Algumas pessoas nascem com dons que se despertam na maturidade, como semente guardada durante décadas e, de repente, exposta à terra. José Calixta Pereira Filho, 77 anos de idade, é exemplo mais verdadeiro no plantio dos lutiers populares, se assim podemos entender.
Ele nasceu em
Taborda, distrito de São José de Mipibu, no Rio Grande do Norte. Há alguns
anos reside à rua Francisco Tomás de
Vasconcelos, nº 150, Rosa dos Ventos. Suas relações
sociais sempre foram em Parnamirim, município mais próximo, região
metropolitana de Natal. Ele é filho de José Calixta Pereira e Joana Alexandre
Nascimento Pereira, ambos potiguares.
Nascido num lar
humilde, era comum usar latas de goiabada e marmelada como prato. Aos 9 anos de
idade, em suas andanças com o pai, ele presenciou um senhor fazendo rabeca, e
isso o deixou maravilhado, pois viu que uma pessoa podia fabricar instrumentos
musicais. Então ele teve um insight e só enxergava as latas de goiabada como
matéria prima para a ideia.
“Eu vi
naquele material uma alternativa para fazer o meu brinquedo. Naquela época,
criança pobre brincava com pedaços de pau, tijolos, manga verde, ossos, barro,
latas e tudo o que tivesse no quintal”, explicou Calixta.
Ele não pensou
duas vezes. Pediu ao pai uma lata dessas e fez um instrumento de cordas, usando
arame, madeira e pregos. Foi o seu “violão”. O fascínio pelo brinquedo foi tão
grande que tornou-se extensão do seu corpo. O pequeno Calixta divertiu-se
durante parte da infância com essa invenção. Inclusive brincava com amigos da
mesma idade, vizinhos do sítio. Quando quebrava, fazia outro.
“À noite,
no terreiro, era uma orquestra, eu e os amigos nos violões de latas, gente
fazia uma zuada danada”, comentou ele.
Pois bem, como o
tempo só anda para frente, o tempo andou, andou, andou muito... Quase 70 anos
depois – no tempo sombrio da Pandemia – anos 20 do século atual, eis que ele se
encontra com um rapazinho chamado Mateus, que era músico e tinha um instrumento
musical chamado “culelê”. Naquele instante, veio à memória do sr. Calixta a
experiência com os instrumentos de lata de goiabada. Nas palavras dele:
“As
lembranças do sítio vieram na minha cabeça, foi inesperado, então eu peguei o
instrumento, olhei bem olhado, peguei um papel, coloquei o culelê sobre ele e
risquei o molde. Chegando em casa, guardei. E aquilo ficou na minha cabeça. Eu
só pensava que madeira iria usar. E fiquei matutando aquilo...”
A sorte estava do
lado do sr. Calixta. Havia uns pés de manga derrubados num terreno do seu
bairro meses antes e permaneciam ali. Então ele pediu ao dono alguns galhos bem
grossos e levou para casa para analisa-los. Dias depois, cortou um pedaço com
65 centímetros e foi dando forma ao culelê. Comprou os “acordeamentos”, as
tarraxas numa casa especializada e fez a peça, usando uma bitola. Assim nasceu
um culelê de 52 centímetros, cujo som é agradável. Agora não era mais o
brinquedo de lata de goiabada, nem feito por uma criança, exceto a criança que
ele diz habitar dentro dele. Ficou bonito, e o som, perfeito.
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Um dos Culelês feitos pelo sr. Calixta. |
Quem lê essa
história, imagina que o sr. Calixta hoje se tornou um músico, lê partituras e
tudo mais. Ledo engano! Por mais incrível que pareça, o sr. Calixta não toca
instrumento algum, ele apenas faz improvisos para cordel, pois gosta de
declamar. É mais um dos seus dons. E nessa história ele já fez quatro culelês.
Um doou ao professor da Igreja Evangélica Batista (PIBP), onde congrega, e o
outro deu para um neto.
Ele conserva as
peças com uma bela aparência, pois encera com cera de carnaúba. Diz que hidrata
a madeira, não afeta o som e afasta traças. Segundo o sr. Calixta todo cupim
nasce dentro da madeira. “Ele está dormindo ali quando a gente
arranca qualquer árvore adulta, e um dia acorda”. Sr. Calixta
pretende fazer outros culelês com madeiras diferentes, assim perceberá as
possíveis diferenças de sons.
No presente
momento o sr. Calixta está fazendo dois culelês com madeira de uma mangueira
com mais de 30 anos encontrara ali mesmo no bairro. Não que ele prefira a
mangueira, usa porque é mais fácil encontrá-la. Já ouviu dizer que a madeira do
“Nin” (uma espécie bastante comum na região), tem excelentes resultados no
fabrico de tal instrumento. Ele vai fazer um baixo para o neto.
Sr. Calixta é
estudante de música. Faz aulas de coral há 3 anos e já se apresentou em alguns
lugares. Ultimamente ele vem gravando áudios com as suas lembranças, além de
algumas prosas poéticas, pois quer transportá-las para o papel.
Costumo dizer que
o sr. Calixta é aquela pessoa cuja forma em que foi feito se quebrou e a
jogaram ao mar. Como disse, ele tem outros talentos. É dotado de ampla
sabedoria, e ela se reveste de uma notoriedade maior porque é vestida de
simplicidade.
O sr. Calixta é um
exemplo vivo de que o homem é dotado de muitos dons, e que eles podem aflorar a
qualquer momento, inclusive ele é um inventor de engenhocas mecânicas para
facilitar a sua vida. E todas dão certo em seu ateliê/oficina.
Impressiono-me com
o seu conhecimento sobre a vida. Há nele um filosofar constante, e esse
filosofar é uma aula, pois ele arranca da natureza os mais fundamentados exemplos
para compará-los à vida humana, aos fatos, às relações sociais etc. Desse modo
viajamos em suas narrativas. Inclusive é um livro aberto sobre a História de
Parnamirim com um detalhe: ele viveu a história. É mais velho que o próprio
município onde mora. Nós que salvaguardamos a História do Rio Grande do Norte,
devemos muito à História Oral, pois ouvir um homem como o sr. Calixta é
conhecer fatos que, se não fosse através dele - e de outros pioneiros -,
estariam esquecidos e correriam o risco de serem sepultados para sempre.
Um dado curioso:
nunca ouvi da sua boca uma palavra torpe nem um maldizer de alguém, nem
insinuações, nem deboches. Nada que denote sujeira humana. Observo sutis formas
de expressar a sua religiosidade, sempre dentro de um contexto, sem menosprezar
a possível crença de alguém, ou a sua ausência, ou defender a sua fé como a
correta, a ideal, a superior. É um homem respeitoso, de excelentes modos no
vestir, se comportar socialmente, no falar, enfim, é um homem raro.
Na vida, conheço muitas
pessoas que recebem homenagens, títulos, condecorações e moções de louvor que
nem merecem tanto, ou realmente não merecem. E quando vejo um homem como esse,
detentor dessa grandiosidade - passando pela vida despercebido -, assusto-me,
preocupo-me, embora sei que muitos desses homens preferem realmente esse
anonimato. Eles compõem melhor, quando são invisíveis... não sei...
Sr. Calixta é um
exemplo vivo de que todos nós temos vários dons e que uma hora ou outra eles
despertam, somando-se aos outros dons.