a senhora Leslie.
A governanta afastou as cortinas das gigantescas janelas, abriu-as e instantaneamente surgiu uma alvorada de pássaros. Alguns adentraram no quarto, como sentindo a perda irreparável. Naquela manhã o jardineiro quebrara o protocolo e já estava a postos. E estranhou, pois nunca as janelas eram abertas naquela hora, apenas as cortinas deslizavam para o canto.
       Poucos minutos depois os funcionários foram acordados pela notícia. Suas fisionomias revelavam um misto de perplexidade e inconformação. Como pode ter morrido uma mulher como a senhora Leslie? Certamente pensavam assim. O jardineiro tirou o chapéu, colocou sobre o peito e suas lágrimas escorrerem em cascata. Logo o povo da cidade entrou em polvorosa. A rainha Leslie Gramont morreu. Assim anunciavam. A notícia correu com a velocidade do seu Ford T. Uma multidão se juntou defronte ao solar. Era uma perda irreparável. Morreu uma luz intensa que clareava todas as curiosidades. A senhora Leslie era um patrimônio. Havia orgulho quando se falavam dela, mesmo imaginando mil coisas.
       Senhora Bárbara, sua secretária, cuidou providenciar tudo. Mandou cobrir os espelhos e quadros do solar. Os objetos miúdos foram colocados em gavetas trancadas. Alguns móveis foram afastados para facilitar o velório. Logo apareceu o arcebispo, interrogando sobre a missa de corpo presente. Os advogados se reuniram em peso com a senhora Bárbara, a qual tinha uma respeitabilidade tão forte que parecia a reencarnação da morta. Havia um testamento no cofre, cujo segredo era aberto por sete chaves diferentes, cada uma com um advogado, inclusive uma de posse da senhora Bárbara e outra, nas mãos da senhora Leslie, cuja governanta já havia achado na gaveta do aparador. Decidiram que o abririam após o enterro.
       A cidade fez fila para ver a senhora Leslie. Na realidade era mais que vê-la. Era contemplá-la, admirá-la e chorar o desaparecimento de um mito. Essa impressão traduzia o sentimento de todos. Sua mortalha era de linho branco. O modelo revelava uma simplicidade contrastante com a sua condição. Não havia botões. Alguém se lembrou que uma vez ela disse que queria ser sepultada em meio ao branco, portanto todo tipo de flores alvas de seu jardim vieram para ela. Parecia dormir. Já foi dito que a senhora Leslie aparentava uns setenta anos. Pois bem. A morte a rejuvenesceu ainda mais. Lembrava uma rainha em sono profundo. A beleza natural lhe saltava.
       Enquanto se aproximavam do ataúde, o povo da cidade esquadrinhava cada milímetro das tantas salas, admirando o que conseguiam enxergar. Os olhos dançavam sobre tudo, inclusive nas porcelanas órfãs, as quais também pareciam mortas. As pessoas sabiam que talvez jamais entrariam ali novamente. A oportunidade única saciava a velha curiosidade.
       O enterro deu-se no dia seguinte, pela manhã. Foi o velório e enterro mais populosos da história da cidade. Mas o caminho do féretro não contemplou a igreja. Obedeceram a decisão da senhora Bárbara. Alguns advogados não concordaram. Questionaram-na se era o pedido da morta. O silêncio foi dado como resposta. Assim como a senhora Leslie, ela falava com os olhos, e sua polidez dispensava inquerimentos. Os empregados subalternos ficaram perplexos. O povo da cidade ficou perplexo. Não falavam outro assunto. Por quê tanta bondade e amor não contemplaria juatamente a igreja? O arcebispo esconjurou, pois desconhecia semelhante fato.
       Passado o enterro a senhora Bárbara se reuniu com os advogados no escritório do solar. O cofre foi aberto à custa das sete chaves diferentes. Dentro havia exclusivamente o testamento, feito na capital quando a senhora Leslie tinha oitenta anos. O texto, assinado por ela, dizia que tudo o que lhe pertencia estaria doado a senhora Bárbara, após a sua morte. A herança era colossal. A finada agradecia e alegava a fidelidade dos antepassados de sua secretária, empregados da família há quase cem anos. Era a justificativa. O fato de o mecanismo do cofre se abrir com sete peças diferentes, separadas geograficamente, dispensava comentário, embora não sufocasse suposições.
       A senhora Bárbara, dona de idoneidade ímpar, se surpreendeu tanto quanto os advogados e demais empregados. Diante da herança herdada se adiantou que pretendia seguir com os negócios da mesma forma. Explicou que convidaria os dois filhos a assumir o comando com ela. Ressaltou que de sua parte, tudo continuaria igual. Explicou que optava por permanecer com todos os advogados, mas se alguns não quisessem, seriam indenizados na forma da lei e com remunerações extras. Informou que permaneceria no solar e faria o remanejamento de alguns empregados para outras empresas, já que não precisaria de tantas pessoas no solar. Havia muita sensatez nas palavras da senhora Bárbara. Até aquele momento tudo pareceu normal. Sanada a curiosidade sobre o testamento, todos se despediram.
Naquele mesmo dia o arcebispo procurou a senhora Bárbara para saber sobre o testamento. Explicados os fatos, desceu as escadarias do solar como se houvesse visto o corcunda de Notre Dame. Porém, passada uma semana de diligências, os advogados foram digerindo a informação e recusando-se a dar-lhe crédito. Alguns consideravam deslealdade a decisão da senhora Leslie, pois viam-se como funcionários fiéis tanto quanto a senhora Bárbara. Alegavam serem profissionais extremamente responsáveis e corretos com os negócios, portanto, merecedores de parte da herança, já que ela não tinha sequer um parente. Os demais tinham opiniões divergentes. Houve quem supusesse ser o testamento obra da senhora Bárbara. Mas como? A senhora Leslie morreu carregando uma mente de vinte anos. A última vez que abriram o cofre fora há um ano, a pedido da senhora Leslie que quis ver o documento.
Dois meses se passaram e foram pequenos para tantos problemas. Os ditos advogados cogitavam anular o testamento da senhora Leslie, alegando insanidade mental da autora. Chamavam-na de caduca. Os filhos da senhora Bárbara vieram para assumir postos de confiança nos empreendimentos. Rodolfo era formado em economia e Heliodora em administração. Iniciou-se uma mudança de nomes das empresas, afinal não teriam mais relação com os Gramont. As confusões, até então restritas aos bastidores das empresas, passaram a ocorrer na presença dos novos proprietários e até dos empregados comuns. As relações entre eles geravam constantes conflitos.
       A senhora Bárbara achou conveniente marcar uma reunião em seu solar. Ás vinte horas todos estavam no local. Já era meia noite e o que se ouviam no ambiente eram gritos. As discussões tomaram um caminho inimaginável. Mesmo abalada, a senhora Bárbara explicou sobre a necessidade de se respeitar o gosto da senhora Leslie, que sua herança não fora gratuita, mas fruto do reconhecimento de quase cem anos de serviços prestados por seus pais e avós aos Gramont. A reunião assumiu um desenho cada vez mais desagradável. Os empregados, subalternos, sem conseguir dormir, se colocaram de plantão pelos cantos do solar. Houve unanimidade no choro. O povo da cidade que passava e parava para ouvir. Não entendiam. O solar dos Gramont, que durante mais de um século fora sinônimo de paz e alegria transformou-se numa extensão do inferno.
Nesse exato momento o jardineiro da senhora Leslie, que havia passado por ali e ouvido o escândalo, depositava um ramalhete de flores brancas em sua capelinha. A arquitetura imponente fora inspirada na catedral de Notre Dame. Ele passou delicadamente as duas mãos em seu retrato de porcelana, agradecendo a graça e a dádiva de tê-la conhecido. A senhora que amara as porcelanas e fora sinônimo de delicadeza, charme e bondade, se transformara literalmente em porcelana. E sua casa, num inferno.
Dois meses depois, exatamente a meia noite, o centro da cidade se tornou dia. Um clarão intenso alcançava as nuvens. O crepitar do fogo despertava a população. O solar que pertencera aos Gramont se transformara numa imensa fogueira. Em alguns minutos uma multidão eufórica se colocou nas proximidades. Queriam entrar e salvar o que pudessem. Todos do tesouro ali guardado. Minutos antes os empregados haviam conseguido arrancar uma imensa tela com a pintura da senhora Lislie. Foi a única coisa que se arriscaram salvar. Ficara encostada num muro defronte ao solar. As chamas alcançaram as árvores e o quarteirão se transformou num vulcão. Não havia como salvar mais nada. No interior do imóvel ocorriam sucessivas explosões e estalos. Aos poucos o teto desabava, fazendo espargir milhares de brasas minúsculas que subiam mais alto que as árvores. O povo se afastava assustado. As línguas de fogo lambiam o céu. A nuvem de fumaça sobrepujava as nuvens reais. Seus cumulonimbos formavam desenhos que lembravam demônios. Os empregados, petrificados, assistiam a tudo. O fogo secou suas lágrimas. Perguntados sobre o que ocorrera, diziam que foram acordados pelo barulho do fogo em diversos cômodos, quando já não havia mais como contê-lo. Todos se salvaram. A senhora Bárbara estava na capital, envolvida em negócios da empresa.
A cidade amanheceu órfã do solar. Restaram algumas paredes. Uma camada grossa de cinza escondia as brasas que ardiam mais aquietadas. Era possível identificar peças de ferro e bronze em meio aos escombros. No outro dia tudo estava morno. O povo da cidade invadiu o local. Cada pessoa levou o souvenir que lhe foi possível. Mesmo contorcido, Dom Quixote saiu carregado nas costas de um antigo vizinho do solar. Todas as peças decorativas de ferro desapareceram nas mãos do povo da cidade. Houve quem arrancasse o brasão dos Gramont que ainda não havia sido retirado pela senhora Bárbara. Os meninos levaram todos os seguradores de janela com caras de homenzinhos. Estava realizado o sonho de tê-los à altura das mãos.
O povo da cidade, ainda se recuperando do vazio deixado pela morte da senhora Leslie, parecia não suportar a perda daquele patrimônio de valor incalculável. Não havia quem não chorasse ou ficasse desolado. A cidade passou a vida sonhando entrar no palácio que agora era cinzas e destroços. De tudo o que existia dos Gramont, restou apenas a herança milionária. Desapareceu a linda mansão, as obras de arte, o piano, o mobiliário do século XVIII, as incontáveis louças, a coleção de borboletas, a colossal biblioteca e todos os manuscritos jamais lidos por outra pessoa, exceto a autora. Nunca alguém saberá o que a senhora Leslie escreveu. Ela teria deixado sua biografia? Teria escrito sobre a família? Eram contos? Novelas? Crônicas? Poemas? Histórias de terror? Qual o estilo da senhora Leslie? Era tarde para saber. Tudo virou pó.
Um homem que passava por ali refletiu com uma das empregadas sobre a fatalidade. Disse que era deplorável que uma família tivesse existido mais de um século como sinônimo de bondade, amor, caridade, união e, de repente, tudo se acabava num sopro e com requintes de ódio. LUÍS CARLOS FREIRE - 1994

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