"Ciça" do pecado Maneiro, uma das pessoas mais especiais que conheci. O que aprendi com esse ser humano pleno não tem dinheiro que pague e não há academia que ensine.
Em 1997 uma professora de uma escola
estadual que tenho pouco contato, contou-me que uma colega, na sala
dos mestres, alertou os demais professores a não conversar alto perto de mim.
Disse que eu "mangava" do modo como eles falavam.
Eu gosto de contar essa história para
permitir uma importante reflexão. Eu sempre fui meio "Manoel de
Barros", um apaixonado pela palavra e os modos de se pronunciá-la. Isso me
encanta de maneira incomum. Por esse motivo, seja no Mato Grosso do Sul, no Rio
Grande do Sul, no Paraná, em Santa Catarina, em São Paulo, lugares onde passei e, por último, no Rio
Grande do Norte, sempre observei os modos de as pessoas falarem, a pronúncia,
as palavras "diferentes", ou melhor, os regionalismos e afins. Mas
sempre fiz isso com paixão e profundo respeito, pois acho muito linda a
linguagem regional.
É certo que algumas palavras - ou frases -
pelo menos para mim, que não sou potiguar, soavam estranhas ou engraçadas, como
por exemplo cu de burro, mulesta dos cachorros, diabo é, vou chegando (para dizer
que está saindo), peia, sostô, iapois, danado é, dentre tantas que permitem tais
sensações. Mas jamais "mangei", como alegou a professora. Inclusive a
própria palavra "mangar" me é curiosa e interessante também. O que
sempre fiz foi anotá-las, estudá-las e compilá-las para que jamais se
perdessem, pois, por incrível que pareça, muitos nativos sentem uma espécie de
vergonha de usar essa espécie de dialeto dos seus pais e avós.
O meu olhar sobre tais palavras é de
pesquisador, de educador. Jamais foi ou é um olhar imbecil, capaz de ver como
errado ou inferior o grande tesouro que é a linguagem popular. A propósito disso
sempre sensibilizei os nativos a entender que a linguagem é o seu maior
patrimônio, que não existe falar errado; o que existe são modos diferentes de
se falar, e que a linguagem erudita é outra coisa, e que também tem o seu
lugar. Foi apenas isso!
Mas equívocos à parte, vamos lá...
A filologia nisiaflorestense tem pontos
interessantes, cuja raiz perde-se no tempo. Não existe nada escrito sobre o
assunto. Acredito que a evolução semântica, como ocorreu em quase toda essa
região, deu-se sob o falar indígena, africano, holandês e português (refiro-me
ao português antigo – dos primeiros habitantes que vieram de Portugal, no qual
se inclui o linguajar mouro). Nós, brasileiros, falamos há 503 anos, um bom período
para que o jeito de falar fosse se lapidando aos poucos, de acordo com as
influências estrangeiras que cada região recebeu.
Por aqui a letra “v” torna-se “r” quando
usada em certas palavras. Normalmente o verbo vir costuma ser conjugado com um
“r” no lugar do “v”, por exemplo: “rou” (vou), “rai” (vai), “renha” (venha),
“reio” (veio), “ramo” (vamos),etc.
A maioria das pessoas omite o “s” ao final
das palavras, como o caso do ramo, ao invés de “ramos”. É muito comum ouvirmos
as pessoas dizendo “andá” (andar), “falá” (falar), “corrê” (correr), “cumê”
(comer), “pegá”(pegar). O “r” também é comumente omitido.
Palavras terminadas com “s”ou “z”
normalmente são pronunciadas (pelos mais idosos) com um “i” antes do referido
“s”, por exemplo: “meis” (mês), “nóis-moiscada” (nós-moscada), “trêis” (três),
“veiz” (vez), “cóis” (cós), apóis (após), “nóis” (nós), etc.
É muito comum o uso do “i” depois do “na”
seguido do “s”, por exemplo: “naiscer” (nascer) e “nais” (nas).
Os nativos mais antigos costumam pronunciar o “i” após as vogais “a”, “e” e “o”, por exemplo: “aico” (álcool), “aima” (alma), “biscaite” (biscate), “peico” (perco), “páitu” (pátio), “ceica” (cerca), “cóite” (corte), “bôin dia!” (bom dia!). No caso do “bôin dia”, a vogal “o” tem som nasal e um nítido “n” após o “i”.
Os nativos mais antigos costumam pronunciar o “i” após as vogais “a”, “e” e “o”, por exemplo: “aico” (álcool), “aima” (alma), “biscaite” (biscate), “peico” (perco), “páitu” (pátio), “ceica” (cerca), “cóite” (corte), “bôin dia!” (bom dia!). No caso do “bôin dia”, a vogal “o” tem som nasal e um nítido “n” após o “i”.
Normalmente as consoantes “l” e “s” não
são pronunciadas quando estão no final das palavras. Veja: “mé” (mel), “fé”
(fel), “ané” (anel), “Migué” (Miguel), “Samué” (Samuel), “nai” (nas), “nóis”
(nós), etc. Um interessante exemplo está na expressão “apoi” (“apois”).
Uma curiosa utilização do “i” ocorre
quando certas palavras têm um “l” ou um “r” no meio, por exemplo: “caiça cuita”
(calça curta), “cuito” (culto), “caivão” (calvão), “caita” (carta), “paico”
(palco), “poiquêra” (porqueira), “peico” (perco), “poico” (porco), “puiquê”
(porque), dentre outras.
Em alguns casos o “n” é omitido, por
exemplo: “evelope” (envelope) e “edereço” (endereço).
Constatei casos raros e até incríveis em
algumas famílias. Analise esses: “antonti” (antes de ontem), “dernantonti”
(desde antes de ontem), “tresantonti” (três dias antes). Podemos perceber que
“derna” é uma curruptela de desde.
Nas mesmas casas onde ouvi os raros palavreados acima, ouvi também: “côni” (quando) , “con’eu” (quando eu) e “disparecer” (esparecer).
Nas mesmas casas onde ouvi os raros palavreados acima, ouvi também: “côni” (quando) , “con’eu” (quando eu) e “disparecer” (esparecer).
A interjeição tchau é pronunciada por
muitos como “chau” sem o som do “t”. Outros falam “te-chau”.
Por ser a palavra tchau de origem italiana, cuja escrita original é “ciao”, o brasileiro aportuguesou-a apenas na escrita, pois ambos os países a pronunciam da mesma forma. A propósito a consoante “c” em italiano tem o som de “t”. A pronúncia deles é “tiao”.
Por ser a palavra tchau de origem italiana, cuja escrita original é “ciao”, o brasileiro aportuguesou-a apenas na escrita, pois ambos os países a pronunciam da mesma forma. A propósito a consoante “c” em italiano tem o som de “t”. A pronúncia deles é “tiao”.
Outro caso semelhante refere-se às
expressões “peitchu” (peito), “muintcho” (muito) e “gostcho”. No caso do
“peitchu”, se considerarmos apenas a questão etimológica, ignorando o
regionalismo, podemos afirmar que é uma forma errada de falar. Entretanto, por
ironia, há uma semelhança incrível com a raiz da palavra. Não me refiro à
semântica, mas à morfologia da palavra, a qual no seu original em latim escreve-se
pectus, cuja pronúncia assemelha-se muito ao “peitchu” de Nísia Floresta e de
grande parte do Nordeste.
Uma outra curiosidade faz-me reportar a
palavra “entonce” (então), a qual é falada por raros idosos quase tão fielmente
ao entonces espanhol. A diferença é que na Espanha se pronuncia nitidamente o
“s”. É importante lembrar que a expressão “entonce”, em vigor em Nísia
Floresta, é uma palavra ultrapassada e que era muito comum no português
medieval, a qual tem origem no latim
intunce e também extunce.
Existem raros casos de nisiaflorestenses
que falam “vórrmicê” (vosmicê) (você). Uma forma diminuída de dizer Vossa Mercê
(a avó de Vossa Senhoria). Interessante é que mercê (em latim: merces) significa “graça”, “proteção”,
“benefício”.
Quem sabe no português medieval Vossa
Mercê ou vosmicê também significou vossa graça?, ou seja vosso nome? Pois
muitos por aqui usam essa expressão quando querem saber o nome de alguém: sua
graça?
No universo pluralista dessas expressões
regionalistas podemos encontrar casos extremos, onde pessoas que se servem
parcialmente desse regionalismo, costumam “estranhar” e até zombar daquelas
mais versadas no falar popular. Tais versados são rotulados de matutos.
Veja alguns exemplos: “prá sumana eu vo”
(para a semana eu vou – eu vou na próxima semana), “tá quilaro” (está claro),
“minhã eu vo” (amanhã eu vou), “istrui” (destruir), “istrudia” (outro dia),
“apoi” (“apois” – percebemos aqui que o próprio regionalismo tem outras
vertentes, as quais se diferem segundo certas peculiaridades de algumas
famílias), “ingreja” (igreja), “strumo” (estrume), “nu ro não” (não vou não),
“tu riu” (tu viu?), “ce rai dispois” (você vai depois), “nu dixi” (não disse),
“boralá” (embora lá), “borali” (embora ali), “ramo lacolá” (vamos lá acolá –
aqui ocorre uma redundância), “Avre Maria!” (Ave Maria!), “lastá-lo ele” (lá
está ele), etc.
O que também chamou muito a minha atenção
foi constatar casos de crianças entre 5 a mais ou menos 15 anos usando o
linguajar dos avós e bisavós como um dialeto. Digo dialeto porque em vários
momentos muitas frases fogem a compreensão até mesmo de quem é nativo, pois,
como já expus, a prática desse linguajar não é algo homogêneo, diferindo, sim,
de um distrito para outro, dependendo da expressão.
A prova maior da existência dessa espécie
de dialeto está no fato de algumas crianças não utilizarem na escola ou na rua
a mesma linguagem usada em casa com os avós. Entretanto é difícil a criança
saber separar o que é “dialeto” e o que não é, exceto quando é alvo de zombaria
principalmente na escola. Só assim ela deixa aquela palavra em casa para
conversar com os avós (esses com certeza não mangam – diriam).
Podemos perceber com isso que, por mais
que a linguagem se lapide, existe uma resistência involuntária, estimuladas
pelos idosos (ainda bem!).
Outro detalhe interessante e que reforça a
riqueza e a beleza das expressões populares, refere-se ao fato de muitos
universitários e pessoas formadas conservarem vivamente o regionalismo.
Constatei que o regionalismo e a
existência do que preferi denominar dialeto, torna-se mais forte nas casas onde
existem menos pessoas alfabetizadas, que vivem em áreas rurais e que têm em seu
seio pessoas idosas.
É possível ainda ouvirmos “pia li” (espia
ali), “vareia” (varia) e outras. Casos de pronúncia apocopada é, de certo modo,
comum, por exemplo: “refém” (referente), “hômi” (homem), “mué”, “mulé” ou
“muié” (mulher), “Gabrié” (Gabriel), etc.
Casos de suarabacti (ou epêntese) ocorrem
na mesma proporção, por exemplo: “empriquitado” (empiriquitado), “espritado”
(espiritado), “intriçado” (icteriçado – de icterícia), “tramela” (taramela),
“mó” (maior), “pruquê” ou “proquê” (por que ou porque), etc.
Talvez até mesmo alguns nativos possam estranhar esse apanhado de palavras, pois dispostas dessa forma, soltas e aleatórias, soam, de fato, estranhas, mas a partir do momento que integram um diálogo a coisa muda. É bom lembrar que elas foram obtidas dentro de um contexto, a partir de conversas informais, de maneira despercebida. E não foram juntadas num dia. Esse pequeno exemplo é fruto de anos de observação, até porque tenho uma quantidade incomparavelmente maior de outras, que ficam para outra postagem.
Talvez até mesmo alguns nativos possam estranhar esse apanhado de palavras, pois dispostas dessa forma, soltas e aleatórias, soam, de fato, estranhas, mas a partir do momento que integram um diálogo a coisa muda. É bom lembrar que elas foram obtidas dentro de um contexto, a partir de conversas informais, de maneira despercebida. E não foram juntadas num dia. Esse pequeno exemplo é fruto de anos de observação, até porque tenho uma quantidade incomparavelmente maior de outras, que ficam para outra postagem.
Creio que aqui está reunida uma breve
reflexão em termos de regionalismo constatado em Nísia Floresta. Não se trata
de uma reflexão completa, pois em pesquisa não existe fim, ademais, como já
disse, a linguagem é mutante, assim como toda a natureza.
Nenhum comentário:
Postar um comentário