Sr. Diógenes |
Senhor Diógenes, fazendeiro, 91 anos. Encontrei-o metido
na plantação de cardeiro (palmas) e fava na fazenda Católé, em Lagoa Salgada, município do Rio Grande do Norte. Veio me atender com uma pinha em cada
mão. Fruta imensa. Nem parece saída de ambiente habituado à aridez. Seu corpo
esbelto tem a vitalidade de um jovem. Voz potente. Sua alegria contagiante faz
falta a muitos jovens mal humorados - ocupados com o celular -, acostumados com
tudo às mãos...
Amigo de infância da minha mãe. O rio Trairi
era o quintal e ao mesmo tempo o parque de diversão dos seus tempos de infância.
Quem vê o senhor Diógenes pensa tudo, menos que ele seja o dono daquela fazenda
próspera e carregue nove décadas de história. Os fazendeiros de São Paulo
deveriam vir aprender humildade com ele. Sua terra produz predominantemente
macaxeira, mas nas safras de milho e feijão a produção é próspera. Um amplo
galpão guarda mangaios de toda sorte, e faz papel de silo, armazenando grãos e
sementes para o novo ano. Tudo guardado em garrafas bem fechadas para não
bichar. O inverno é aproveitado como ouro, garantindo a fartura. A cisterna é
seu rio.
Os arredores da casa grande expressam mil
poemas. A verdura dos arvoredos difere dos arrabaldes secos, permeados de
garrancheira. Gado bonito, bem cuidado, empregados tangendo os bichos no
curral, chiqueiro distanciado do casarão, galinhas, perus e guinés criados
soltos, lenha franca, forrageira devorando tudo, pilha de cardeiro aguardando destino,
manivas amontoadas para plantio, caminhão carregado de sacos de farinha de
mandioca… tudo capitaneado por um homem de responsabilidade gigante, cuja
estatura miúda insiste em nos causar admiração. De onde vem tanta energia?
Católico fervoroso, devoto de São José,
mandou demolir a capela velha e erguer uma maior em louvor ao pai de Jesus. Há um quadro com uma pintura da fazenda na parede. Foi feito por um artista local. A
sede da fazenda lembra o surgimento das antigas urbes. No centro, um cruzeiro
simbolizando a religiosidade, olha para o templo, abraçado a sua moradia. O
casario dos filhos e empregados emoldura o resto, formando a letra ‘C’. Atrás
das casas ficam as árvores frutíferas e hortas.
A capela de São José recebia roupa nova naqueles dias. Encontrei-a se trocando, afinal o Natal batia à porta... e ela nem se incomodou. As imagens novas, saídas da caixa, aguardavam o local para se afixarem nas paredes. Sr. Diógenes caprichou! Parece exagero, mas ele realiza festas que duram dias.
O São João dali foi congelado no tempo. São dias de festejos, cujas fogueiras ardem até o amanhecer, sob os acordes de sanfona, triângulo e pandeiro. É forró antigo. Lixo musical não chega naquele evento que arrasta a vizinhança inteira. Tachadas de comidas diversas engordam o povo, temperadas por ‘água que passarinho não bebe’, ponche, refrigerante e cerveja. Um boi é eleito anualmente para garantir a comilança incrementada por perus, galinhas e guinés.
O imenso terreiro passa um dia sendo molhado para não
levantar pó. Há casais que começam a dançar banhados de lua e terminam banhados
de sol. Mas tudo isso começa na contrição. Ora! Deus em primeiro lugar! Um terço
é rezado junto ao povo local na hora do “Angellus”. O padre vem dizer missa
logo a seguir. Respeito absoluto. É! Encerrada a celebração, o sacerdote se
deleita numa faustosa comezaina à moda caipira. Volta para a casa bem mais
pesado que chegara, e com um dinheirinho que o senhor Diógenes faz questão de
entregar discretamente nos ritos e risadas de saída. Dizem que ele é muito
generoso nesses termos.
Convidado para adentrar a casa, ouvi um som
de voz agoniante, provocando desconforto, logo explicado pelo senhor Diógenes.
Na cama de um dos quartos a esposa, 87 anos, acometida de “Alzheimer”, emitia
uma voz lamentosa e triste... uma sequência de mamã... mamã... mamã... Não
tinha fim. A cantilena era dia e noite. Impressionante como nos reportamos às
nossas mães até na demência, como se a insanidade não corroesse a imagem
materna…
Nunca vi alguém tão bem cuidada. Cama
impecável. Colchão caixa de ovo, ventilador na velocidade mínima, voltado para
a parede… Quarto impecável. Vestia com um vestido de tecido macio... perfumada
com a lavanda preferida… tudo
impecável... A empregada, contratada com exclusividade só para ela, é explicada
pelo nobre Diógenes como justificativa para jamais entregá-la a um abrigo de
idosos. A casa, imensa, é impecável. Cheia de vida. Cheia de poesia. Cheia de
bondade. Tudo brilhante como os olhos azuis da cor do céu do Sr. Diógenes.
Perguntei se a esposa não esboçava alguma
reação de insatisfação com o barulho da festa tão esperada como os bailes
reais. Não! Ela sempre disse que essa festa não deve parar nem com a sua morte,
pois os filhos continuariam, e sempre com as bençãos de São José! Quando sã,
tomava a dianteira de tudo e a organizava com desvelo. Nesse dia vem comadre e
compadre de toda freguesia. Se ela consegue entender ou reconhecer, não se
sabe, mas os compadres ficam felizes ao vê-la. Todos vão até a cama
cumprimentá-la.
Perguntei se, por sua versatilidade e jovialidade tão visível, ele teria coragem de se casar, acaso a esposa se encantasse. Não! Casamento é um só! É com ela que eu quero me encontrar lá no céu, quando a gente virar anjo. A única coisa que peço a Deus é que não me leve antes dela, pois sei que continuará bem cuidada, mas quero cuidar dela até a derradeira hora. Aí, então Deus pode me buscar!
Senhor Diógenes é a luz daquela fazenda... Nunca vi tanta decência… (2019 lcf)
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