A MARIA BOA QUE CONHECI...
Quem
 aprecia as fotografias de “Maria Boa” - e conhece apenas o lado da 
Maria Boa prostituta - julga serem cenas montadas para passar a imagem 
de uma mulher distinta. Ela está sempre composta, muito bem vestida e 
esbanjando simpatia. Não é difícil deduzir, ao primeiro olhar, que se 
trata do retrato de uma artista hollywoodiana dos anos 50. Os poucos 
“retratos” transmitem a aura de uma mulher feliz, exuberante e 
naturalmente elegante... quem sabe bela, recatada e do lar? 
Julgar
 as fotografias dessa polêmica personagem aos olhos atuais exige 
entender um amplo contexto que perpassa por toda uma história de vida, 
enfim voltar no tempo, pois julgar a sua sua história sem entender 
fatores culturais, educacionais, comportamentais de seu tempo, 
impede-nos de compreendê-la.
Até
 a adolescência a personagem era apenas Maria Oliveira Barros, mas o 
fato de ter “perdido a virgindade”, e ter sido abandonada pelo rapaz que
 a “deflorou” (como diziam à época), bastou para o pai expulsá-la de 
casa como um bicho selvagem. Naquele tempo ter debaixo do mesmo teto uma
 filha deflorada era uma desonra terrível para os pais, em especial o 
patriarca. Não é à toa que há registros na historiografia brasileira de 
pais que mataram as suas filhas e enterraram nas paredes da casa.
Maria,
 que até aí não carregava o pseudônimo de “Boa”, era boa por questão de 
índole. Falo de uma pós-adolescente de rara beleza, pobre e, agora, 
desvalida. Ninguém a queria por perto. Os familiares se afastaram. As 
famílias antigas de Remígio, interior da Paraíba, não queriam vê-la nem 
“pintada de ouro”. Moça que perdia a virgindade antes de se casar gerava
 na sociedade uma imagem demonizada. Todos apedrejavam qualquer Maria 
que incorresse a essa “fatalidade”. Fugiam das não-virgens como o diabo 
foge da cruz. Quem anda com uma amiga deflorada perde a moral. Passa a 
ser mal vista, diziam.
Uma
 moça começava a virar rapariga primeiramente na trepidação da língua do
 povo. As famosas janeleiras ou beatas católicas iam à missa e no 
caminho saiam recolhendo cada fragmento do que viam nas praças e 
calçadas para montar a colcha de fofocas na calçada da própria igreja, 
juntando os fragmentos das outras beatas e janeleiras. Bastava uma moça 
ser vista conversando demais com um rapaz que sentenciavam a presença de
 sexo na relação. Moça se demorando em conversa com homem casado 
sinalizava alguma coisa da cintura para baixo.
Uma
 “moça de família”, como diziam, pela infeliz atitude de perder a 
virgindade via o mundo cair sobre ela. Pois bem, a jovenzinha do 
interior, Maria de Oliveira Barros, bela, recatada e do lar, virou puta e
 repiputa num simples romper do hímen. Restava aos pais, principalmente 
ao patriarca, o rosnar assombroso, escandaloso, espetaculoso para 
mostrar para a cidade inteira que ele era homem de verdade. Homem 
honrado. Pai de família. Que não permitia debaixo do seu teto uma filha 
deflorada.
À
 mãe, cabia o silêncio, pois a mulher só dava palpite na cozinha. Seu 
coração podia estar despedaçado, mas chorava aquele choro engolido, que 
explodia no travesseiro ou no meio do mato. Tinha que fazer ares de 
reprovação. Ajudar o marido a corresponder ao padrão exigido pela 
sociedade. Os conhecidos queriam ver os pais execrando a filha, num 
sadomasoquismo doentio. A vizinhança se realizava com a crueldade do pai
 que dava espetáculo, batia, jogava as roupas na rua, dizendo palavras 
de reprovação e intolerância, pois aquele julgamento pertencia à cidade.
Creio
 que alguns desses patriarcas certamente choravam por dentro - não é 
possivel!. Mas optavam pelo teatro da sentença cultural. Era preciso 
fazer aquele barulho para amedrontar outras filhas e a vizinhança. Dar 
satisfação ao povo era lei. Mas enquanto alguns pais exerciam aquela 
monstruosidade pelo “cumprimento da obrigação”, muitos, de fato, eram 
verdadeiros “cavalos batizados”. Espancavam a filha com violência 
desmedida, inconveniente até mesmo aos bichos selvagens. 
Esse
 perfil de pai perverso e violento, de fato, se sentia fracassado, pois 
naquela concepção cultural, a “mancha na família” jamais seria limpa. 
Para os amigos e conhecidos, ele seria sempre visto – e até mesmo dito 
pelas costas – como “o pai da rapariga fulana”, e isso consistia numa 
vergonha eterna. Curiosamente a casa onde Maria de Oliveira Barros 
morava com os pais em Remígio, Paraíba, tinha o nome de “Rua Boa”, daí o
 apelido que carregou até a morte.
Maria
 constatou de maneira humilhante e amarga que se tornara estranha e 
indesejável na pacata cidade natal. Os olhares de desprezo estavam 
pregados em todos os lugares, até nas paredes. Olhares de espinho. Então
 ela sentiu que não cabia mais naquele berço.. Sem dinheiro e mal 
conseguindo apanhar poucas peças de roupa que a mãe, sabe lá como, lhe 
entregou - foi para João Pessoa. Mal chegou ali um político cresceu os 
olhos em sua beleza. Engataram um relacionamento. Logo brigaram e ela 
precisou fugir, pois o indivíduo era “cabra de peia”, tendo-a ameaçado 
de morte e a perseguido durante dias, confundindo-a com uma mercadoria comprada em loja.
Maria
 embarcou às pressas na velha estação da Great Western. Passou pela 
Estação Ferroviária de Guarabira, emoldurada de comércio. Ainda quis 
ficar, matutando inventar algum ofício. Era lugar de vuco-vuco e corria 
dinheiro. Mas o medo foi maior e ela quis ver o final da estrada de 
ferro. Assim desceu na Ribeira desconhecida, mas muito próspera. Era a 
veia nervosa da Natal da década de 40. Parecia um pedacinho de Paris.
Em
 Natal não faltou quem lhe atirasse os olhos.Tentou emprego em casas de 
família, mas as patroas não a viam com bons olhos.  Logo empregou-se num
 “Dancing”. Era muito atraente e foi a primeira opção para quem chegava 
“sem eira e nem beira”. Trabalhou em algumas “casas de drink” e não 
demorou tornou-se dona do próprio estabelecimento. Tinha como 
característica “o respeito”, se o leitor puder me entender. Muito 
reservada e não era dada a gaiatices e galhofanças. Talvez isso fizesse 
com que a sua pessoa, mesmo dentro de uma casa de venda de sexo, 
conseguisse impor ordem. Tratava a coisa como comércio mesmo. 
Foi
 o primeiro “cabaret” a exigir de suas funcionárias cuidados extremos 
com higiene pessoal: vacinas, remédios pertinentes etc. Não aceitava 
mulheres que não tivessem certo recato. Mesmo que meramente na 
aparência.Todas deveriam se vestir com a melhor roupa, consistindo em 
saias longas, vestidos longos, blusas compostas, usar o melhor perfume, e
 seguir uma espécie de etiqueta comportamental (modos de se sentar, de 
abordar os clientes etc). Na rua deveriam agir como qualquer mulher de 
bem. E até que se passavam por tais, pois vestiam-se com muita 
compostura. A julgar pelas raras fotografias das “raparigas” que ali 
trabalharam, pensaria-se que as “meninas” estavam em qualquer ambiente 
público de respeito. Jamais num cabaré.
O
 tempo passou e o seu estabelecimento se tornou conhecido em toda a 
Natal. Odiado por uns, amado por outros. Era freqüentado por políticos e
 empresários. (funcionou por aproximadamente meio século). Durante a 
Segunda Guerra Mundial, quando a Base Aérea de Natal abrigou o aeroporto
 mais movimentado do mundo, os militares norte-americanos batizaram um 
de seus aviões de guerra com o sonoro nome  de “Maria Boa”. Nesse tempo 
“entrou dinheiro a se puxar de rodo”, e ela adquiriu alguns bens, dando 
mais qualidade a seu comércio. 
Maria
 vestia-se impecavelmente. Não era diferente de nenhuma grande dama da 
alta sociedade natalense. Tornou-se ainda mais elegante. Tinha, 
inclusive, uma característica incomum à maioria das mulheres de seu 
tempo. Lia os clássicos e gostava de bons filmes. Quando entrava no 
cinema roubava todos os olhares e obviamente alguns narizes tortos. 
Nutria o hábito que poucos sabem: ajudava inúmeras famílias carentes, 
mandando feiras. 
Ajudou
 as mães de muitas de suas funcionárias até a morte. Era agora a famosa 
“Maria Boa”. Um nome que, queira ou não, se confunde com o patrimônio de
 Natal. Não da Rua Boa de Remígio, mas de todas as ruas e avenidas da 
terra de Cascudo. Para algumas mulheres, era “Maria Ruim”.
Ela
 também costumava freqüentar outros eventos em Natal. Assistiu muitas 
peças teatrais, shows musicais e eventos políticos no Teatro Alberto 
Maranhão. Apreciava carnaval. Sua presença roubava a cena pelos modos 
elegantes, figurinos impecáveis e jóias discretas. Também gostava muito 
de feiras. Foi pedida em casamento por vários oficiais norte-americanos e
 mesmo soldados comuns, mas dizia que nenhum homem poderia ser comparado
 ao brasileiro. Algumas “meninas” (como eram chamadas) saíram do famoso 
cabaré direto para os Estados Unidos. Umas, casaram-se aqui, outras lá. 
As “perdidas”, como também eram chamadas, perderam essa página do livro 
de suas vidas. Tudo ficou esquecido na Ribeira. 
Lá nas terras de Tio Sam
 tornaram-se mães de família, mulheres respeitáveis como qualquer outra,
 cuja história era conhecida apenas pelo marido. Algumas retornaram ao 
Brasil, em visita aos familiares. Outras voltaram já idosas, depois de 
terem se tornado avós. A maioria das “meninas” dos tempos áureos do 
cabaré de Maria Boa eram idosas na década de 90. Quase todas morreram no
 final da década de 1990, como também a minha entrevistada.
Não se sabe exatamente se Maria teve um homem específico e se realmente nutriu amor verdadeiro a algum potiguar. O imaginário popular lhe atribui amantes diversos, a maioria homens importantes, inclusive políticos. Tanto americanos quanto brasileiros. Mas o homem que ela amou incondicionalmente foi, ironicamente, o próprio pai. Todo o aparente ódio que ele lhe despejou ela transformou em amor e saudade.
Em 1992 entrevistei a senhora Maria Antonia Ferreira, 83 anos, ex-prostituta do cabaré de Maria Boa. Ela contou-me que Maria Boa tinha um oratório e nele guardava a fotografia dos pais. Segundo a senhora Antonia, ela rezava muito e sempre falava dele, principalmente, como quem evoca uma pessoa que só lhe deu amor. Não se referia ao pai com maledicências. Muitas vezes era pega chorando, dizendo que queria vê-lo. Estava rica. Tinha poder. Mas não consertou o passado. Sentia um vazio. A bondade daquela menina quase criança, deflorada décadas antes, humilhada por uma cidade inteira, resistia nela. Mesmo sendo uma mulher adulta e vivida, conservava tais resquícios. E foi com essa bondade que certo dia ela criou coragem e retornou à Paraíba para visitar os pais. Foi um reencontro impressionante.
Nas décadas de 1970 a 1990, a imagem de Maria Boa estampou fotos, "pins", adesivos, gincanas e até um troféu teve como tema “Maria Boa”, símbolos da atitude singular de um piloto de Caça. Recentemente o nome de Maria foi dado a uma equipe de competidores num programa da TV Cabugi. “Maria Boa” ou Maria Oliveira Barros faleceu vítima de um AVC, aos 97 anos, em 1997, na de Casa de Saúde São Lucas, em Natal.
Para a juventude atual é difícil decifrar um bordel na sua acepção “mariaboense”. Os jovens não conseguem digerir um passado em que havia lugares exclusivos para as “práticas pecaminosas”, “feridoras da moral e dos bons costumes”, se hoje, quando terminam as noites do Carnatal, dão de cara com gente fazendo sexo em cada esquina, nas calçadas, atrás dos carros. Se até mesmo nas madrugadas em que se encerram as festas de padroeiros, e se veem orgias quais as de Sodoma e Gomorra, ninguém entenderá o mundo de Maria Boa. Os “cabarés” se tornam as vias e logradouros públicos. 
Hoje a juventude vê sexo em público nos eventos mais impensados. Portanto eles não entenderão a dinâmica de um bordel diante da atualidade pautada por sexo fácil saído até mesmo de dentro das universidades, por vias das garotas e garotos de programa universitários solteiros e casados/as. Sem contar jovens ricos/as que transam por delivery porque querem sempre mais poder financeiro. Como entender quando alguém disser a essa juventude que no tempo de Maria Boa até puta tinha que ter classe e respeito?
A virgindade hoje não é mais tabu.O termo “defloramento” soa engraçado. Tornou-se um arcaísmo. A sexualidade – de todas as pessoas – deixou de ser como um controle remoto operado pelos pais. As próprias pessoas exercem a sua sexualidade, como deve ser. Cabarés continuam existindo, mas distantes da concepção do passado, em que se sabiam seus endereços e nomes. Perderam a “graça”, pois hoje quase todos os lugares podem ser cabarés.
A história de Maria Boa nos leva a refletir também sobre o patriarcalismo, a violência familiar e a defesa da honra. Isso também se parece com a misoginia, cujo próprio Código Penal (daquele tempo), livrava da prisão o marido assassino da esposa, pois ele matou-a para defender a sua honra. É o mesmo caso do pai que, para não matar a filha “deflorada”, a execrava e a expulsava de casa como se lixo fosse, simplesmente para agradar a sociedade.
Maria Boa pertenceu a um tempo diferente de prostituição. Parece contraditório, banal ou apologético dizer, mas foi um tempo em que as “putas” ouviam histórias e contavam as delas. Tempo em que muitas estavam ali pela mesma razão de Maria Boa. Tempo em que o drama de muitos lares as empurravam para esse mesmo destino. Ironicamente, tempo, inclusive, de muitas terem encontrado ali o homem que a respeitou fielmente até o seu último suspiro. 
O que levava uma moça para um cabaré no tempo de Maria Boa? Falta de oportunidades? Expulsão de casa? Dificuldade de enfrentar a sociedade? “Senvergonhice”? Não sei... Sei que há um cheiro forte de hipocrisias, ignorâncias, apedrejamentos, falsas santidades e outras coisas mais. Muitos pais atuais nem imaginam, mas há 15 centímetros deles, separados por uma parede, pode estar acontecendo nesse exato momento algo incomparável ao que acontecia no cabaré de Maria Boa. Quem sabe o filho em contato com um pedófilo pela internet? Quem sabe a filha em sexo on line com vários rapazes. Quem sabe outras sodomias e ‘gorromias’? Os cabarés podem sim, ser em quase todos os lugares... (2.3.2000)







Muito boa está recordação você tem bom gosto Vicente de natal RN
ResponderExcluirMuito obrigado, Vicente. São histórias que, contadas seus bastidores, ajudam a esclarecer episódios interessantes como esse. Um abraço.
ExcluirEm Crato (CE), tivemos uma Maria Boa. A dona do famoso Cabaré de Glorinha, por mais de 50 anos. A Sra. Glorinha, respeitada e respeitosa, era companheira do Sr. Jacó. Era comum a frase "quem sobe às escadas de Jacó, atingirá o reino da glória", como gracejo para lembrar uns degraus que havia na entrada da casa dos amores. Família respeitada na tradicional sociedade Cratense, um dos filhos de Glorinha foi funcionário do Banco do Brasil e Venerável de uma Loja Maçônica.
ResponderExcluirMeu pai e minha Mãe é de sobrenome 'Boa' em cartório,e meu sobrenome também é 'Boa', Morei 15 anos em Natal e os colegas de trabalho brincavam comigo: és filho ou irmao de Maria boa? Porém nunca me contaram essa história interessante e dolorosa de Maria Oliveira... E minha mãe tambem é Maria Oliveira rsrs. É. Memórias de um coraçao partido, que esconde uma reserva de infelicidade por causa de um ato de ingnorancia de alguém se ama.
ResponderExcluirNisia, gostaria do seu e-mail, por gentileza. Adorei sua matéria!
ResponderExcluirBoa noite! Meu nome é Luís. Nísia é o nome do blog. Obrigado por apreciar o texto. Meu e-mail é: luiscarlosfreire.freire@yahoo.com.br
ExcluirPrima do meu avô se tiver mais alguém. Da família avisa por aqui @vanessaamaropassos insta
ResponderExcluirMuito bom o texto. Eu não conhecia esta historia com tanto detalhe. Parabéns ao escritor e pesquizador.
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