No interior da Mata da Bica as lavadeiras seguem o ofício secular (as fotografias coloridas aqui postadas foram feitas por José Amauri Freire). |
O texto que se
desenrolará abaixo é fruto de uma pesquisa que fiz em 2008, in loco,
com moradores das proximidades da “Mata da Bica”. Eu havia reunido uma porção
de anotações e transcrições de áudio, feitas depois de andar por alguns meses
por esse pedacinho de terra mipibuense. O chumaço grosso de papel estava
esquecido numa de minhas caixas velhas. Ontem reencontrei o material
e resolvi organizá-lo, receando que o pacote sambado pelo tempo continuasse
ignorado pela correia da vida.
Essa pesquisa não
revelará nada extraordinário, mas não deixa de significar um grãozinho de
areia na construção da história local. O que tem de inédito por aqui são apenas
reminiscências de alguns velhos moradores e sua relação com o referido lugar, contadas a mim através de sucessivas conversas, quando eu recorria à localidade, disfarçando a pesquisa em saborosas conversas com velhos e velhas. O
fato de os entrevistados serem idosos e nativos dá mérito ao registro
de suas memórias. Não se trata de um trabalho acadêmico e tampouco se propõe a
contar a história da Bica, mas trazer à luz nuanças da impagável memória da relação dessas pessoas aparentemente anônimas, moradoras na localidade.
Sabemos que esse
minúsculo bosque é resquício de Mata Atlântica e que a natureza se encarregou
de privilegiá-lo com muitos “olheiros” (ou “olhos d’água”) que dão origem ao
Rio Mipibu. Seus derredores são pincelados por uma sobra de árvores muito
antigas (talvez centenárias, segundo afirmam alguns ribeirinhos), plantas
aquáticas e não aquáticas, mas simpatizadas com a água. Há uma variedade de
parasitas e "trepadeiras" que dão ao local beleza singular. O cenário
é tão bucólico e aprazível que o visitante o queria eterno em sua janela.
Estamos cansados
de saber que nas imediações do Rio Mipibu existiu uma comunidade indígena com o
referido topônimo, o qual também se tornou o nome de batismo do próprio
município.
Rio Mipibu com "lavadeiras" e seus filhos perpetuando a tradição secular. (Créditos: STV-Brasil). |
Como sabemos,
desde os primórdios o homem fez morada próximo aos lugares onde existia água
perene. E não foi diferente nessa região. Depois dos nativos apareceram os
primeiros moradores brancos e mestiços para dar origem a Vila de São José do
Rio Grande, no século XVII. A água da "Bica" subia a ladeira íngreme
sob lombos de jumentos, jarras de barro ou cabaças carregadas na própria cabeça
dos nativos. Desse modo abasteciam as moradas, inclusive dos próprios frades
capuchinhos que comandavam os aldeamentos locais, evangelizando a população
nativa.
Nessa época o
vavavu de gente subindo e descendo a “ladeira do Japão”, também chamada
“ladeira do quebra c.” era incontinenti. “Aguadeiros” e “aguadeiras” transitavam
o dia inteiro, transportando água para consumo próprio e para venda. O
pagamento aos vendedores de água era por via de “patacão", ou seja, de
dinheiro, mas o “escambo” disputava o mesmo ônus, embora não usassem tal
denominação, obviamente”. A água era trocada por carne de sol, fato, queijo,
leite, mangaio, enfim com o que o interessado disponibilizasse e o
transportador aceitasse.
Antigos
Relatórios de Governos registram alguns episódios relacionados à Bica, por
exemplo, no ano de 1876 o governador da província do Rio Grande do Norte
autorizou a aplicação de três contos de réis para “melhoramentos” nesse espaço, que tinha utilidade pública. Era a “fonte local”, vamos dizer assim. Somente no ano de 1912, houve preocupação
governamental com a canalização dessas águas – à época com foros de cidade –
permitindo maior conforto aos moradores.
É inacreditável que o povo assista a isso em silêncio. O inúmeros protestos encabeçados por alguns cidadãos - dentre eles José Amauri Freire - parecem inaudível às autoridades. |
Foi instalado um
motor e uma bomba que impulsionava o preciso líquido para a parte alta da
cidade. Os canos eram de ferro. O reservatório ficava ao lado da Igreja Matriz
de Santana e São Joaquim, exatamente sobre uma parte do prédio da Câmara
Municipal. Até hoje o “feitio” da chamada “caixa d’água” se encontra ali. Tal
inovação consistiu num evento marcante para São José de Mipibu, pois extinguiu
a prática desgastante de carregar água por longo trecho de ladeira.
Um dos últimos
vendedores de água de São José de Mipibu – ainda vivo – é o famoso Mário (hoje
idoso e morador do Abrigo Anízia Pessoa). Esse cidadão entrou para o folclore
local devido a uma brincadeira. Quando as pessoas passavam por ele, gritavam
“olha a cobra”. Ele interagia, saltitando e rindo com seu modo peculiar. Seus
contemporâneos dizem que ele foi um homem bonito, ajudado pelo corpo
escultural, lapidado por anos sucessivos de “lata d’água na cabeça” e
o constante sobe e desce ladeiras.
Ao longo do tempo
a "Mata da Bica" tomou foros de “casa de banho” (conforme velhos documentos) e lavanderia, mas com
características distintas. Havia horário diferente para homem e mulher. Essas "casas de banho" eram literalmente banheiros públicos construídos para que a população se banhasse, nada mais. No
início represaram as límpidas águas com a ajuda de troncos de coqueiro e outros
tipos de árvores, permitindo que se formasse uma bela lâmina de água com
profundidade que tinha a altura de um homem adulto. As casinhas para troca de
roupa eram de palha de coqueiro e madeira rústica.
De acordo com A
Srª .OTACÍLIA MARIA DA SILVA, 72 anos, era comum alguns homens desrespeitar
as regras, “brechando” as mulheres e “fazendo coisas”. Segundo ela, quando isso
acontecia, dava muita confusão e logo diziam que “tinha tarado na Bica”. Nessas
ocasiões, alguns homens empreendiam buscas no local para colocar o pervertido
para correr, assim a coisa se acalmava.
Devido a grande
movimentação no local foi construída uma estrutura de alvenaria nos conformes
de como era o projeto rústico, conservando o reservatório, cuja água escorria
por galerias e canos de ferro. Fizeram-se banheiros fechados e locais
específicos para lavar roupa e tomar banho. Não há registro escrito sobre
quando se deu essa adequação mais civilizada ao local, mas pelas suposições de
antigos moradores, pode ser sido no final de década de 1940 para 1950.
Tomar banho de
bica é algo cultural em todo o Rio Grande do Norte. Observe que quem tem
oportunidade, improvisa um chuveiro no “oitão” da casa, no quintal, debaixo de
alguma árvore, enfim é parte do lazer de muitas famílias até hoje. Mas, à época
da antiga "Bica", isso não era privilégio apenas da "Bica".
Havia muitos banheiros particulares pela cidade, embora sem a exuberância do
local original. Quem quisesse se refrescar – ou mesmo tomar o necessário banho
do final da tarde – bastava pagar ao dono de algum “banho público”. Em Nísia Floresta resistiu até hoje uma "casa de banho", construída no século XIX pelo Coronel José de Araújo, então presidente da "Intendência da Vila Imperial de Papary". Embora o local foi modernizado, carrega o status de uma iniciativa governamental mais antiga do município. Era ali que todos se banhavam, buscavam água para suas residência e tomavam banho.
A movimentação da
população na "Bica" de Mipibu para fins de banho foi se tornando acanhada com o
passar do tempo, conforme o município tomava ares mais urbanizados e as
encanações hidráulicas chegavam às residências. De acordo com o senhor FRANCISCO CANINDÉ FERREIRA DE SOUZA, 51 anos de idade, “houve a época em que o banho de chuveiro era coisa de gente
rica. O pobre enchia as caixas de água que faziam dentro dos banheiros e
tomavam banho de 'cuité'. Alguns faziam chuveiro de lata, mas com o passar do
tempo até pobre tinha chuveiro bom”, finaliza o referido senhor.
No final da
década de 1960 o hábito de se tomar banho na "Mata da Bica" – nos
conformes originais – se extinguiu de uma vez. A estrutura de alvenaria foi
sendo depredada aos poucos. Por ali permaneceram apenas jovens que iam muito
aos finais de tarde e final de semana. Quem nunca deixou o lugar foram as
lavadeiras de roupa. Sucessivas gerações
cresceram sob aquelas árvores. O local, hoje, além de poluído, em quase nada
lembra o passado guardado nas lembranças de alguns poucos que ainda restam para
contá-lo.
Mas, independente
desses famosos banhos, como era o cenário da "Bica" anteriormente?
Qual era a sua vegetação? Como era a sua fauna? O que mais faziam os nativos
por ali? É isso que iremos saber agora.
Como sabemos, nos
séculos XVIII e XIX não existiam casas construídas tão próximas como hoje. Em
meados de 1850, chegou a São José de Mipibu um senhor português por nome de
PEDRO MOINHO, oriundo de Lisboa. Ele comprou uma grande propriedade, inclusive o trecho onde está a "Mata da Bica" e muitas terras no Sertão e
Seridó. Parte de sua família reside até hoje no local, exatamente às margens da BR 101.
Em 1905 o
lusitano doou à Intendência de Mipibu a área onde se localizava a "Mata da
Bica" para se transformar numa casa de Banho. Esse gesto nobre mostra a
visão social desse europeu, pois mostrou desapego e priorizou ceder um bem que
seria útil a todos. Após a sua morte, o filho JANUÁRIO MOINHO assumiu o comando
das propriedades da família.
Em 1965 o
prefeito da época, muito amigo do Sr. Januário, doou uma pequena data de terra
bem próxima à "Bica" à Sr.ª FRANCISCA MARIANO DA SILVA (com 76 anos
na data dessa entrevista). Naquela época não existiam leis que tratavam sobre essas questões ambientais, nem sobre o devido distanciamento de construções e rios. Aí começou a destruição. A partir dessa doação, outras pessoas foram se
instalando no local e dando origem ao cenário atual. “Quem chegava, construía
uma casinha de taipa ou palha e ficava. Foi assim que isso aqui tudo surgiu”,
disse dona Francisca.
Em conversa com o
Sr. JOAQUIM MANOEL DE SANTANA, 73 anos, ele disse: “Eu era rapaz. A gente
pulava das ‘arves’ e d’um paredão que batia aqui” (o depoente coloca a mão um
palmo acima da cintura para comparar a altura). “Aqui tinha ‘pé de pau’ da
grossura de um pneu de trator. Havia uma gameleira bem ali (mostra o lado
norte). Era uma marra de arvi”.
RAFAEL TERTULIANO
DA PENHA, 74 anos, contou que nada se compara ao que restou. “Tanto a largura e
a fundura e a força da água era outra... a água saia com força de dentro da terra. Uma coisa bonita que nunca mais volta.
Parece que era até mais frio o lugá”.
FRANCISCA
MARIANO, de 76 anos também narrou o seguinte: “Havia um pé de ingá bem grosso
bem ali. Pense num pé de pau querido. Os meninos viviam ali chupando ingá. Eu
era uma. Também tinha um pé de ‘goité’ grandão nesse canto. Era muito gostoso
viver ali. Eu nem era gente nessa época, era menina pitotinha, ia mais mãe. Ela botava roupa para
quarar e a gente passava o dia ali, brincando. Num tinha perigo nenhum”.
“Durante uma
reforma ocorrida no mercado público, há mais de 50 anos, cortaram muita mata da
"Bica". Toda a madeira foi tirada daqui. Ninguém pensava em preservar,
não. Eu acho que foi por isso que a água daqui baixou assim”, disse o Sr JOSÉ
DIAS DA SILA (87 anos).
Dona Francisca
contou que sua mãe, Iracema (in memorian) acordava bem cedo, arrumava o “cumê”
(comida), preparava as trouxas de roupa dela e das pessoas para as quais
prestava tal serviço e ia para a "Mata da Bica" com a filharada de
lado. Passavam o dia por ali. Enquanto dona Iracema lavava roupa, a meninada
brincava na água e nas árvores.
MELÃO SÃO CAETANO |
Ela conta que sua
mãe lavava roupa usando o “melão-São-Caetano” como se fosse sabão. Trata-se de
uma espécie de bucha que, esfregada na roupa, produz espuma que tinha efeito detergente, facilitando a
saída da sujeira do tecido. Todos usavam esse fruto para tal finalidade. Dona
Francisca também costumava fazer fogo e deixar a roupa fervendo para “largar
sujeira”. "O melão São Caetano também servia pra matar frieira nos animais e feridas nas pernas das pessoas", explica
Sua irmã mais
velha preparava a comida ali mesmo. Quase sempre faziam liguento de peixe, “mas
a gente também levava o ‘cumê’ pronto; também ia fruta, banana, manga... quando
a coisa era boa se levava um pedacinho de carne. Mas era uma vez na vida, pois
dava mais fato comprado na feira, galinha e cuscuz. O que levasse se comia. Era o dia inteiro que mãe
passava com os pés dentro dágua” – diz dona Francisca.
A água que você bebe pode até ser tratada, mas sobre ela desce a podridão de incontáveis chiqueiros de porcos |
Na década de 1970
a CAERN fez um poço no local. De acordo com a necessidade, eles ampliaram o
serviço e automaticamente fizeram poços com maior vazão. Talvez isso explique a
redução da lâmina de água do rio. É uma suposição minha. De acordo com um funcionário da referida
empresa é impulsionado 150.000 litros de água por hora para o reservatório
(2008). Aproveitando o assunto, um detalhe curioso ocorreu no Engenho Morgado, de propriedade do meu primo Tamires
Peixoto (in memorian). Havia ali um ‘olho d´água’ com uma vazão impressionante - a água borbulhava, revirando minúsculas pedrinhas brancas do fundo. Recordo-me que eu pulava no centro do olheiro e ficava como se levitasse, pois a força da água me jogava para cima. Mas secou entre 1999 e 2003. Muitos dizem que foi por causa o poço da
CAERN.
Ao longo dessa
pesquisa, ocorrida em dias alternados, entrevistando pessoas de várias idades,
fui informado que em toda a extensão da "Mata da Bica" – que era
muito ampla e fechada existia uma fauna diversificada. Convêm ressalvar que por
"Mata da Bica" entenda-se a década de 1960 e uma extensão verde que
se emendava com Nisia Floresta.
Ali se via
raposa, jacaré, guaxinim (semelhante a um cachorro), nico, macaco, tatu, bicho
preguiça, preá, tijuaçu (azul e verde), tigibu (azul-escuro, branco e preto;
gosta de sair no meio do dia e não sai na chuva), caranguejeira vermelha,
caranguejeira preta, libélula, coral falsa, corre-campo, coral, cobra-cipó,
salamantra, papa-ova, cobra-de-veado (extinta) era a maior de todas; buiúna,
salamandra-boi, surucucu-traíra, jararaca-açu.
COBRA DE VEADO (NA REALIDADE É A JIBÓIA) |
Obviamente que
tais animais não estavam ali dispostos como se vivessem num zoológico. Seus
nomes são evidenciados em conformidade com o que os nativos viam dentro de um
contexto temporal. Ressalvando-se que alguns depoentes contam que seus pais e
avós se alimentavam do que tiravam dali.
Entrevistei
muitos adolescentes, caçadores de passarinhos, os quais me contaram que a
"Mata da Bica" ainda tem em abundância a seguinte avifauna: azulão,
pardal, chorró, cabo-de-colher (parecido com uma galinha), tiziu, daturama,
guriatã, sanhaçu-pardo, papa-arroz, anomará, sanhaçu-azul, anu-preto,
anu-branco, lavadeira, gatinho (parece com o ‘cabo de colher’, só difere o
canto), golinha, sibiti, anomará, bigode, papa-capim, cancão, araquã (parece um
jacu, mas é marrom com pintinhas pretas e menor). Meus entrevistados foram: Felipe Bernardino da Silva, 16 anos de idade, João Marcos Firmino da Silva, 14 aos de idade e José Carlos Honorato da Silva, 14 anos de idade, os quais - coincidentemente - andavam pela mata cada um com uma deplorável gaiola.
SIRICÓIA |
GALINHA D'ÁGUA |
Ressalvo que
anotei os nomes dos pássaros conforme ouvi dos nativos. Desconheço a maioria,
portanto não sei se na realidade a mesma espécie é contemplada aqui com dois ou
mais nomes. Esse mesmo raciocínio se aplica aos nomes da vegetação, os quais
serão listados adiante. A distinção exata fica a cargo dos entendidos, embora
julgo mais relevante a riqueza de nomes e suas simbologias. Observe que coloco
entre parênteses uma breve observação sobre algumas espécies para facilitar a
imaginação do leitor, acaso porventura se depare com alguma pelas imediações.
Os mesmos jovens
também me disseram que a revoada que se seguirá abaixo está desaparecida ou
quase totalmente desaparecida da referida mata, como por exemplo: jacu (parece
um peru miúdo), vem-vem (cabeça preta e corpo branco), cabocolinho (marrom),
bico-de-laica (parente do cabocolinho, mas sua cabeça e bico são vermelhos),
sabiá-da-mata (alaranjado e marrom), sabiá-da-praia (banco e preto),
sabiá-bico-de-osso (laranja com o bico branco), fura barreira (preto com o
peito branco), xexéu (olho azul, bico amarelo e pena amarelo e preto), concriz,
pinta-silva (peito verde e parte superior preta), pinta-gol (verde-claro com o
bico amarelo), alma-de-gato (branco, comprido, com o rabo bem fino e bico
branco), beija-flor-azul-e-cinza), tetéu, pica-pau (raríssimo) lambu, nambu,
gavião (raramente é visto sobrevoando o local), siricóia (cinzenta com o canto
agudo), galinha-d’água (pintadinha de branco e vermelho), galo-de-campina,
canário, araponga, bem-te-vi, canário, cardeal, chopim, corrupião, corvo,
cotovia, curió, graúna, japu, joão-de-barro, pardal, patativa, pega, rouxinol,
sabiá, tangará, tico-tico, tiziu, tordo, uirapuru, viuvinha.
O fato de esses
adolescentes informarem que não veem mais tais pássaros na "Mata da
Bica" não significa que estejam extintos. Eles apenas desapareceram
dali. Se bem que um estudo desse tipo
está mais na alçada do IDEMA. Quem sabe alguns realmente já entraram para a
lista de extintos? Mas o fato de não se ver o que se via corriqueiramente
denota o que sabemos muito bem. Sinaliza a depredação de modo geral, seja da
mata, das águas e da própria fauna, inclusive protagonizada pelos próprios
depoentes, pois basta “aparecer” um pássaro novo que já é alvejado. Se um
tijuaçu desavisado sair da toca na hora errada vai para a panela logo em
seguida.
De acordo com
AUGUSTO RUSCHI (in memorian), um dos maiores ornitólogos brasileiros,
que também estudava a fauna e flora, para que um animal viva tranquilamente,
livre de stress, e se desenvolva e procrie com segurança, são necessários
muitos metros quadrados de vegetação. A tendência é que cada vez eles se
distanciem de onde se sentem ameaçados, sempre com propensão às regiões de
reservas recuadas. Quanto menos mata, menos água, menos frescor, menos brisa, menos fauna. Segundo o referido estudioso, muitos animais morrem pelo
próprio stress. A qualidade de vida deles cai. Um exemplo de tamanhos de áreas, vejamos esses casos: 10 km2 para a
sobrevivência da raposa, cinco km2 para o jacaré, 50 km2 para o macaco. Entenderam por que os bichos vão sumindo?
SABIÁ DA MATA |
ARAPONGA |
Segundo os
antigos moradores, a nascente da "Mata da Bica" está envolta pelas
seguintes árvores: imbiridiba, cupiúba, amescla, caboatã, imbaúba (galamastro),
ingá, algaroba, tamboril, golandim (é a árvore mais alta e uma das mais antigas
da Mata), goiti, gameleira, dendezeiro, cumaru branco, jatobá. Foi-me informado que há um morador das
imediações que está reflorestando a sua propriedade com mudas nativas, obtidas
ali mesmo. Infelizmente não o localizei nas diversas tentativas.
Até pouco tempo vivia nas imediações de São José de Mipibu um brincante de "pau-furado" (folguedo folclórico), chamava-se "Mestre Paraguai". Dentre suas incontáveis loas havia uma que dizia assim; "Eu fui na mata cortar imbé, veio uma cobra, mordeu meu pé". Ainda o alcancei. Fiz para ele uma cobra de papel marché enrolada a um tronco de árvore. A peça enriqueceu o folguedo, colocada no centro da roda, quando dançava. Junto a Amauri Freire, meu primo, anotamos o seu acervo de versos ao longo de meses. Retomando o assunto. Com relação à mata
rasteira, capins e parasitas, as espécies encontradas são: orelha-de-burro,
jarrinha (rama), cipó-canela, pasta (espécie de aguapé, cuja flor se sustenta
na lâmina da água), capim-de-planta (cinzento) serve para dor-de-barriga; Imbé
(espécie com folhagens grandes e viçosas; suas folhas são brilhantes e lembram
comigo-ninguém-pode; seu talo tem o diâmetro de um sabugo de milho que vai despontando
uns pequenos tendões, os quais fazem as vezes de raízes que grudam nas árvores
e vão subindo até chegar ao topo), canabrava (talos altos; dá uma flor de cores
vermelha, rosa e branca), ingá (dá uma vagem com um frutinho doce, samambaias,
aningas e pacaviras (muito poucas)). Na parte mais distanciada das águas se vê
muita “salsa”, uma ramagem rasteira cujas folhas são quase iguais às folhas da
batata-doce, embora não produza tubérculo.
O "Golandi", falado por dona Francisca é, na realidade é o guanandi ou jacareúba (Calophyllum brasiliense Cambess.) é uma árvore brasileira da família Clusiaceae(antiga Guttiferae). |
Vale ressaltar
que a presente pesquisa consiste num olhar tímido sobre esse grande tesouro
mipibuense, chamado “Mata da Bica”. Com toda certeza, o leitor mais aprimorado
poderá constatar a ausência de alguma espécie da fauna ou da flora que ele sabe
ter existido ou ainda existir, e porventura foi omitido. Sobre isso, julgo
providencial ressalvar que desconheço a maioria das espécies aqui mencionadas.
O que fiz foi apenas andar pelo local e colher informações dos nativos, pois a
nova geração precisa conhecer essas memórias. Esse trabalho é apenas um acanhado apanhado, onde, quem sabe, você o ampliará.
Essa nascente não é a do Rio Mipibu - coloquei-a aqui para que as pessoas que não conhecem possam saber como é uma nascente ("olho d'água"). |
O que se percebe
é que, na realidade, o homem é inconsequente. Ele vai degradando mesmo sofrendo
graves consequências. A própria geografia íngreme colabora com a depredação da
"Mata da Bica", pois tudo escorre para ela, mas isso só se tornou possível devido à retirada da
mata ciliar, que amenizava a força das enxurradas e segurava a terra. Antes a vegetação natural bloqueava lentamente a força da água que
descia da parte alta de São José do Mipibu. Esse ‘freio natural’ evitava que se
fosse dilapidado os plânctons e a microfauna. A própria natureza impedia o
assoreamento do local. Desse modo, o húmus se assentava homogeneamente em toda
a compleição da mata.
Hoje é
praticamente impossível essa harmonia natural. A construção da rodovia e ruas
promoveram acidentes geográficos que tornaram anômalo o curso da água pluvial.
A parte alta da cidade foi asfaltada. As calçadas e construções de alvenaria
"plastificaram" o solo. Essa impermeabilização faz com que a cada
chuva forte um ‘tsunami’ de água, lixo e dejetos desça como trem
descarrilado.
É óbvio que não
se deve impedir o curso natural das águas pluviais, mas o problema está
exatamente na depredação contínua da mata. Antes a vegetação era abundante e
fazia o papel de um filtro natural. Outro detalhe muito comum em quase toda a
São José do Mipibu é a existência de muitos cacimbões transformados em fossa.
Esse fenômeno absurdo – que me foi contado por nativos – é responsável por
danos inimagináveis.
Fazendo um
sobrevoo pela "Mata da Bica", vê-se que ali está apenas um pequeno
resquício de Mata Atlântica ilhado por potenciais depredadores. Parece mais um
buquê, um modesto Éden, envolto por pasto, casarios, chiqueiros e fossas. Há décadas ouvem-se as
mais belas histórias de “políticas públicas” em prol de sua revitalização etc
etc etc. Mas uma coisa é certa: nada é feito, o problema é grave e monumental.
É INACREDITÁVEL
que em pleno século XXI, uma fonte riquíssima e ainda abundante de água
permaneça depredada e usada como discurso. A Mata da Bica – hoje –
se resume a meros Planos de Governos.
É INACREDITÁVEL e
IMPERDOÁVEL que no Planeta que dá sinais claros de que num futuro próximo a
água valerá mais que petróleo e ouro, se destruam um dos mais belos e
importantes patrimônios naturais do Rio Grande do Norte. É muito egoísmo e
desrespeito à nova geração.
Mexer nessa causa
com seriedade pode parecer perigoso para quem não quer se opor a interesses
diferentes. Mexer nesse assunto é ter que indenizar muitas famílias que terão
que sair dali – não apenas da famosa Rua da Bica, mas de um raio muito superior. Para quem não se preocupa com a vida, essa indenização é muito cara. Mas será que esse valor é superior à saúde das pessoas?
Não é preciso ser
especialista para saber que é necessário despoluir essa área, promover um
mega-reflorestamento numa dimensão gigantesca, compreendendo também o aclive
que adentra o território nisiaflorestense, boa parte do curso do Rio Mipibu e a
construção de uma estação de das águas servidas que escorrem para o referido rio
(que também dilapida a Lagoa Papari, em Nísia Floresta). A área seria cercada
por duas ou três décadas para se recuperar lentamente, recebendo contato humano
apenas de técnicos, especialistas e trabalhadores no projeto. Esse local´é digno de um parque de studos sobre meio ambiente. É um
mega-trabalho que envolve muitos órgãos e um forte investimento na reeducação
do povo, pois obviamente, no futuro, seria reaberta.
Se o homem tiver
o poder de compreender que só um projeto desse porte poderá salvar a “Mata da
Bica” – e colocá-lo em prática – com certeza estará devolvendo às gerações
vindouras o maior tesouro de São José de Mipibu e evitando tragédias futuras.
Essa medida
compreenderia até mesmo a ação de diferenciadas engenharias. Não custaria tanto
dinheiro comparado ao retorno em saúde, qualidade de vida humana, da fauna e flora, mas, desde que pensada e planejada, daria certo. Se abraçada
seriamente por algum “louco” e reaberta ao público futuramente, poderia-se
dizer que realmente está-se pensando no futuro. Sem dúvida alguma, o desprezo à
“Mata da Bica” significa hoje a mais importante pendência de São José do Mipibu.
Reflorestar,
despoluir e construir políticas públicas em prol da "Mata da Bica"
não significa meramente abraçar um projeto paisagístico, um parque ou algo
assim, mas devolver todas as formas de vida originais a esse lugar sagrado. Apesar
da imperdoável maldade humana, esse bem natural é uma fonte de vida por
excelência, gratuitamente ofertada pela própria natureza.
Natal, 7 de setembro de 2014.
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