REPÚDIO...
É com profunda indignação e revolta que tomo este espaço para refletir - e gritar - sobre o episódio absurdo ocorrido na EMEI Antônio Bento (zona oeste de São Paulo), onde agentes da Polícia Militar do Estado de São Paulo entraram, armados - inclusive com metralhadora - em uma escola infantil após a queixa de um pai de que sua filha, de apenas quatro anos, havia desenhado uma figura da divindade Iansã durante uma aula integrada ao currículo escolar.
Esse tipo de atuação policial - truculenta, desproporcional, desumana - não pode ser visto como exceção ou uma fatalidade. É sintoma grave de uma lógica de opressão cultural, racial e religiosa que persiste no Brasil. E justamente agora, às vésperas do DIA DA CONSCIÊNCIA NEGRA que - coincidentemente é a data do meu aniversário - ele se torna redobrado em sua simbologia e urgência.
Desde a colonização, o que veio da África foi criminalizado, demonizado, apedrejado, literalmente. As religiões de matriz africana sofreram séculos de perseguição, estigmatização, invisibilização. O Brasil, inclusive, tem população majoritariamente negra, e ainda assim vemos o comportamento horroroso e - pasmem - tão comum - onde as práticas religiosas afro-brasileiras são tratadas como desvio, ameaça, imoralidade.
Ver uma criança desenhar Iansã (uma entidade sagrada em tais religiões) transformar-se em razão para a polícia invadir uma escola como entrasse num teatro de guerra é a evidência concreta de que, mais que preconceito, há ódio ao que vem dos povos pretos do Brasil.
A normalização desse tipo de violência é inadmissível. Que sociedade tolera que uma escola infantil, ambiente de proteção à infância, seja palco de intimidação armada por atividade pedagógica legítima?
Vale lembrar que as leis brasileiras já exigem: a Lei 10.639/2003 tornou obrigatório o ensino da História e Cultura Afro-Brasileira em todas as escolas, públicas e privadas. E a Lei 11.645/2008 ampliou este dever para incluir também a história e cultura dos povos indígenas. Em outras palavras: O ESTADO JÁ RECONHECE, LEGALMENTE, QUE O ENSINO SOBRE AS CULTURAS NEGRAS E INDÍGENAS TEM A MESMA IMPORTÂNCIA DO ENSINO DE QUALQUER TRADIÇÃO RELIGIOSA OU CULTURAL - INCLUSIVE CRISTÃ.
Então: por que, no cotidiano de uma escola, uma atividade lúdica de desenho acerca de uma entidade de religião afro-brasileira se transforma num momento de terror? O que explica que, nas escolas, o ensino do cristianismo ou de ícones como Nossa Senhora Aparecida jamais virasse motivo para polícia entrar aos trancos e barrancos, mas a representação de Iansã vira? Se fosse o desenho de Nossa Senhora Aparecida (que merece todo respeito) o pai teria chamado a polícia? A polícia teria invadido com metralhadora?
Imaginem o que se passou na cabecinha dessa criança de quatro anos ao ver quatro agentes armados entrando em sua escola por causa de um desenho que ela fez. Isso é bizarro. É de uma monstruosidade imperdoável. O impacto psicológico, emocional, coletivo - entre crianças, educadores, famílias - se transformou em memória afetiva, com toda certeza. E que memória afetiva!.
A mensagem que foi enviada, sem palavras, é a seguinte: “APRENDER SOBRE RELIGIÕES DE MATRIZ AFRICANA É CRIME, PODE LEVAR À POLÍCIA. PODE LEVAR AO MEDO. PODE LEVAR À VIOLÊNCIA.” Foi esse o ensinamento.
Tudo isso gera um efeito duplo: ao mesmo tempo, criminaliza a própria cultura afro-brasileira (e seus símbolos), e transmite às crianças negras (e não só) que sua cultura, suas crenças, são ilegítimas, problemáticas e ameaçadoras. E isso não é um caso isolado: é a forma mais estúpida do reflexo da estrutura de racismo religioso e cultural do país.
As leis existem, mas não basta terem sido aprovadas. A implementação segue falha. Recentemente li que grande parte das secretarias municipais de educação do Brasil realizam pouca ou nenhuma ação para fazer valer a Lei 10.639/03. Ou seja: enquanto o arcabouço legal está lá, o ambiente social e institucional permanece hostil. Por quê? Ora! Por preconceito.
Recentemente, na Câmara de Vereadores de Parnamirim, um vereador agradeceu a Deus pelo fato de que não foi aprovado pela casa o "Dia do Preto Velho" Preto-velho – Wikipédia, a enciclopédia livre proposto por pessoas que seguem religiões de matrizes africanas. E o mais louco é que foi aprovado por eles a "Frente Parlamentar evangélica". O que é isso senão preconceito religioso?
Pois bem, a escola onde ocorreu a invasão armada informou que a atividade fazia parte do “currículo antirracista” da rede municipal de São Paulo. Isto reforça a indignação: se esse é o tipo de reação que se obtém mesmo quando se busca implementar a lei, quanto mais quando as temáticas são tratadas com negligência ou invisibilidade?
Não se trata apenas de “medo de religião” ou “diferença de crença”, trata-se de racismo religioso: o ódio ou menosprezo dirigido às religiões de matriz africana, associado corriqueiramente a processos de deslegitimação cultural. O fato de uma escola e uma família reagirem com esse nível de violência perante um desenho de Iansã revela que, sim, existe esse “asco” às religiões dos pretos. É estrutural.
Essa truculência jamais explica o que quer que seja. Não existe qualquer justificativa pedagógica ou de segurança que legitime a entrada de policiais armados em escola infantil por causa de um desenho. Nesse gesto horroroso encontra-se o símbolo maior de que 500 anos de apedrejamento simbólico e real ainda estão presentes com intensidade.
Estamos no século XXI, e ainda precisamos reafirmar que religiões de matriz africana não são "menos", não são “erradas”, não são “problemáticas”. Elas são tão diferentes quanto o budismo, o islamismo, o judaísmo, e merecem o mesmo respeito, a mesma legitimidade, o mesmo espaço nas escolas.
Que esse episódio seja um alerta: à comunidade escolar, ao poder público, à sociedade civil. O ensino antirracista não é opcional; a valorização da cultura negra não pode mais ser empurrada para “atividades complementares”; e cada vez que uma criança recebe a mensagem de que sua cultura pode levar polícia à escola, o dano é enorme.
Não devemos aceitar esse tipo de massacre cultural sob nenhuma circunstância. A vida e a dignidade das crianças - especialmente das crianças negras - exigem respeito, proteção, pluralidade. E o Brasil, país de maioria negra, exige isso agora. Lembrem: Isso não foi um acidente, foi o padrão do tratamento dado aos povos pretos do Brasil. E tudo piora quando sabemos que há poucos dias o Governo Federal transformou em feriado o Dia da Consciência Negra que – pasmem – é amanhã. Uma vergonha!




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