CARTA ABERTA DA LAGOA PAPARY AOS NISIAFLORESTENSES
Nísia Floresta, 10 de março de 2012
Por Luis Carlos Freire
Eu, LAGOA PAPARY, brasileira, natural de Papary, Rio Grande do Norte, casada com os nativos, domiciliada no Porto, em Morrinhos, Tororomba, Oitizeiro, Georgino Avelino, Currais e Genipapeiro, dirijo-me respeitosamente até você, nisiaflorestense para pedir-lhe socorro.
Prefiro começar falando da minha origem. Você sabia que o meu nome
original é PARAGUAÇU. Significa “MAR IMENSO” em nossa língua materna. Nem precisa perguntar o porquê. Eu já fui maior do que sou atualmente.
Sou filha da Lagoa do Bonfim, que se chamava “PUXI”. Mas prefiro não traduzir essa palavra condenada pelos capuchinhos. Sempre fui encorpada. Nasci no seio de uma família imensa. Tenho muitas irmãs, Papeba, Papebinha, Ferreira Grande, Ferreirinha, Urubu, Escura, Lagoa Seca, Carcará, Arituba, Cavalos, Pium, Amarela, Ilhota Lodo, Sítio, Dourada, Alcaçuz, Tacho, Jabuti, Hiola, Redonda e Redondinha, Carnaúba, Teixeira, Anjos, Custódia dos Negros e Peixe, embora algumas são adotivas.
Tenho vários primos em forma de pequenos rios no centro da cidade, no Porto, na Ilha, na Boacica, em Pirangi, Alcaçus, Pium, Cururu, na Hortigranjeira, enfim estou indiretamente em todo o município.
Sobre a minha idade, prefiro não dizer, mas só para dar uma pista, eu já existia muito antes de os índios chegarem por aqui. Já fiz a alegria de muito índio e índia que viviam nas minhas matas ciliares, pescavam, andavam de canoas e se banhavam em minhas águas.
Das minhas entranhas saíam infindáveis peixes de quase trinta quilos. Fui berço de milhares de goiamuns, carangueijo-sá, siri, camarão, inclusive Pitu, dentre uma vasta micro-fauna.
Sou a lendária lagoa Papary, d’antes Paraguaçu. Sou o amplo reservatório das águas do Trairí, berço das águas oriundas do inverno sertanejo, onde pequenos riachos correm dos tabuleiros arenosos, dando origem a essa imensidão de águas que se interligam com outras lagoas e rios, como o velho Cururu que desembocam no mar.
Desde que os portugueses começaram a andar por esses rincões meu nome original, Paraguaçu, passou a ser documentado na história. Começou pela cartografia de Marc Grave em meados da década de 1640. E antes disso eu já era conhecida em Portugal. O tempo passou e, em 1810, o famoso viajante inglês, Henry Koster, visitou-me quando minhas águas chegavam até o Porto.
Em seu livro “Viagem ao Nordeste do Brasil” ele relata que ficou encantado quando viu os pescadores chegando com as canoas abarrotadas de peixe, me comparado ao Mercado de Billingsgate, na Inglaterra, por minhas águas piscosas. Fui cantada em prosa e verso por autor anônimo que me dedicou bela poesia centenária, evocando a lenda de Jacy e Guaracy; citada por inúmeros viajantes europeus em documentos antiquíssimos.
Sempre fui considerada deslumbrante, misteriosa e acolhedora. Essa lenda, “do arco da velha”, nasceu quando passaram a me chamar de Papary, e aos poucos esqueceram que fui Paraguaçu. Se você não a conhece veja a letra:
Contava-se em Papari
A lenda de uma sereia;
Era a história de Jaci,
Jovem tapuia da aldeia.
Jaci formosa e catita,
Filha do chefe Aribó
Era a índia mais bonita
Do Vale do Capió.
Amava com amor ardente
Guaracy jovem guerreiro,
Cujo peito igualmente
Nasceu um afeto primeiro
Sozinho na solidão
Guaracy vagava a toa,
Ora ao redor da Caiçara,
Ora ao redor da lagoa.
Certa vez quando pescava
Tentando esquecer as mágoas,
Ouviu que perto cantava
A voz de Jaci nas águas.
A delirar, Guaracy.
Na lagoa mergulhou
Seguiu a voz de Jaci
E a tona não mais voltou.
Hoje esta lenda triste
Quem se dispõe a cantar
Vê quanto mistério existe
Entre a lagoa e o mar.
É uma estória triste, não? Pelo jeito foi escrita no período do Romantismo. Guardo lembranças lindas, tristes e algumas aterrorizantes. Ainda me recordo quando vi, em silêncio, Jacob Rabbi passar por essas veredas. Logo após a Chacina de Cunhaú, vi quando seu grupo passou por aqui, rumo a Barra de Tabatinga para a segunda chacina. Poucos nisiaflorestenses sabem desse episódio histórico. Era noite de lua cheia e as sombras asquerosas daqueles assassinos ainda tocaram-me entre os juncos.
Testemunhei homens brancos de olhos azuis cortando uma linda espécie que existia em abundância por essas matas ciliares. Lembro-me de um dia que só dessa região saíram 40 navios franceses repletos de pau-brasil.
Sempre fui muito limpa. A própria fauna aquática que existia em mim se encarregava dessa limpeza. Minhas águas sempre foram puras e cristalinas. Às vezes eu ficava turva, pois a Caiçara que tanto me amava, me abraçava por completo, deixando-me ora salgada, ora doce, ora salobra.
Sabe o que significa Caiçara? Não?!! Para que todos entendam precisamos nos reportar ao descobrimento do Brasil: Quando os portugueses chegaram ao Nordeste encontraram o nativo indígena e, através de uniões amorosas, se misturaram. Tempos depois, veio o africano e mais um ingrediente étnico-cultural entrou na mistura. Nasciam os caiçaras, uma população tradicional intimamente ligada à natureza e seus ciclos, que trabalhavam para o sustento cultivando roças, extraindo frutos e lançando-se à caça e à pesca.
A palavra “caiçara” tem origem tupi-guarani. “Caa” significa pau, mato; “içara” quer dizer armadilha. Caiçara é um tipo de proteção feita de galhos e varas que os índios usavam em volta de suas casas ou para pescar. Com o tempo, a palavra passou a ser usada para identificar o povo litorâneo, mas hoje ninguém se recorda mais disso. Os homens parecem interessados em outras coisas.
Minhas águas sempre atraíram galinha d’água, pinto d’água, marreco, xexéu, rolinha, galo de campina, bem-te-vi, tetéu, sabiá, concrix, carcará, lavadeiras, gavião e tantas outras aves. Saciei a sede de muito tatu, tijuaçu, jacaré, cotia, coelho-do-mato, preá-do-mato, raposa, guaxinim, timbu e tantos outros animais. Era uma riqueza. Isso parecia o pantanal.
Mas, continuando o que eu falava, sempre dei alegria aos nativos. Das minhas águas saiam incontáveis centenas de quilos de peixes e camarões durante a festa dos Pescadores, em setembro. O pessoal do Porto fazia barracas, havia celebrações, festa social com muito forró original. As casas eram todas de palha. Tinha até o famoso dízimo-do-peixe. Foi um tempo que deixou saudades.
Durante incontáveis invernos sempre recebi as águas do sertão. Essas águas trouxeram lentamente muita terra que foi me assoreando aos poucos. Em 1974 houve uma enchente que ficou na lembrança de muita gente. A famosa “cheia de 74”. A força das águas rompeu a BR 101, nas proximidades de São José de Mipibu, deslizando em mim toneladas de barro que elevava a pista.
Existia uma barragem em Georgino Avelino. Ela também se rompeu me enchendo de barro e entulhos. A partir daí nunca mais fui a mesma, embora ainda não era poluída por dejetos. Antes eu era interligada com os rios de toda a região de Currais a Genipapeiro, chegando rente à estrada de acesso a tais distritos. Mas fui me reduzindo e me distanciei do Porto, principalmente. Muita área que era só água hoje está tomada por aninga, pasta e aguapé. Todo o meu leito está cheio de terra vinda de outros rios e de algumas cidades potiguares, pois como suas margens estão desmatadas essas terras ficam soltas e a cada chuva deslizam para os rios até o ponto final, que, por ironia, antes de chegar ao mar, sou eu. Num dos meus pontos mais fundos formou-se um câncer em forma de um gigantesco banco de areia, maior que um campo de futebol. Parece uma ilha vulcânica.
Minha micro-fauna e flora aquática estão quase totalmente destruídas devido a essas agressões. Os meus plânctons nem se fala. É por isso que não tenho mais gerado tantos peixes e crustáceos como antes, pois essa fauna se alimenta da minha micro flora e fauna. A vegetação do mangue é minha verdadeira muralha de proteção, muito antes da mata ciliar. Mas, ao longo dos anos vem sendo cortada para a construção de casas de taipa dos próprios nativos, além de outras finalidades.
Eu pensava que com o advento da alvenaria isso se acabaria, mas agora apareceram os viveiros e minhas margens mais parece um descampado. O pouco que restava desse micro-ecossistema está morrendo lentamente devido aos produtos químicos que estão usando. Estão jogando um líquido esquisito nas minhas margens e ele mata tudo que é vivo, seja animal ou vegetal. Em fração de segundos os lambarizinhos sobem e apodrecem por ali mesmo. Minhas imediações fedem como o Tietê. Pelo que vejo, se os fatos continuarem como estão, serei tal qual esse rio paulista.
Se minhas margens ficarem savanizadas estará decretada a minha morte e as consequências serão catastróficas para todos. E lembre-se que meu caso é mais grave, pois estou sobre os aquíferos Aluvião e Barreiras, um dos maiores do Rio Grande do Norte. Isso entra na sua cabeça?! Você já analisou a gravidade?!
Confesso que estou muito triste, pois ouço muitas lamúrias, principalmente de pescadores, de pessoas aficionadas por ecologia, mas ninguém age. Onde estão as autoridades, onde estão os amantes da natureza, os estudantes de ecologia, de turismo, enfim as camadas pensantes do meu município?!
Para quem tem memória curta, lembro que sou aquela que matou a fome dos seus antepassados, numa época em que tudo era mais difícil. Quando não existia Bolsa Família, nem aposentadoria tão fácil como atualmente. Sou aquela que representou a única fonte de alimentação da sua família, numa casa de taipa ou de palha. Lembra-se?!
Sou aquela que enchia os cestos de peixe, pitu e carangueijo para os seus avós e pais, os quais chegavam em casa felizes, entregavam o fruto da pesca às esposas. Estas se sentavam nos batentes das portas ou mesmo no chão, junto das bacias repletas do pão de cada dia para prepará-los.
À noite a mesa era farta. Do fogão de lenha saia bem quentinho inhame, fruta-pão, batata assada, macaxeira acompanhada de peixe frito ou assado, camarão, caranguejo, goiamum, siri, café e muita fartura. Tudo isso regado à família unida, certa de que minhas fontes eram inesgotáveis.
Existiam nativos que montavam pequenas barracas cobertas de palha ao lado das estradas de acesso às praias e passavam a vender variados pratos à base de camarão no alho e óleo, no molho, feito vatapá, e isso fez a fama, a ponto de futuramente surgirem restaurantes simples, mas com grande movimentação. Os famosos “camarão de fulano”... ”Camarão de Sicrano”...
Toda tardinha os pescadores juntavam o fruto da pesca e bem cedo saiam para Natal. Passavam o dia gritando pelas ruas: Olha o camarão! o peixe! o siri! o goiamum! o caranguejo! E isso deu ao município de Nísia Floresta a alcunha de “Terra do Camarão!” Esse contexto deu origem à tradição que permite até hoje as pessoas de outras localidades virem para cá apreciar tal iguaria. Era muita fartura e riqueza, tanto nas águas quanto na agricultura. Mas mesmo assim os nativos eram simples demais. O progresso era uma coisa distante. Ir a Natal consistia numa aventura! A própria capital era lugar sem muita novidade.
A maior alegria das famílias era se reunir nos finais de semana para banharem-se em minhas águas e passear de canoa. As árvores ao meu redor era um verdadeiro parque de diversão. Normalmente as famílias chegavam ao amanhecer e passavam o dia ao sabor de água de pote e “liguento”. Eles eram felizes e não sabiam. Hoje quem entra em minhas águas sai se coçando e fica com a pele irritada. E tem muitos pescadores com sérias doenças de pele.
Lembro-me de uma época em que coisas comuns como um chinelo ou um pão eram grandes novidades em Nísia Floresta. Hoje todos parecem ricos. Estou cercada de parabólicas. O curioso é que exatamente muitos daqueles cujos bisavós, avós e pais se alimentaram do que eu tanto produzia, esqueceram-se do imenso valor que me davam. Hoje talvez eu não represente nada, pois talvez estejam ganhando muito dinheiro e não saibam mais o que é a fome.
Isso me incomoda, pois sempre dei sem exigir nada em troca. Hoje pareço ser a personificação da velha frase: “É cuspir no prato que comeu!”.
O tempo passou. As coisas foram se modernizando. Hoje os pescadores têm seguro. Acho que somente eu estou desamparada, sem aposentadoria, seguro, Bolsa Família... E ainda querem me fazer de fossa!
Hoje recebo esgoto, os dejetos e as águas servidas do meu velho amigo “Mipibu”, outra vítima de ingratidão. Esse famoso rio de linda história, verdadeiro tesouro encravado em resquício de mata atlântica, agoniza. Esquecem as autoridades que da sua fonte vem a água que abastece toda a cidade de São José do Mipibu.
Na realidade o rio não tem culpa, pois ele deságua em minhas águas cumprindo a sua missão natural. Mas foram das mãos humanas que saíram as galerias subterrâneas de concreto, oriundas de São José de Mipibu, as quais desembocam nele.
Os pescadores nisiaflorestenses não têm do que viver. É muito triste ver meu povo passando necessidade. É apavorante saber que homens e mulheres veem o sol nascer e se pôr acompanhados por uma garrafa de cachaça. Talvez eles se anestesiem para não ver a paisagem triste da minha agonia e da a sua própria miséria.
Em Nísia Floresta já começa a aparecer consumidores de crack, maconha e outras drogas. Existem distritos que margeiam minhas águas com pontos de drogas. Vejo tudo isso com lágrimas nos olhos, pois não posso fazer nada.
Não pense que sou exagerada, mas os problemas sociais como esses e outras mazelas decorrem da minha decadência. A minha ruína significa a amplitude da miserabilidade em todos os seus aspectos no meu município.
Volto a perguntar: onde estão as autoridades mipibuenses, nisiaflorestenses e natalenses que em pleno século XXI, em plena Àrea de Proteção Ambiental, em pleno solo onde existe o Instituto Chico Mendes, em plena Mata Atlântica, não enxergam os atentados que sofro diariamente e os danos sociais decorrentes disso?!
Será que enxergar e acabar com isso compete meramente às autoridades mipibuenses e nisiaflorestenses?!
E você, o que pensa disso?!
Aguardo a sua ação, afinal ainda é tempo, mas se você demorar eu morrerei, pois eu própria não posso fazer nada por mim.
Aí será tarde e seus filhos e netos não me conhecerão!
Mas lembre-se: a minha morte significará muitas mortes!!!
Um grande abraço!
Lagoa Papary
Sou filha da Lagoa do Bonfim, que se chamava “PUXI”. Mas prefiro não traduzir essa palavra condenada pelos capuchinhos. Sempre fui encorpada. Nasci no seio de uma família imensa. Tenho muitas irmãs, Papeba, Papebinha, Ferreira Grande, Ferreirinha, Urubu, Escura, Lagoa Seca, Carcará, Arituba, Cavalos, Pium, Amarela, Ilhota Lodo, Sítio, Dourada, Alcaçuz, Tacho, Jabuti, Hiola, Redonda e Redondinha, Carnaúba, Teixeira, Anjos, Custódia dos Negros e Peixe, embora algumas são adotivas.
Tenho vários primos em forma de pequenos rios no centro da cidade, no Porto, na Ilha, na Boacica, em Pirangi, Alcaçus, Pium, Cururu, na Hortigranjeira, enfim estou indiretamente em todo o município.
Sobre a minha idade, prefiro não dizer, mas só para dar uma pista, eu já existia muito antes de os índios chegarem por aqui. Já fiz a alegria de muito índio e índia que viviam nas minhas matas ciliares, pescavam, andavam de canoas e se banhavam em minhas águas.
Das minhas entranhas saíam infindáveis peixes de quase trinta quilos. Fui berço de milhares de goiamuns, carangueijo-sá, siri, camarão, inclusive Pitu, dentre uma vasta micro-fauna.
Sou a lendária lagoa Papary, d’antes Paraguaçu. Sou o amplo reservatório das águas do Trairí, berço das águas oriundas do inverno sertanejo, onde pequenos riachos correm dos tabuleiros arenosos, dando origem a essa imensidão de águas que se interligam com outras lagoas e rios, como o velho Cururu que desembocam no mar.
Desde que os portugueses começaram a andar por esses rincões meu nome original, Paraguaçu, passou a ser documentado na história. Começou pela cartografia de Marc Grave em meados da década de 1640. E antes disso eu já era conhecida em Portugal. O tempo passou e, em 1810, o famoso viajante inglês, Henry Koster, visitou-me quando minhas águas chegavam até o Porto.
Em seu livro “Viagem ao Nordeste do Brasil” ele relata que ficou encantado quando viu os pescadores chegando com as canoas abarrotadas de peixe, me comparado ao Mercado de Billingsgate, na Inglaterra, por minhas águas piscosas. Fui cantada em prosa e verso por autor anônimo que me dedicou bela poesia centenária, evocando a lenda de Jacy e Guaracy; citada por inúmeros viajantes europeus em documentos antiquíssimos.
Sempre fui considerada deslumbrante, misteriosa e acolhedora. Essa lenda, “do arco da velha”, nasceu quando passaram a me chamar de Papary, e aos poucos esqueceram que fui Paraguaçu. Se você não a conhece veja a letra:
Contava-se em Papari
A lenda de uma sereia;
Era a história de Jaci,
Jovem tapuia da aldeia.
Jaci formosa e catita,
Filha do chefe Aribó
Era a índia mais bonita
Do Vale do Capió.
Amava com amor ardente
Guaracy jovem guerreiro,
Cujo peito igualmente
Nasceu um afeto primeiro
Sozinho na solidão
Guaracy vagava a toa,
Ora ao redor da Caiçara,
Ora ao redor da lagoa.
Certa vez quando pescava
Tentando esquecer as mágoas,
Ouviu que perto cantava
A voz de Jaci nas águas.
A delirar, Guaracy.
Na lagoa mergulhou
Seguiu a voz de Jaci
E a tona não mais voltou.
Hoje esta lenda triste
Quem se dispõe a cantar
Vê quanto mistério existe
Entre a lagoa e o mar.
É uma estória triste, não? Pelo jeito foi escrita no período do Romantismo. Guardo lembranças lindas, tristes e algumas aterrorizantes. Ainda me recordo quando vi, em silêncio, Jacob Rabbi passar por essas veredas. Logo após a Chacina de Cunhaú, vi quando seu grupo passou por aqui, rumo a Barra de Tabatinga para a segunda chacina. Poucos nisiaflorestenses sabem desse episódio histórico. Era noite de lua cheia e as sombras asquerosas daqueles assassinos ainda tocaram-me entre os juncos.
Testemunhei homens brancos de olhos azuis cortando uma linda espécie que existia em abundância por essas matas ciliares. Lembro-me de um dia que só dessa região saíram 40 navios franceses repletos de pau-brasil.
Sempre fui muito limpa. A própria fauna aquática que existia em mim se encarregava dessa limpeza. Minhas águas sempre foram puras e cristalinas. Às vezes eu ficava turva, pois a Caiçara que tanto me amava, me abraçava por completo, deixando-me ora salgada, ora doce, ora salobra.
Sabe o que significa Caiçara? Não?!! Para que todos entendam precisamos nos reportar ao descobrimento do Brasil: Quando os portugueses chegaram ao Nordeste encontraram o nativo indígena e, através de uniões amorosas, se misturaram. Tempos depois, veio o africano e mais um ingrediente étnico-cultural entrou na mistura. Nasciam os caiçaras, uma população tradicional intimamente ligada à natureza e seus ciclos, que trabalhavam para o sustento cultivando roças, extraindo frutos e lançando-se à caça e à pesca.
A palavra “caiçara” tem origem tupi-guarani. “Caa” significa pau, mato; “içara” quer dizer armadilha. Caiçara é um tipo de proteção feita de galhos e varas que os índios usavam em volta de suas casas ou para pescar. Com o tempo, a palavra passou a ser usada para identificar o povo litorâneo, mas hoje ninguém se recorda mais disso. Os homens parecem interessados em outras coisas.
Minhas águas sempre atraíram galinha d’água, pinto d’água, marreco, xexéu, rolinha, galo de campina, bem-te-vi, tetéu, sabiá, concrix, carcará, lavadeiras, gavião e tantas outras aves. Saciei a sede de muito tatu, tijuaçu, jacaré, cotia, coelho-do-mato, preá-do-mato, raposa, guaxinim, timbu e tantos outros animais. Era uma riqueza. Isso parecia o pantanal.
Mas, continuando o que eu falava, sempre dei alegria aos nativos. Das minhas águas saiam incontáveis centenas de quilos de peixes e camarões durante a festa dos Pescadores, em setembro. O pessoal do Porto fazia barracas, havia celebrações, festa social com muito forró original. As casas eram todas de palha. Tinha até o famoso dízimo-do-peixe. Foi um tempo que deixou saudades.
Durante incontáveis invernos sempre recebi as águas do sertão. Essas águas trouxeram lentamente muita terra que foi me assoreando aos poucos. Em 1974 houve uma enchente que ficou na lembrança de muita gente. A famosa “cheia de 74”. A força das águas rompeu a BR 101, nas proximidades de São José de Mipibu, deslizando em mim toneladas de barro que elevava a pista.
Existia uma barragem em Georgino Avelino. Ela também se rompeu me enchendo de barro e entulhos. A partir daí nunca mais fui a mesma, embora ainda não era poluída por dejetos. Antes eu era interligada com os rios de toda a região de Currais a Genipapeiro, chegando rente à estrada de acesso a tais distritos. Mas fui me reduzindo e me distanciei do Porto, principalmente. Muita área que era só água hoje está tomada por aninga, pasta e aguapé. Todo o meu leito está cheio de terra vinda de outros rios e de algumas cidades potiguares, pois como suas margens estão desmatadas essas terras ficam soltas e a cada chuva deslizam para os rios até o ponto final, que, por ironia, antes de chegar ao mar, sou eu. Num dos meus pontos mais fundos formou-se um câncer em forma de um gigantesco banco de areia, maior que um campo de futebol. Parece uma ilha vulcânica.
Minha micro-fauna e flora aquática estão quase totalmente destruídas devido a essas agressões. Os meus plânctons nem se fala. É por isso que não tenho mais gerado tantos peixes e crustáceos como antes, pois essa fauna se alimenta da minha micro flora e fauna. A vegetação do mangue é minha verdadeira muralha de proteção, muito antes da mata ciliar. Mas, ao longo dos anos vem sendo cortada para a construção de casas de taipa dos próprios nativos, além de outras finalidades.
Eu pensava que com o advento da alvenaria isso se acabaria, mas agora apareceram os viveiros e minhas margens mais parece um descampado. O pouco que restava desse micro-ecossistema está morrendo lentamente devido aos produtos químicos que estão usando. Estão jogando um líquido esquisito nas minhas margens e ele mata tudo que é vivo, seja animal ou vegetal. Em fração de segundos os lambarizinhos sobem e apodrecem por ali mesmo. Minhas imediações fedem como o Tietê. Pelo que vejo, se os fatos continuarem como estão, serei tal qual esse rio paulista.
Se minhas margens ficarem savanizadas estará decretada a minha morte e as consequências serão catastróficas para todos. E lembre-se que meu caso é mais grave, pois estou sobre os aquíferos Aluvião e Barreiras, um dos maiores do Rio Grande do Norte. Isso entra na sua cabeça?! Você já analisou a gravidade?!
Confesso que estou muito triste, pois ouço muitas lamúrias, principalmente de pescadores, de pessoas aficionadas por ecologia, mas ninguém age. Onde estão as autoridades, onde estão os amantes da natureza, os estudantes de ecologia, de turismo, enfim as camadas pensantes do meu município?!
Para quem tem memória curta, lembro que sou aquela que matou a fome dos seus antepassados, numa época em que tudo era mais difícil. Quando não existia Bolsa Família, nem aposentadoria tão fácil como atualmente. Sou aquela que representou a única fonte de alimentação da sua família, numa casa de taipa ou de palha. Lembra-se?!
Sou aquela que enchia os cestos de peixe, pitu e carangueijo para os seus avós e pais, os quais chegavam em casa felizes, entregavam o fruto da pesca às esposas. Estas se sentavam nos batentes das portas ou mesmo no chão, junto das bacias repletas do pão de cada dia para prepará-los.
À noite a mesa era farta. Do fogão de lenha saia bem quentinho inhame, fruta-pão, batata assada, macaxeira acompanhada de peixe frito ou assado, camarão, caranguejo, goiamum, siri, café e muita fartura. Tudo isso regado à família unida, certa de que minhas fontes eram inesgotáveis.
Existiam nativos que montavam pequenas barracas cobertas de palha ao lado das estradas de acesso às praias e passavam a vender variados pratos à base de camarão no alho e óleo, no molho, feito vatapá, e isso fez a fama, a ponto de futuramente surgirem restaurantes simples, mas com grande movimentação. Os famosos “camarão de fulano”... ”Camarão de Sicrano”...
Toda tardinha os pescadores juntavam o fruto da pesca e bem cedo saiam para Natal. Passavam o dia gritando pelas ruas: Olha o camarão! o peixe! o siri! o goiamum! o caranguejo! E isso deu ao município de Nísia Floresta a alcunha de “Terra do Camarão!” Esse contexto deu origem à tradição que permite até hoje as pessoas de outras localidades virem para cá apreciar tal iguaria. Era muita fartura e riqueza, tanto nas águas quanto na agricultura. Mas mesmo assim os nativos eram simples demais. O progresso era uma coisa distante. Ir a Natal consistia numa aventura! A própria capital era lugar sem muita novidade.
A maior alegria das famílias era se reunir nos finais de semana para banharem-se em minhas águas e passear de canoa. As árvores ao meu redor era um verdadeiro parque de diversão. Normalmente as famílias chegavam ao amanhecer e passavam o dia ao sabor de água de pote e “liguento”. Eles eram felizes e não sabiam. Hoje quem entra em minhas águas sai se coçando e fica com a pele irritada. E tem muitos pescadores com sérias doenças de pele.
Lembro-me de uma época em que coisas comuns como um chinelo ou um pão eram grandes novidades em Nísia Floresta. Hoje todos parecem ricos. Estou cercada de parabólicas. O curioso é que exatamente muitos daqueles cujos bisavós, avós e pais se alimentaram do que eu tanto produzia, esqueceram-se do imenso valor que me davam. Hoje talvez eu não represente nada, pois talvez estejam ganhando muito dinheiro e não saibam mais o que é a fome.
Isso me incomoda, pois sempre dei sem exigir nada em troca. Hoje pareço ser a personificação da velha frase: “É cuspir no prato que comeu!”.
O tempo passou. As coisas foram se modernizando. Hoje os pescadores têm seguro. Acho que somente eu estou desamparada, sem aposentadoria, seguro, Bolsa Família... E ainda querem me fazer de fossa!
Hoje recebo esgoto, os dejetos e as águas servidas do meu velho amigo “Mipibu”, outra vítima de ingratidão. Esse famoso rio de linda história, verdadeiro tesouro encravado em resquício de mata atlântica, agoniza. Esquecem as autoridades que da sua fonte vem a água que abastece toda a cidade de São José do Mipibu.
Na realidade o rio não tem culpa, pois ele deságua em minhas águas cumprindo a sua missão natural. Mas foram das mãos humanas que saíram as galerias subterrâneas de concreto, oriundas de São José de Mipibu, as quais desembocam nele.
Os pescadores nisiaflorestenses não têm do que viver. É muito triste ver meu povo passando necessidade. É apavorante saber que homens e mulheres veem o sol nascer e se pôr acompanhados por uma garrafa de cachaça. Talvez eles se anestesiem para não ver a paisagem triste da minha agonia e da a sua própria miséria.
Em Nísia Floresta já começa a aparecer consumidores de crack, maconha e outras drogas. Existem distritos que margeiam minhas águas com pontos de drogas. Vejo tudo isso com lágrimas nos olhos, pois não posso fazer nada.
Não pense que sou exagerada, mas os problemas sociais como esses e outras mazelas decorrem da minha decadência. A minha ruína significa a amplitude da miserabilidade em todos os seus aspectos no meu município.
Volto a perguntar: onde estão as autoridades mipibuenses, nisiaflorestenses e natalenses que em pleno século XXI, em plena Àrea de Proteção Ambiental, em pleno solo onde existe o Instituto Chico Mendes, em plena Mata Atlântica, não enxergam os atentados que sofro diariamente e os danos sociais decorrentes disso?!
Será que enxergar e acabar com isso compete meramente às autoridades mipibuenses e nisiaflorestenses?!
E você, o que pensa disso?!
Aguardo a sua ação, afinal ainda é tempo, mas se você demorar eu morrerei, pois eu própria não posso fazer nada por mim.
Aí será tarde e seus filhos e netos não me conhecerão!
Mas lembre-se: a minha morte significará muitas mortes!!!
Um grande abraço!
Lagoa Papary
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