Eventualmente ouvimos
pesquisadores, estudiosos e até mesmo pessoas comuns lastimando o desaparecimento, a diluição e descaracterização de alguns elementos da cultura popular nordestina: festividades folclóricas, festas juninas e eventos similares. Esses insights ocorrem quando é observada a
ausência, o desaparecimento ou substituição de certas manifestações folclóricas, como por
exemplo, os grupos de forró pé de serra, os violeiros, as quadrilhas juninas, danças, a festa que deixou de acontecer em certo bairro, os hábitos
de determinada comunidade, aquelas palavras faladas pelos mais velhos, alguns ditos
populares, o vendedor de beiju, a mulher que fazia cestos, a ‘louceira’, a
benzedeira... Muito das coisas nordestinas vem perdendo a sua cor.
Parte considerável da
juventude vê as festividades juninas e os elementos folclóricos com certo desprezo, principalmente quando
conservam intactas a sua originalidade. Casos desse tipo podem ser constatados dentro
das próprias famílias onde pais ou avós participam de grupos folclóricos, mas os filhos não dão continuidade. Ao mesmo tempo, enquanto o pai ouve Luís Gonzaga, os netos ouvem Luan Santana.
Nota-se maior
aceitação quando se trata de grupos parafolclóricos, certamente pela diluição
de muitas de sua originalidade, a qual parece não exercer o
mesmo encantamento do passado. A impressão que se dá é que a juventude está
mais atraída pela plasticidade moderna aplicada aos folguedos, além de não
demonstrar receptividade aos atores originais, os quais, normalmente são
pessoas humildes, desprovidas de vaidades de modo geral.
Há uma tendência da juventude em preferir essa moçada sertaneja do sudeste e centro-oeste, cujos artistas nordestinos são substituídos. É o que percebo. Pagam 1000 reais para a banda de forró local e 100 mil para o sertanejo. Isso é muito estranho. Uma instituição pública que gere as contratações de fora não pode achar isso normal, nem deixar gostos pessoais de funcionários despolitizados - ou até mesmo analfabetos de sua própria cultura decidir quem vem para as festas juninas ou não. Certa vez fiquei sem acreditar quando vi, em São José de Mipibu, Hebe Camargo, Zezé de Camargo e Luciano. É surreal. Não é proibido ser fã deles, mas não combina com o momento. E Hebe? Hebe é a essência da coisa caipira de São Paulo interiorano, amiga de Mazzaropi e cia ltda. Maravilhosos, mas tudo a ver com os paulistas.
Agora, no aspecto do Folclore, normalmente os grupos
parafolclóricos são oriundos de instituições culturais organizadas,
universidades e escolas, cuja maioria dos atores não descendem de brincantes
originais de algum folguedo. Esses grupos, quase sempre, recriam a
plasticidade com materiais modernos, que soam “agradáveis” aos olhos da
juventude, em detrimento da rusticidade dos elementos usados por grupos
originais. Essas constatações servem de termômetro, pois também revelam facetas
de preconceito.
Acabamos de
sintetizar uma observação sobre o modo como boa parte da juventude brasileira
vem entendo e trabalhando a sua cultura, e como os órgãos públicos dos municípios e do estado vem agindo, no aspecto de trocar os artistas nordestinos (principalmente locais) por sertanejos do sudeste e centro oeste. Mas existe um fenômeno muito mais forte e que
leva grupos folclóricos e elementos afins à extinção, como veremos adiante.
Muitos descendentes
de brincantes de alguma manifestação folclórica sequer admitem ouvir falar da prática
folclórica dos próprios parentes pelo fato de ter nascido num lar evangélico,
ou ter aderido posteriormente alguma religião evangélica, outros, por
entenderem-na como coisa antiquada, portanto ultrapassada.
As pessoas comuns - “povão”
- que gostam de folclore - normalmente se comportam com certa nostalgia,
buscando explicações para essa descaracterização, mas aqueles que lidam diretamente com
alguma atividade folclórica, sabem que nas últimas décadas algumas religiões
evangélicas vem promovendo a sua decadência gradual. As coisas do Nordeste sofrem forças contrárias oriundas de vários aspectos, como vemos. Umas são mais poderosas, outras menos, mas existe essa força que enfraquece as coisas nordestinas. Isso se piora ainda mais quando a coordenação de grupos folclóricos ou os próprios brincantes são
aqueles que deixam a sua antiga religião – ou a sua não-religião – para abraçar
doutrinas evangélicas. Por mais que se perceba a abnegação dos responsáveis por
tais grupos, as dificuldades para a continuidade são muitas. É uma soma de fatores que trabalham contra as coisas do Nordeste.
É importante
ressalvar que ao se fazer essa constatação não se quer condenar as religiões
evangélicas que não toleram o folclore, mas registrar um fenômeno concreto
promovido por elas. Isso é fato. A propósito sequer serão mencionadas as denominações
religiosas mais fundamentalistas nesse sentido. Até porque como grande admirador das coisas do Folclore, conheço inúmeros brincantes que abandonaram os folguedos em que brincavam ou geriam, alegando que havia "aceitado Jesus". A partir daí passam a alegar que as coisas do Folclore são mundanas. Porém, o mais curioso e contraditório é que os próprios evangélicos, ao menor barulho na rua, são os primeiros a parecer para ver. Observa-se que é pecado praticar, mas não é pecado ver. Seria isso?
Pois bem, juntando o desprezo ou interferência equivocada por parte do poder público no trato com a
cultura local com a questão religiosa o resultado é gradual descaracterização da nordestinidade. Daqui a pouco as quadrilhas juninas vão ser sertanejas, ao som de Luan Santana, Michel Teló e por aí adiante. Daqui a pouco o São João do Nordeste vai ter no palco só artistas do eixo Sudeste/Centro-Oeste, e no meio deles vão chamar, como convidado especial, Elba ramalho, ou seja, o mínimo vai ser reservado para o Nordeste.
O poder público, ao
ignorar, ou desprezar intencionalmente, ou diminuir a presença das coisas do Nordestes em seus festejos, poderá até dizer que promoveu lazer a seu povo, mas esse mesmo poder público precisa saber que ele está sendo responsável pela degradação da cultura do seu próprio povo, e isso é um ato de corrupção. É aí que perguntamos: cadê os artistas? Cadê os protestos? Por que se calam? Cadê as pessoas comuns das cidades? Estão entrando na onda da descaracterização. Querem Elba ou Hebe? Querem Zezé ou Zezo? Ah! Esse é do brega! Mas foi só para rimar. Lembremos que ele é nordestino (antes ele!).
Pois então, no tocante às manifestações folclóricas, as autoridades, alienadas e descompromissadas até podem dispersar os brincantes de folguedos folclóricos, podem até silenciar alguns, mas não expurgará neles o talento
nem a possibilidade de uma revitalização a qualquer momento. Da mesma forma são as igrejas evangélicas, elas jamais destruirão as manifestações folclóricas do Nordeste, em especial, nem as manifestações culturais de matrizes africanas.
Para entender essa
constatação é necessário ir a fundo e analisar quem são os cidadãos que
protagonizam - ou protagonizavam - as festividades populares e qual o seu
perfil. Seriam evangélicos, católicos, ateus, ricos, pobres, brancos, negros,
índios, estrangeiros? ... Estariam os brincantes concentrados em áreas
periféricas, nobres, no litoral, no interior do Brasil, nas capitais? ... Quem
são os atores das manifestações mais significativas do folclore brasileiro?
BRINCANTE DO "BUMBA-MEU-BOI" DE SÃO LUIZ - MA |
Constata-se,
facilmente, que não é possível encontrar evangélicos integrando ou coordenando grupos
folclóricos, como o Boi-de-Reis, o Pastoril, a Lapinha, o Coco de Roda, o Bambelô
etc. A maioria - se não toda - entende que a partir do momento que um cidadão
adere alguma religião evangélica, “torna-se uma nova pessoa”, deixando de lado
o que passa a chamar de “coisas mundanas”. Alguns são fundamentalistas e vão
mais adiante, interpretando o folclore como “coisa do demônio”, haja vista o
seu universo fantástico, lendário e mítico, no qual desfilam seres inumanos, capetas,
bruxas, lobisomens... portanto “merecedores de desprezo” e dignos de serem
combatidos.
Observe que esse
fenômeno protagonizado pelos avangélicos interfere negativamente na cultura
popular. Nesse aspecto, diante de exemplos de grupos folclóricos que recebem
esse tratamento, destaca-se o drama “O Pirão-Bem-Mole”, da Comunidade do Porto,
e um grupo de Pastoril, do distrito de Campo de Santana, os quais integram o
universo folclórico do município de Nísia Floresta, Região Metropolitana de
Natal, distando 36 Km, no estado do Rio Grande do Norte.
O referido município, detentor de um
patrimônio material e imaterial admiráveis, é exemplo clássico a engrossar o
caldo da depredação. O Drama “Pirão Bem
Mole” é encenado por uma dupla: dona Raimunda, atualmente com 97 anos, que apresentava o folguedo até dois anos
passados, e Salete, de 63 anos. O drama exibido
de forma cantada e dançada, conta a história de uma senhora de 200 anos (é isso
mesmo: duzentos anos!), a qual, ignorando a avançada idade, diz ao filho que
deseja se casar. O rapaz a reprova, considerando errada a sua atitude. A
discussão entre mãe e filho perpassa toda a canção com enredo hilário, levando
o público a gargalhadas.
O autor do presente estudo
incentivou longamente a exibição do referido drama – que já esteve quase
extinto antes de 1992 – tentando sensibilizar alguns filhos e netos a
continuar a tradição, mas não logrou êxito, pois os seus descendentes de
convívio diário tornaram-se evangélicos.
O AUTOR DO TEXTO E O GRUPO "PIRÃO-BEM-MOLE" (RAIMUNDA E SALETE) |
A outra situação
refere-se ao grupo de Pastoril, do distrito de Campo de Santana, que era coordenado
pelo professor Gisaldo do Nascimento. A referida manifestação folclórica,
formada por moças da localidade, alegrou durante vários anos as festividades
locais, sofrendo lenta decadência que culminou com a sua dispersão.
O referido professor alegou
que vários fatores colaboraram com o fim do grupo, sobressaindo-se o fato de
algumas jovens terem se tornado evangélicas, outras, por proibição dos pais que
se tornaram evangélicos e, por último, o desencantamento em virtude do encantamento
promovido pelos modismos atuais, novos estilos musicais, enfim a mudança de
pensamento da juventude sobre vários assuntos etc. O professor Gisaldo alegou que
se esforçou para reunir o grupo por diversas vezes, mas os fatores negativos
sobrepujaram a causa.
ESSE É UM "PASTORIL" DE OUTRO MUNICÍPIO, POIS NÃO ACHEI IMAGENS DO ACIMA CITADO - MAS ERA ALGO MUITO SEMELHANTE, PROTAGONIZADO POR MOÇAS E ADOLESCENTES |
Após os dois exemplos
acima, analisemos outro fenômeno. Pode
parecer equívoco, mas o mesmo é motivado pelo Poder Público Municipal. Nesse caso vou recorrer ao município de Nísia Floresta, a 42 kms de Natal/RN. O
fenômeno é nada mais que a mudança de uma data comemorativa, cujo evento
principal é arrancado do seu contexto original e jogado num contexto absolutamente
sem nexo.
Essa prática recebe o
nome de “fora de época”, por exemplo, “Carnaval fora de época”, “São João fora
de época” etc. Mas nesse caso nos ateremos ao contexto junino, especificamente
em Nísia Floresta onde tal “modismo” foi adotado há pouco tempo. O evento, no caso, é um dos mais originais do
Nordeste brasileiro, com forte carga de tradições que se desenham pela musicalidade, as danças, os frutos de forró, a gastronomia do milho, os figurinos.
A cidade citada -
Nísia Floresta - como não bastasse, mais uma vez protagoniza esse fenômeno. Nesse
caso o advento do “fora de época” não é um grupo folclórico, mas um evento
público tradicional, denominado originalmente de “São João do Interior”.
Criado em 1997, pelo poder
público desse município, a referida festa se desencadeava justamente no mês
nacionalmente junino. Iniciava-se no dia 12, data de Santo Antonio (o santo
casamenteiro), e encerrava-se no dia 24 do mesmo mês, data de São João
(batizador de Jesus), cuja deferência popular é ainda mais forte.
Nota-se que as
festividades ocorriam no auge tradicional dos folguedos, considerando que mesmo
depois de encerrada a festa promovida pela prefeitura, o clima junino
continuava até o dia 29, data de São Pedro (o dono da chave do Céu), haja vista
que as festas juninas, na realidade, compreendem o mês de junho apenas. Vinha até cantora de forró do Rio de Janeiro (vejam a ironia!) Estou me referindo a Soledade, uma artista nisiaflorestense que migrou para o Rio de Janeiro na década de 70, estudou música, sempre se apresentou no Centro de Tradições Nordestinas, em São Cristovão, enfim é uma forrozeira de ponta. Até no Faustão e no Fantástico já cantou.
Em 2005, a Prefeitura
Municipal de Nísia Floresta, sob outra administração, mudou o nome do evento
para “Festa do Balão” e o transferiu para o mês de setembro, período em que
instituições públicas, pela lógica, se preparam para os festejos alusivos ao aniversário da
Independência do Brasil, e não as festas juninas. Isso já não é bom, pois sai do clima junino. No ano passado a “Festa do
Balão”, sob terceira administração, ocorreu nos dias 1, 2 e 3 de setembro. A única vantagem desse fora de época foi a ausência de coisas sertanejas do Sudeste e Centro Oeste. Menos mal.
CARTAZ DA "FESTA DO BALÃO" DE 2013 |
A referida festa -
quando da sua origem - primava pela valorização de elementos puramente juninos,
desde a decoração com as tradicionais bandeirinhas, à animação motivada por quadrilhas
e grupos de forró “pé de serra”. Nas primeiras horas da noite apresentavam-se
os grupos musicais do próprio município e cidades vizinhas.
Uma das atrações
eventuais dessa festa, como já expus, era a cantora nisiaflorestense Maria da Soledade, a qual
fez fama no Rio de Janeiro cantando forró. A artista chegou a se apresentar
durante duas vezes no Programa do Faustão, na Rede Globo e até hoje anima
grandes eventos na “cidade maravilhosa”, sendo presença constante nos palcos da
famosa Feira de São Cristóvão. No auge da festa “São
João no Interior” exibiam-se bandas atuais de forró para equilibrar os gostos,
sem que a originalidade e os artistas da terra fossem relegados.
Irônico demais da parte da Prefeitura Municipal, pois um órgão que deveria promover
e incentivar uma festa popular – no seu período original – muda a data – e
furta-lhe as suas características originais meramente com intenções político-partidárias, considerando a aproximação do mês de eleição, quando a festa "junina" vira vitrine de caras e bocas e apertos de mão intencionais. É o que resta ao povo. Os políticos, salvas raríssimas exceções - não estão nem aí com descaracterização da essência da cultura nordestina. Eles querem voto, poder e confundir os cofres públicos com suas contas bancárias. Ao povo, circo e pão. Antes fosse, de fato, circo, literalmente falando (adoro circo!).
Normalmente as pessoas criticam o governo, a prefeitura etc. Mas governo e prefeitura não é uma coisa que está lá em Marte. As pessoas precisam abolir essa ideia deturpada sobre estado e prefeitura. São os funcionários públicos, analfabetos de sua própria cultura, fãs de Zezé de Camargo e Luciano, Luan Santana, Michel Teló que entram em contato com os empresários deles. Não é o estado nem a prefeitura que o fazem. As prefeituras e governos estão cheias de gente sem mínima condição intelectual de pensar as coisas com conhecimento de causa, com propriedade.
Mas, continuando as reflexões e voltando para o público evangélico que diz que festa folclórica é coisa do mundo, que pessoas salvas devem estar em ambientes que juntem outras pessoas salvas. Curiosamente, a
referida festa ocorrida em Nísia Floresta, que pela lógica “mundana” não deveria contar com o público
evangélico, pelo fato de os mesmos não enxergarem o evento com bons olhos, tem neles os grandes frequentadores e apreciadores, salvas raríssimas exceções. Nota-se nesse caso um fenômeno esdrúxulo,
ou seja, os evangélicos não podem promover as “coisas profanas”, mas ironicamente
podem prestigiá-las e admirá-las. Nas palavras de Karl Marx "A prática é uma e o discurso é outro".
Se toda pessoa
pudesse assistir as festividades juninas em cada região do Brasil, constataria
serem incomparáveis às do Nordeste. Enquanto nos estados do Sul, Sudeste e
Centro-Oeste do Brasil, as festividades juninas nada lembram a beleza,
originalidade e criatividade existentes unicamente no Nordeste - em plena Nísia
Floresta, município nordestino bicentenário e repleto de riquezas folclóricas -
o poder público local adere a um modelo equivocado de comemorar o São João.
Como não há nexo
nessa transferência de data, resta-nos questionar o que motiva os governantes a
fazê-la. Não é somente Nísia Floresta que faz isso. Citei-a como exemplo que vi. Há uma explicação, obviamente, mas não parece justa, pois não é
ocasionada por fenômeno histórico ou algo convincente, mas, infelizmente, pelo lado
destrutivo da política partidária.
O fenômeno de mudar as
comemorações juninas de junho para setembro, mês da Independência, no qual
ocorrem desfiles cívicos e eventos afins, permite
ao povo a prática despercebida de matar a sua tradição original. Nota-se claramente o antagonismo dessas duas datas
comemorativas e a notória incapacidade de fundi-las, até porque não há encantamento
nem graça em associá-las. O advento do “fora de época”, ao atender a interesses
políticos e econômicos equivocados, acaba significando uma prática
inconsequente, cujos causadores não se importam em prejudicar as tradições
folclóricas. Isso é corrupção.
A mudança pode até parecer
algo insignificante por consistir apenas numa transferência de data, mas tal
barganha traz fortes prejuízos para a cultura popular, haja vista que se
transfere uma festa, mas não se transfere as suas simbologias. Move-se uma data
mas não segue junto a magia das suas significações. O sentimento popular original,
cheio de riquezas vai se definhando paulatinamente por não receber a deferência
tradicional.
Municípios como Nísia Floresta, assim como outros municípios do Nordeste, trazem as festas juninas “no sangue”. Sabe-se, obviamente, que o povo não precisa de uma instituição pública para se sentir motivado a comemorar as Festas Juninas. Mas a partir do momento que as instituições públicas trocam os seus artistas por artistas sertanejos, transferem um evento típico de determinado momento para outro, aderem ao "fora de época", veem folguedso folclóricos se extinguindo por fatores religiosos ou falta de apoio, ISSO SE CHAMA CORRUPÇÃO.
Esse ato corruptor e injusto pode passar despercebido aos que não têm olhos para a cultura ou não a valorizam, mas é dano sem precedentes. Isso é preocupante e precisa sofrer resistência e protesto. Tal mudança
deseduca as novas gerações e lhes tira a oportunidade de vivenciar o encantamento
promovido pelo seu contexto original. Seja quais forem as interferências nocivas aos elementos de uma cultura (religião, mudança de data dos eventos tradicionais - "fora de época" - poder público formado por pessoas ignorantes etc, nada justifica e nada deve ser perdoado. Essas instituições e pessoas são autoras de terrível corrupção. Elas ainda pagarão por isso. Não é possível que não!
Essa selvageria contra a cultura nordestina ocorre porque a
nova geração absorve a nova proposta sem questionamentos, pois desconhece as
suas características originais. Para a maioria da nova geração não é
interessante contemplar o que ficou para trás, pois soa ultrapassado. No caso da
festa junina, mesmo que seja transferida para julho, agosto ou setembro, a
perda de sua essência é a mesma. Essa criançada e esses adolescentes que parecem sentir vergonha das coisas do Nordeste o fazem por causa dessa corrupção promovida pelas instituições públicas. Eles são vítimas. O erro está em não resistir.
As crianças e os
jovens se moldam naturalmente ao ambiente onde se desenvolvem e fortalecem os
seus laços sociais e culturais. A partir do momento que estão nesse contínuo e
equivocado processo, passam a entendê-lo como normal e obviamente irão perpetuá-lo
aos seus filhos. Diante dessa transfiguração, percebe-se a perca sofrida pela
cultura.
O mês de junho é uma riqueza, é um complexo de coisas do Nordeste: o forró, o baião, o xaxado, o xote, as
comidas típicas de milho, as fogueiras, ruas enfumaçadas, as bombinhas, os
cordões de bandeirolas, as promessas, as canções, as lamparinas penduradas nas
janelas, as simpatias, as quadrilhas matutas e estilizadas, e um sem fim de coisas.
Essas manifestações
espontâneas normalmente têm outros fatores que ampliam a alegria e a beleza do
momento: as chuvas ligeiras, os milharais espalhados pela zona rural, as
montanhas de milho transportadas em carroças e caminhões, despejadas nos
comércios ou nas ruas, onde o as famosas “mão de milho” são vendidas
incontinentes. Há quem diga que aguarda com ansiedade dois momentos imperdíveis
do ano. O Natal, por seu mistério, e o mês de junho, por sua magia.
Diante do fenômeno de
mudança de data, surge o questionamento: qual o motivo de se transferir uma
festa junina para um período totalmente fora do seu contexto original? É exatamente nesse
momento que detalharemos o aspecto da política partidária e seus vícios, citado
anteriormente. A mudança de data visa única e exclusivamente atender os interesses
políticos/partidários dos governantes, haja vista a proximidade com o mês das
eleições que se dá em outubro. A festa, portanto, se transforma numa espécie de
palanque eleitoral.
Observa-se que essa
mudança visa tirar proveito na conquista dos eleitores, haja vista que uma parcela
considerável entende a sua cidadania como “pão e circo”. É justamente nessa
festa que desfila a representação do poder executivo, os vereadores, senadores,
deputados e governador (a) - todos visando a reeleição. A festa sai do campo do
folclore para o campo da politicagem, atingindo assim o seu tendencioso objetivo. E serão eles que se omitirão quando forem eleitos.
A festa, nesse caso,
é usada como instrumento de promoção de candidatos a cargos políticos. É até
compreensível tal encenação – à luz da ausência de uma educação crítica – não
fosse a injustiça cometida contra um momento tão significativo da cultura
popular.
Ninguém deve defender o engessamento da cultura. As coisas mudam, mas até isso é digno de reflexão. Mudar sem perder a essência. Essa é a questão. Por exemplo, trazendo a análise para as coisas do Folclore. Sabemos que alguns
grupos folclóricos deixam de lado pequenos detalhes de suas brincadeiras folclóricas por motivo justo, mas resistem quase que intactos. O folguedo
“Pau-Furado”, por exemplo, não usa mais o tronco de madeira tirado da mata, nem o couro de
raposa para a percussão por razões de preservação do meio ambiente. Seu lugar
foi ocupado pelo atabaque, ou usou-se um cano plástico, que é um instrumento industrializado, mas o efeito
do som é o mesmo.
O referido folguedo
originalmente usava lenha cortada nas matas para fazer uma fogueira que
esquentava o ‘pau-furado’, tornando o som mais audível. Não havia preocupação
com a preservação da natureza. Desse modo colaboravam com o desmatamento, inclusive
de madeiras nobres. Hoje, o grupo se serve de madeira de árvores frutíferas que
apresentam problemas - como cupins ou velhice - e exigem o corte.
Existem manifestações
que resistem há séculos intactas, outras, como o exemplo do “Pau-Furado”, necessitaram
de pequenas mudanças feitas com racionalidade. Pesquisadores e folcloristas
reconhecem a necessidade de interferências do tipo acima, desde que não cause
danos e não descaracterize a essência.
Essa linha de
pensamento não apregoa que não devem ser valorizados os grupos totalmente
descaracterizados, por exemplo, os grupos parafolclóricos ou as releituras, mas clama sobre
a necessidade do devido cuidado com a originalidade daquilo que se quer
promover como folclore tradicional. Muitos podem alegar
que outros fatores devem ser responsabilizados pela descaracterização
ou extinção de elementos da cultura popular, mas nenhum é mais forte que os casos acima analisados,.
Sabe-se que a mídia
exerce um poder indescritível sobre a juventude, e não há como reverter isso,
pois tal fenômeno não é inteiramente negativo. Informações de todo tipo chegam
instantaneamente aos jovens. As músicas exercem um poder viral em todas as
demais formas de comunicação. Junta-se a elas a questão da dança e da roupa (a
moda). É exatamente a
música, a dança e a roupa o ponto chave da questão. Os grupos folclóricos
trabalham com música, dança e figurinos diversos, os quais destoam anos-luz do
que se vê na mídia.
Tal modernidade
encanta a juventude de forma admirável. É mais fácil ver meninas e meninos
cantando, imitando e se propondo a dublar nas escolas e em ambientes promotores
da cultura as artistas Beyonce, Lady Gaga, Shakira, Madonna etc, que usando a
mesma energia para apresentar um “Pastoril”, uma “Lapinha”, um “Congo de
Carçola”, nos quais as canções, as roupas e as danças soariam “bizarras” diante
da sua formação educacional e cultural. E elas não podem ser apedrejadas por
isso, pois são fruto do meio. Falta quem lhes eduque.
Pode-se afirmar,
nesse caso, que o próprio povo acaba sendo promotor dessa descaracterização,
até porque é maioria. Mas quando se constata que esse povo reflete a educação
que recebe, e que nas escolas e nos ambientes culturais não se enaltece com
ênfase as raízes populares, não se pode atribuir responsabilidade tão somente ao
povo. Faz-se necessária,
portanto, a reeducação na juventude. Urge aos governantes assumir concretamente
a responsabilidade de preservar o seu patrimônio material e imaterial,
construindo com a juventude o devido zelo, respeito e identificação. E esses
governantes nunca devem abrir mão de comemorar as festividades culturais e folclóricas do seu povo, e de maneira certa.
Quando as pessoas são educadas a conhecer e se
identificar com as suas raízes, com certeza terão prazer em promovê-la. A
salvação do Brasil está em sua cultura. Se ela morrer, morreremos. Agora fica a pergunta: e você, artista, produtor cultural, empresário de artista, educador, folclorista, gestor etc. O que você está fazendo para salvar a sua identidade? Ou você não tem?
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