“Tarcísio Gurgel é um
escritor de duas cabeças”. A definição é do próprio Tarcísio, explicando o fato
de haver produzido literatura exclusivamente em Natal, mas inspirado no
universo mítico de Mossoró, onde nasceu e participou de movimentos importantes,
como o Teatro de Estudantes Amadores (Team).
Ao longo da conversa, Tarcísio Gurgel, que confessa haver abandonado uma
experiência com a poesia para se dedicar ao conto, na hora certa, antecipa
detalhes sobre “Informações da Literatura Potiguar”, livro mais recente de
autoria dele, cujo lançamento nesta cidade será hoje, às 18 horas, na filial da
livraria A.S. Book Shop.
POR CID
AUGUSTO
O
MOSSOROENSE – Você nasceu em Mossoró, fez teatro na cidade, mas tornou-se
escritor em Natal. Pelos
critérios adotados em “Informação da Literatura Potiguar”, Tarcísio Gurgel é um
escritor mossoroense ou natalense?
TARCÍSIO GURGEL –
Tarcísio Gurgel é um escritor de duas cabeças, porque, na verdade, se você
pegar a minha pequena obra de ficção curta, ela tem um imaginário que não é
explicitamente mossoroense, mas certas situações remetem a isso. No último
livro, “Conto por Conto”, tem uma história em que há alusão à luta política de
Mossoró. Então, o meu universo mítico, por assim dizer, é Mossoró e isso me
marcaria como um autor mossoroense. Mas, inegavelmente, toda a minha vida
literária é em Natal.
OM – É
possível alguém se tornar escritor?
TG – Tornar-se
escritor é uma coisa de processo. Você nunca pode dizer: “A partir deste
momento, eu me tornei escritor”. Mas comigo aconteceu pela orientação
providencial de Deífilo [escritor Deífilo Gurgel, irmão de Tarcísio] que,
aliás, foi quem decretou a morte do poeta em mim, em boa hora. Ele foi muito
honesto ao ler os poemas que eu escrevia e ao sugerir, sem ser grosseiro: “Você
não acha que você talvez escrevesse melhor conto?”, partindo de uma dedução
simplista, que era a do meu envolvimento com o teatro.
OM – Por
que Nísia Floresta e Milton Pedroza não podem ser considerados escritores
norte-rio-grandenses, apesar de haverem nascido no Estado?
TG –
Nísia, não. Ninguém mais européia, carioca, pernambucana que ela no âmbito
literário, o que não diminui o valor intelectual da sua obra. Milton Pedroza,
sim, e eu até me penitencio porque acho que não dei a devida ênfase à
contribuição dele.
OM – Mas
ele saiu sedo de Mossoró e do Rio Grande do Norte?
TG – Veja
bem: ao sair, ele já havia publicado “Passos Cegos” e, parece-me, um outro
trabalho cujo título não lembro. Há um substrato mossoroense,
norte-rio-grandense, na obra de Milton que o torna presente em nossa literatura
e ele, de resto, é um autor muito importante. Para se ter idéia, numa antologia
de Graciliano Ramos, publicada postumamente, estão três autores do Rio Grande
do Norte: Milton, Humberto Peregrino e Peregrino Júnior, sendo este um autor
cuja obra mais importante é amazonense.
OM – Qual
o caminho de Macatuba?
TG –
O caminho de Macatuba passa por Mossoró e passa por outras cidades
literariamente marcantes, numa gradação difícil de se explicar.
TG – Não necessariamente. Aqui e acolá houve personagens episódicas que eu
saberia identificar. Por exemplo, há um papagaio no livro que realmente
existiu, e que foi iniciado em safadeza por uma prima minha, maravilhosa,
chamada Aparecida, infelizmente já falecida. Durante muito tempo ela tentou
pervertê-lo, até que conseguiu.
OM – A
experiência de ator do Team, com participação em “Eles não Usam Black-Tie”, de
Gianfrancesco Gaurnieri, “Esquina Perigosa”, de J.B. Priestley, e “O Pagador de
Promessas”, de Dias Gomes, exerceu que influência em sua carreira de escritor?
TG – Nessa
coisa de facilitar a criação de diálogos, de uma certa agilidade com que esse
diálogo se constrói. As coisas que eu escrevo, quanto à qualidade, não sou eu
quem deve avaliar, mas, no que diz respeito aos diálogos, como eu exercito
muito, eu escrevo, reescrevo, rasgo, até alcançar uma forma que me satisfaça, a
coisa se constrói sem aborrecer o leitor e, com certeza, é fruto da vivência no
Team.
OM – O
seu segundo livro de contos, “O Eterno Paraíso”, é dedicado a Maria Pata Choca,
Zé Alinhado, Manoel Cachimbinho, Benício Gago e Cristina dos Pimpões, entre
outras figuras populares de Mossoró. É somente isso ou o contista buscou algo
nelas para compor personagens?
TG –
Essas figuras me ajudaram a construir esse universo mítico. Benício Gago, por
exemplo, chegava à padaria de meu pai e os padeiros mexiam com ele. Quando
estava de boa veia, Benício cantava uma musiquinha que, melodicamente, lembrava
“Águas de Março”, o que cresce a minha convicção de que aquela música deve ter
raízes populares.
OM – Por
falar em dedicatória, “Informação da Literatura Potiguar” é dedicado a Luís da
Câmara Cascudo, por ser “um clássico em qualquer literatura” e a Deífilo
Gurgel, Vingt-un e Raimundo Soares de Brito, por serem “generosos exemplos”....
TG –
Exatamente isso que eu penso. Cascudo é muito citado e/ou criticado, mas
pouquíssimo lido. Quando as pessoas lêem Cascudo de forma seletiva, chegam à
constatação de que eu não exagerei. E quanto a Vingt-un, Deífilo e Raimundo
Soares de Brito, é que esses (não estou falando inverdade nem estou sendo
grosseiro), embora não tenham atingido, por força das circunstâncias, aquele
estágio literário, são pessoas de uma generosidade intelectual que me comove.
OM –
Quais são essas circunstâncias?
TG –
É que Cascudo teve o direito de se preparar para revelar à humanidade o talento
dele, enquanto os outros lutaram com muita dificuldade, trabalhando desde muito
jovens. O que Raimundo Soares de Brito faz em Mossoró, gastando os próprios
proventos, que não devem ser tão altos, para manter aquele acervo, recebendo
com carinho as pessoas que o procuram e valorizando a nossa produção
intelectual, é incrível. Essa tarefa de Vingt-un com a Coleção Mossoroense, que
já ultrapassa três mil títulos, ninguém, nenhuma instituição cultural do Brasil
tem a coragem, a paciência e o zelo de fazer. De modo que todo tipo de homenagem
a eles acaba sendo pequena.
TG – No que diz respeito ao tipo de produção literária, com traços
distintivos de outros povos, eu nem sei se seria Cascudo. Com relação à vida
cultural do Estado, tenho certeza. Há outro nome que se aproxima de Cascudo,
que é Henrique Castriciano. Em determinado momento, Henrique serviu de exemplo
para o próprio Cascudo.
OM –
Cascudo era um animador cultural...
TG –
Cascudo, também como Henrique, acabou sendo um animador cultural de extrema
importância. Em alguns momentos eu digo, e alguns amigos ficam chocados, que
chego a desconfiar de o que seria Jorge Fernandes se não tivesse tido um
interlocutor como Cascudo, que ouvia e reconhecia a importância da poesia e,
mais do que isso, remetia sua produção poética para outros intelectuais.
OM –
Existe realmente uma literatura norte-rio-grandense ou é preferível chamá-la
apenas de literatura produzida no Rio Grande do Norte?
TG –
Há uma literatura norte-rio-grandense.
OM -
Existem traços peculiares na produção livresca do RN?
TG – Não
tenho dúvida de que a literatura produzida por Ferreira Itajubá era uma
literatura norte-rio-grandense. Não tenho dúvida de que a literatura produzida
por Palmira, Jorge Fernandes, Zila Mammede, Jaime Hipólito, Raimundo Nonato, é
literatura norte-rio-grandense, pois possui peculiaridades culturais do nosso
povo.
OM – Tudo
vale a pena quando a alma não é pequena, ou escrever maus versos não compensa?
TG –
Escrever maus versos não compensa. Não há como se blefar com literatura, porque
a literatura tem uma mensagem a ser veiculada, cujo elemento fundamental é a
beleza, uma beleza que pode ser até feia, conforme nos ensinou Baudelaire.
TG – Se não um estilo de época, há pelo menos um discurso de época. Vivemos
um período em que se colocam desafios em variados planos, período de uma
revolução na eroticidade, na política, na economia, na configuração urbana, nos
meios de transporte e, no plano das linguagens, algo que chega ao virtual, ao
plano da Internet. O discurso de época tem que contaminar as obras de arte,
afinal a gente não escreve para pessoas do passado, mas sim para dar a pessoas
do futuro a dimensão de como as coisas se constituíram numa determinada época e
local.
OM – E as
formas?
TG –
Ainda hoje há poetas exercitando, já não digo nem formas poéticas, porque essas
são eternas, mas novos sentimentos, novos discursos.
OM – O
que você acha das pessoas que optam por divulgar obras exclusivamente na
Internet?
TG –
Não me agrada muito. O suporte físico do livro ainda é muito veemente para ser
descartado.
OM – No
Brasil, há políticas culturais de efeito prático?
TG –
Eu não acredito nessas leis de cultura que estão postas aí, até por uma questão
de impaciência. O governo precisa é abrir linhas de crédito para quem escreve
ter oportunidade de publicar e comercializar o próprio trabalho.
OM –
Mudando o rumo da conversa, não seria a crítica uma tentativa de se impor o
gosto pessoal do crítico?
TG –
Isso depende do crítico. Por quê? Porque uma coisa é você levar em conta uma
resenha feita por um cidadão que trabalha profissionalmente em jornal, com
pouco mais de 25 anos de idade, e outra coisa é você pegar um trabalho crítico
da dimensão de um Antônio Cândido.
OM – Mas
a crítica é realmente importante?
TG – Ou
a gente cuida de preservar características essenciais, não fazendo concessões
demasiadamente, ou tende a ter uma literatura de qualidade inferior. Claro, eu
sou o primeiro a reconhecer que isso é antipático, que isso é uma maneira até
certo ponto grosseira de falar, sobretudo entre pessoas que estão se iniciando,
mas vejo a crítica como uma necessidade. É aquela coisa de a gente, de alguma
maneira, lutar pelo aprimoramento do gosto. Sem essa luta, corre-se o risco de
se fazer um tipo de obra artística simplista.
OM – O RN
possui bons críticos?
TG –
A gente se ressente muito de um exercício crítico pra valer. Não existe crítica
no Rio Grande do Norte. O último grande crítico daqui terá sido, certamente,
Antônio Pinto de Medeiros, outro intelectual importante que passou por Mossoró.
Acho até que Dorian Jorge Freire e o próprio Jaime sofreram influência do
espírito meio irreverente de Antônio Pinto.
OM – Você
compara os acervos das instituições públicas a velhos sótãos. Nossa cultura
está entregue às ratazanas e traças?
TG –
Em alguns casos, sim, infelizmente.
OM – O
jornalismo roubou Dorian Jorge Freire da literatura ou ele seria uma espécie de
escritor realizado no jornalismo?
TG –
Eu tive dois prazeres enormes com cronistas norte-rio-grandenses, organizando
um livro de Dorian e um de Sanderson Negreiros. Mas Dorian é um tipo de escritor
lato senso [expressão que significa em sentido amplo]. Sobretudo quando ele
trata de uma memória com acento de nostalgia, nenhum outro autor do Rio Grande
do Norte consegue alcançá-lo. Dorian escreve de forma notável essa coisa da
memória.
OM – A Coleção
Mossoroense, coordenada por Vingt-un, não merecia análise mais profunda em
“Informação da Literatura Potiguar”?
TG – Merecia,
não: merece! Mas eu preciso realizar uma pesquisa mais aprofundada sobre a
Coleção Mossoroense. Como me fixei em Natal e nem sempre dispus de muita
oportunidade de fazer esse trabalho, acabei ficando devedor de algumas coisas.
OM – Os
novos movimentos poéticos do Estado, tipo a Sociedade dos Poetas Vivos e a
Poema, pecam pela ausência de uma estética?
TG –
Os movimentos são muito válidos e muito importantes, mas todos os que existiram
se caracterizavam por uma grande desorganização. No movimento modernista de São
Paulo, por exemplo, um brigou com o outro, uns se destacaram mais, outros
menos. Preocupa-me, muitas vezes, tentar um certo traço de união, uma
identidade. O ecletismo que caracterizou a “Revista Antropofágica”, me agrada
mais que um certo “espírito de corpo” de grupos constituídos que, muitas vezes
tem a marca da generosidade, mas que, esteticamente, pode ser perigoso. No
entanto, como esses do nosso Estado são movimentos muito novos, com certeza
terão desdobramentos interessantes.
OM – Os
romancistas norte-rio-grandenses são ruins ou o fato de estarem distantes dos
grandes centros editoriais, fora das igrejinhas do Centro-Sul, é o responsável
pela pouca divulgação de suas obras?
TG –
A literatura do Rio Grande do Norte padece de uma situação muitíssimo curiosa,
que é a seguinte: como ela praticamente nasceu em Natal, com um poeta de
estrema popularidade, que era Lourival Açucena, criou-se uma coisa da poesia. A
literatura do Rio Grande do Norte é uma literatura predominantemente poética e
isso há de ter inibido alguns ficcionistas, inicialmente.
OM – Mas
o Rio Grande do Norte não tem elementos interessantes para a ficção?
TG – A
história cultural de Natal registra episódios e tem um sabor dramático,
romântico, que faria a festa de qualquer ficcionista. E se a gente vai para
Mossoró, essa é uma cidade potencialmente fantástica para a ficção. Espanta-me,
exatamente isso. A gente não tem tido a sorte de ter grandes ficcionistas em
Mossoró, produzindo a partir da saga mossoroense. Eu costumo dizer que enquanto
Natal é lírica, Mossoró é épica.
OM – Como
você analisa a sua própria ficção?
TG –
Se você me perguntasse se eu considero o que eu escrevo em matéria de ficção
uma coisa ótima, eu responderia que não considero; se você me perguntar se eu
me acho um bom contador de histórias, também não. Na verdade, as histórias se
constroem para mim, esses pequenos contos, com certa lentidão, com certa
dificuldade. O que me socorre é o exercício com linguagens e, como eu sou
egoísta, penso que todos deveriam fazer o mesmo.
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