ACTA NOTURNA – O BAOBÁ DE OLHEIROS EM PAPARI – 29.8.2019
Quem
come couve-flor experimenta a visão lúdica de contemplar uma pequena floresta de
minúsculos baobás espalhados no prato. Nada mais lembra o exemplar africano. É
boa pedida para ensinar crianças a gostar da hortaliça. Olhando atentamente a árvore
original tem-se impressão de que ela está plantada de raiz para cima. Seu
disign é bizarro. O tronco provoca incômodo. Lembra elefantíase. Outrora se
assemelha a animal fantástico.
Não
é árvore de se encontrar em cada esquina. Por tal razão a exótica espécie,
predominantemente de gênese africana – e de outros países quentes, diga-se de
passagem – desperta curiosidade. Ao contrário do que se imagina, o estado do
Rio Grande do Norte possui vários baobás. Os mais conhecidos e famosos são os
exemplares da Rua São José, em Natal (conhecido como “Baobá do Poeta”. O
terreno onde a árvore está plantada foi comprado por Diógenes da Cunha Lima.
Ele defende a ideia de que essa dita árvore inspirou Exupéry escrever o “O
Pequeno Príncipe”. Há quem diga que foi a árvore de Nísia Floresta a dona do
mérito. Fantasias à parte, no dia 18 de maio de 2015 publiquei o estudo “Exupéry
e o Baobá”. Pode ser lido no meu blog com informações mais substanciais.

O
outro exemplar famoso está em Nísia Floresta/RN. Curiosamente a esdrúxula
árvore recebe louros indevidos por esse e outros motivos. Os méritos de sua
fama pertencem, na realidade, ao “baobá de Olheiros”, em Tororomba, distrito do
citado município, pai de todos os baobás existentes na terra das águas. A
magnífica árvore, que parecia ter sido plantada de raiz para o céu, não existe
mais. Mas sua história resiste à poeira ora espanada. É sobre ele que
escreverei, mas para isso precisaremos entender um detalhe sobre a escravidão
no nosso estado.
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Baobá localizado no centro do município de Nísia Flortesta/RN, conhecido como "pau do Moura", no linguajar dos idosos. |
Os
primeiros escravos africanos chegaram ao Rio Grande do Norte no ano de 1600. Como
não poderia ser diferente, vieram atender às demandas dos engenhos. Papari
abrigou vários deles nos terreiros de suas casas grandes. Mas alguns desciam
clandestinamente das embarcações que costeavam as praias locais, conforme registra
a historiografia pertinente. Essas escapadas não se deram apenas no RN, mas n’outros
estados brasileiros, cujos escravos africanos se jogavam no mar para fugir do
que o leitor bem sabe.
A
propósito, Papari foi palco da explosão de um movimento de escravos revoltados
com essa condição vergonhosa. Eles recebiam guarida de um padre compadecido da
dor preta. Os cômodos da labiríntica matriz serviram de esconderijo para muito
preto fujão. Sob os olhos piedosos de Nossa Senhora do Ó, os escravos viam o
coração sair pela boca, guardados naquele útero de pedra e madeira. Ali tudo
era insuspeito aos senhores da cana-de-açúcar. Era o que a santa podia fazer (essa
história está no meu blog).
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Desenho de Exupéry - Observe a semelhança com a couve-flor |
Em
Nísia Floresta há uma lenda do escravo que escapa da embarcação e planta o
baobá em Papary para se recordar de sua terra. Essa lenda tem fortes
possibilidades de não ser originalmente lenda. Assim como tantos e tantos fatos
reais atravessaram séculos perpetuando no imaginário popular deturpações e
equívocos, estamos diante de um. Exemplo concreto é do pernambucano “Zumbi,
herói de Palmares”, em Alagoas; “Ana Jansen”, no Maranhão, dentre tantos, cuja
poeira das lendas foi espanada há pouco tempo. Uma pergunta simples nos ajuda a
clarear as ideias: como teria surgido um baobá legitimamente africano numa
região de vegetação e solo tão diferentes? Essa pergunta não é só minha. Está
na historiografia.
Há muitos baobás no Rio Grande do Norte. Não é exclusividade de Nísia Floresta. Os
municípios potiguares que possuem baobás em sua área geográfica, receberam
escravos, assim como Nísia Floresta. Portanto, o que se concebe como lenda tem grandes
possibilidades de ser fato. Inaceitável supor que o escravo plantou o baobá no
centro de Papari, pois o mérito é do velho Moura, como veremos adiante, mas há uma importante informação de bastidor antes de o velho Moura plantá-lo. A
propósito, conversando com gente muito idosa, há 26 anos, ouvi a expressão “o
pau do Moura”, referindo-se ao baobá do centro. Nessa região as pessoas chamam
árvore de “pé-de-pau”, portanto o “pau do Moura” é árvore do Moura. Isso reforça
a história.
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Baobá na África ´Observe como dá impressão de estar com as raízes para o céu. |
Há
muito mais revelações nos bastidores do plantio de baobás pelo mundo que se
imagina. Somos levados a entender que há um misticismo no caudal da história
dessas sementes carregadas tão cuidadosamente, em bornais e bisacos, da África
para o mundo. Seria um acordo do povo africano para assinalar que ali chegaram
pretos escravizados? É como se o majestoso vegetal significasse um marco.
Imaginariam eles que um dia seus ancestrais ou deuses os reivindicariam? Esperança
de liberdade? Haveria espiritualidade na ideia de levar a semente justamente do
baobá para o país estranho?
Se
considerarmos a lógica histórica, podemos crer que esse primeiro baobá plantado
em “Olheiros”, localidade do distrito de Tororomba, germinou nas primeiras décadas
do século XVII. Os alfarrábios contam que existiam dois baobás em Nísia
floresta. Ambos em Tororomba. Um em “Olheiros”; o outro ficava muito próximo dele,
mas nessa localidade. Os dois morreram no início do século XX, contando quase
trezentos anos. Um era filho do outro. Assim nos conta o grande mestre Cascudo.
Ouvi
pela primeira vez o topônimo “Olheiros” da boca da senhora Natália Gomes, 90
anos, em 1992. Ela nasceu exatamente ali. Contando sobre sua vida, ela disse,
“vovó nasceu na banda de “Olheiros”. A casa ficava encostada num tronco velho
de barriguda”. Para quem não sabe, barriguda é o nome que os potiguares
chamavam o baobá até pouco tempo.
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Quando Fídias, meu filho, era pequeno eu o ensinava a "comer baobás", desses que estão no prato. Brincando ele aprendeu a gostar de hortaliças. |
Em 1997 fui ao bairro “Mãe Luísa” entrevistar
uma nisiaflorestense de cento e quatro anos de idade. Não me recordo seu nome
neste momento, mas ela é da família Cordeiro, do “Monte Hermínio”, bairro de
Nísia Floresta. Ela havia se transferido desse município para Natal há muitos
anos. A senhora Cordeiro, que na infância vendia água e lenha pelas ruas de
Papari, estava ladeada por sua filha que naquele ano contava oitenta e dois
anos de idade. Até me surpreendi vendo uma pessoa tão idosa ainda ter mãe.
Então a entrevistada explicou que pariu aos quinze anos.
No bojo do diálogo, ela mencionou o baobá de Olheiros
e também se referiu ao “pau do Moura”. Nunca mais ouvi o nome de “Olheiros” por
parte de outras pessoas. É interessante o desaparecimento de topônimos velhos.
Esse não é único. Há vários casos em Nísia Floresta. Eles morrem conforme
morrem os idosos. Pois bem, agora veremos como se deu o plantio do baobá
próximo a Igreja Matriz de Nossa Senhora do Ó.
Em
1870 o presidente da Intendência de Papari, Coronel José de Araújo, espécie de
prefeito da vila durante muitos anos, recolheu uma das cápsulas
oblongas que se espalhavam debaixo da árvore tororombense e a ofereceu ao
senhor Manoel de Moura Júnior. Este plantou-a em sua casa. Quando ela contava
sete anos e já estava com o caule firme, transferiu-a para o centro de Papari,
onde se encontra até hoje.
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Michael Adanson, estudioso dos baobás (a denominação científica do baobá vem de seu nome) |
O
nome científico dessa bela dádiva natural é “Andasonia digitata”, homenagem ao
cientista Michael Adanson (1727-1806), botânico, naturalista, entomologista,
micologista, pteridólogo, antropólogo e explorador francês, estudioso dessa
árvore no Senegal e outros países daquele continente. Ele nasceu em
Aix-em-Provence, aos sete de abril de 1727, e faleceu em Paris, aos três de
agosto de 1806. Adanson descreveu a espécie Adansonia digitata, seu nome
genérico. Em 1763 publicou a importante obra “Familles Naturelles dês Plantes.
Era irmão de Jean Baptiste Adanson, (1732-1803), intérprete e chanceler da
França no Oriente. A palavra digitata se inspira nas folhas do baobá, cujo
formato nos reporta aos dedos humanos, onde há as digitais. Mas o baobá de
Nísia Floresta, aliás, os baobás trazem mais que revelações. Trazem incógnitas
como veremos adiante. É a sua relação idade/ diâmetro/altura. É impressionante
a discrepância nos baobás de Nísia Floresta.
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Baobá na África do Sul - seis mil anos de idade |
Sobre
a estimativa de vida dessa planta e as características típicas de seu
desenvolvimento, há curiosidades incríveis. O cientista Anderson fez cálculos
tendo como base um baobá típico de Cabo Verde, o qual teria cinco mil anos.
Considere que o diâmetro normal de um baobá é de mais de oito metros, e para se
chegar a esse ponto é necessário oitocentos anos de idade. O Baobá de Nísia
Floresta tinha nove metros e dez centímetros de tronco, numa altura de um metro
do solo em 1941, quando contava 64 anos de idade, ou seja, estava incomparavelmente
maior do que se tivesse oito séculos de vida. Por tal lógica julgaríamos que
esse baobá já estivesse muito grande quando Pedro Álvares Cabral encostou as
suas caravelas por aqui. Todos os viajantes e pesquisadores que se depararam
com baobás em países africanos registram troncos anômalos.
Que
mistérios a terra, a água e os ares do Rio Grande do Norte, em especial de
Nísia Floresta, exercem nesse vegetal a ponto de alterar o seu desenvolvimento
ou mexer na sua “genética”? Só um botânico explica. Isso faz crer que algo
interfere em seu desenvolvimento e da mesma forma nos outros baobás
nisiaflorestenses, pois todos fogem a regra. Crescem a olhos vistos.
Há
um baobá nos fundos do Sítio Mãe-Ia, altura de Golandi. Esse exemplar pode ser
filho do baobá de Olheiros (ou teria sido fruto da primeira floração de
sementes do baobá do centro, considerando a lógica de sua genética). É o mais
velho baobá depois do exemplar plantado no centro da cidade. Em seguida vem o
baobá de Oitizeiro (defronte ao cemitério), em seguida temos o baobá ao lado do
Fórum de Justiça (plantado pelo Senhor Marcos Vinícius, ex-juiz de Direito de
Nísia Floresta, em 2007). Por último temos o baobá do Sítio Traque, em
Tororomba (plantado pela Senhora Lurdes Maia em 2005). Esses três últimos
baobás, todos filhotes do baobá do centro, crescem prodigiosamente, desafiando
a sua própria natureza.
Hoje em dia cientistas modificam a genética das plantas
mas não é o caso desses exemplares, os quais não passam por processo artificial
algum. Considerando a característica peculiar dessa planta de desenvolvimento
muito lento, conforme o revela o cientista Miguel Adanson, resta-nos reconhecer
que algo por aqui acelera a sua desenvoltura. Mas o quê?
A
propósito de tratarmos sobre baobás, é interessante citar o baobá de
Parnamirim, que conta vinte e três anos de idade e parece ter cem anos a julgar
pelo surpreendente desenvolvimento. A bela árvore está localizada no Parque
Aluízio Alves. Em 1995, houve um evento envolvendo várias instituições no
plantio de árvores naquele parque. Levei várias mudas nessa ocasião.
Dois anos
depois ocorreu grande movimentação em prol de reflorestamento da mata da Bica,
em São José de Mipibu. Escolas e instituições ligadas ao meio ambiente e
cultura estiveram ali em peso. Levei dois baobás e ali os plantei juntamente
com mais de quinhentas mudas adquiridas pelos organizadores do evento. Mas um
fato deplorável se efetivou pouco tempo depois. O proprietário das terras
mandou arrancar tudo, instigado por pessoas que o precaveram de que aquele
plantio poderia colocar em risco a posse de sua propriedade. Lástima!
Retomando
ao assunto do baobá, há versões diferentes sobre como o baobá do centro chegou
à bucólica vila de Papary. Uma delas pode ser lida no Museu Nísia Floresta.
Também temos a lenda, que na realidade é a história real deturpada pelos
séculos. Nas minhas investigações de História Oral, antes de encontrar algo
escrito, também ouvi a lenda e a escrevi no meu blog. Encerro aqui essa
importante reflexão sobre os baobás cujo exemplar do centro da cidade goza de
parte da fama que pertence ao seu genitor, o baobá de Olheiros.