Um dos túmulos engolidos pelos cajueiros, os quais reivindicam a propriedade. |
CEMITÉRIO DE CURURU - RETALHOS DA HISTÓRIA DE NÍSIA FLORESTA
Como sabemos, o povoado do Cururu é
muito antigo. Há quem suponha remontar à época do surgimento do centro de
Papari. Infelizmente, restam apenas os alicerces das poucas casas de alvenaria
ali edificadas e as ruínas de uma capela, haja vista a famosa “cheia de 74”.
Mas o seu velho cemitério, plantado na duna mais alta da região, resiste ao
tempo, revelando uma antiguidade surpreendente. OBS. Sobre a história do
povoado Cururu o leitor encontra maiores detalhes nesse mesmo blog. Clique nos
links no final deste texto.
Na realidade o que me move a escrever
sobre esse lugar - no momento - é mais a preocupação com o seu processo de
ruína do que o necessário enveredamento por sua história. Nem por isso ela
estará totalmente ausente.
Tenho anotações colhidas em 1993, com antigos moradores, as quais
ficarão para futuros textos, pois abordam o referido povoado de forma
abrangente. O presente texto promete apenas instigar reflexões sobre esse
detalhe da história do município de Nísia Floresta, despertando interesse e
zelo por seu patrimônio, atitude esta que cabe às autoridades em primeiro lugar
e ao povo.
Os nisiaflorestenses, principalmente os
professores, estudantes e em especial as instituições que trabalham com cultura
e turismo, devem conhecer e reconhecer os seus espaços de história e memória.
Todos devem se dar conta que a história pertence a todos, e esse pertencimento
prediz zelo, garantindo às futuras gerações o usufruto de seus bens. Ignorá-los
ou negá-los significa endossar o seu depredamento.
Ontem, 15.11.15, conversando com
Daniela Calixto, proprietária de uma escola de balé neste município - e que encontra-se
montando um espetáculo de balé com a temática voltada para o personagem Nísia
Floresta e o município - ela disse-me que buscou todas as informações que precisava
no meu blog, numa sucessão de textos que escrevi sobre o Cururu, pois com exceção ao que escrevi, não há mais nada na
internet que aborde o tema.
É justamente esse o objetivo daquele e
de outros textos, ou seja, informar, despertar o interesse das pessoas e servir
como fonte de pesquisa e reflexão para professores e alunos.
Mas continuando o assunto. Tendo ido
ontem ao Cururu, ciceroneado por "Geto" (leia-se com acento no 'e')
um nativo de 44 anos, enveredei-me pela aura histórica desse lugar. Leia o texto abaixo e compreenderá:
"Como sabemos, o povoado
do Cururu é muito antigo. Há quem suponha remontar à época do surgimento do
centro de Papari. Infelizmente, restam apenas os alicerces das poucas casas de
alvenaria e as ruínas de uma capela, haja vista a famosa “cheia de 74”. Mas o
seu velho cemitério, plantado na duna mais alta da região, resiste ao tempo,
revelando uma antiguidade surpreendente.
Tendo
ido ao cemitério de Cururu, enveredei-me por um caminho emoldurado de mata
nativa, rasteira, cujos cajueiros predominam. Seus frutos, miúdos, são tão
doces quanto o aconchego do velho povoado. O cemiério dorme, esquecido, no
pináculo do morro. Seus túmulos foram tomados por musgo seco, emprestando-lhes
uma fisionomia assombrosa. A subida, íngreme, é permeada de arbustos e árvores
nativas. Os galhos, retorcidos, sobraçam uns aos outros, ora serpenteando no
chão, ora engolidos pela areia alva como um morro de açucar. Ora se equilibram
altos e tortuosos. Por vezes servem de corrimão para vencer a subida cansativa.
Há uma sucessão de dunas.
O
chão de areia fofa, qual uma "farofa" de folhas e galhos apodrecidos
- triturados -, engole os pés do caminhante. As matas que ladeiam a vereda
guardam túneis de garrancheiras quase intransponíveis, cuja luz do sol, mal
consegue penetrar. Vê-se nelas um tapete intocado, dourado de folhas novas,
recém-caídas. Vez por outra surgem moitas de abacaxis silvestres.
O
cemitério jaz no ponto mais alto da região do velho povoado, permitindo um raio
de visão cuja linha do horizonte é o limite. A visão é espetacular.
Paradisíaca. Nada lembra as mãos do homem. Não há casas nem construção alguma
que macule o cenário natural.
O cemitério do Cururu é
um mirante fincado num local privilegiado. São sucessões de paisagens que se
desencadeiam ao longo de um giro de 360 graus. Cada ponto, cada detalhe parece
dizer: “aqui está as mãos de Deus”. Não há como não se sentir dentro de uma
tela pintada por um gênio. É indescritível. Impossível transformar em palavras
o que se vê e sente no povoado de Cururu.
Desse
pino, desenrola-se um tapete infindável de mata nativa, revestindo os contornos
das dunas. Ora se sobressai uma nuança verde mais intensa ou mais clara,
revelando as árvores mais altas ou uma clareira natural, branca como neve, numa
sucessão de dunas.
É
nesse ponto alto que durante séculos foram sepultados os corpos dos mortos do
Cururu. A subida é cansativa. Imagine o cortejo de um enterro, ou um dia de
finados. Supostamente os idosos chegavam ofegantes ao topo.
Todo
esse encantamento se refere unicamente à visão panorâmica que se perde de vista,
pois, quando o visitante se volta para um palmo além do nariz a visão é
desoladora. O processo de ruína do cemitério é quase irreversível. Foi durante
essa observação que o cemitério de Cururu conversou comigo. Pediu socorro.
Vejam só! Um cemitério pedir socorro. Mas foi isso o que ocorreu.
Fiquei
perplexo quando vi três túmulos centenários, de arquiteturas singulares (os únicos
que sobraram) em estado caótico. Os cajueiros reivindicam a sua propriedade, devorando-os
como um ser fantástico. Suas galhadas serpenteiam o velho muro, entrelaçando-se
com a alvenaria dos túmulos, abraçlando-o com sua força silenciosa, mas descomunal.
Um dos mais belos e
resistentes jazigos ruiu e já se encontra sufocado pelas galhadas robustas, que
lembram gigantescas serpentes ou braços hercúleos. Tenho impressão que não
restaram parentes desses mortos, pois se fosse diferente, não estariam à mercê
da depredação natural.
Os túmulos que resistem,
localizados no centro do “campo santo”, embora agonizantes, trazem os seus
alicerces à mostra. A ação do tempo cavoucou suas bases. Dá-se a
impressão de que em breve será mais uma ruína. Há relatos de que velhas cruzes
de metal, feitas com riqueza de detalhes, foram levadas por pessoas estranhas
que passaram por ali, “desbravando” a região com seus motores possantes.
Levaram como souvenir.
Embora o cemitério encontra-se quase
abandonado, alguns moradores ainda o visitam para prestar culto aos mortos.
Mesmo após a “cheia de 1974” alguns nativos não deixaram de fazer sepultamentos
ali. Só mesmo nos anos 1980 os moradores
de Campo de Santana foram se dando conta de que o cemitério novo lhes pertencia
realmente. A distância e a dificuldade de acesso parece ter-lhes ajudado nessa
escolha. Mas foi difícel aquela espécie de desapego e cumplicidade.
Lendo as inscrições em baixo relevo, gravadas nas cruzes
de cimento do velho Cururu se constata que alguns sepultamentos datam de 1976; dois
anos após a aterrorizante “cheia”. Restam também algumas placas de alumínio com
informações típicas de um túmulo: nome completo, datas de nascimento e morte.
O
fato de ter sido construído em lugar tão alto parece revelar uma explicação que
nos remete a uma concepção cristã e mística. Quem está no sopé do Cururu - há
trezentos metros, exatamente na estradinha próxima ao bueiro - e olha com atenção
para o topo da duna, em direção ao sul, se vê as ponteiras de dois túmulos mais
altos, destoando da paisagem natural.
Vistos do sopé do morro
esses túmulos parecem tocar as nuvens. Não é difícil imaginar ter sido intenção
dos antepassados deixar os seus mortos em contato direto com o céu. Creio que
essa impressão acalentava-os diante do sofrimento com a perda de um ente
querido.
Ao
mesmo tempo subir tão alto, carregando um morto numa rede parece dar foros de
penitência. É como se a caminhada cansativa e pesarosa fosse o sinal de
retribuição ao pai, a mãe, e aos avós por tudo o que eles fizeram por quem
ficou. Levá-los ao ponto mais alto da localidade - para a derradeira morada -
era a oportunidade de rezar e repensar sobre a sua relação com o morto e com a
morte.
O enterro consistia na
oportunidade de agradecer a Deus e pedir que Ele recebesse seus mortos no
Paraíso. Quem participava dessa “via crucis” sabia que um dia percorreria
aquela mesma vereda, não mais conduzindo a rede, mas levado nela. E assim,
fazendo jus à única certeza que se tem nessa vida, as coisas se seguiam numa
sucessão interminável.
Seja
como for, sepultar um morto no Cururu de antigamente era experimentar uma
indescritível comunhão com Deus. A aura do lugar pareceu oportunizar um momento
singular de oração. Penso na sensação final de um enterro ao pôr do sol, tendo
o morto descido os "sete palmos". Não dá para descrever. É muito
forte e misterioso. A tarde de brisa agradável, pincelada pela tonalidade
dourada do sol já desmaiando, certamente instigava a contrição dos participantes
do féretro.
Para
quem sabe exatamente o significado da morte, creio que a descida desse pináculo
ocasionava uma sensação de leveza incomum. Por vezes pensariam estar levitando
até sentir o sopé da duna. Creio que nesse momento se davam conta de que a vida
continuava no velho Cururu.
A
construção de um cemitério no local mais alto do Cururu nos convida também a
outras reflexões. Teria sido pelo temor de uma enchente? Se sim, poderíamos
supor que os nativos profetizaram a cheia de 74, a qual colocou todo mundo para
sair às pressas e nunca mais voltar. Existiriam profetas entre os habitantes do
velho povoado? Dizem que os idosos trazem consigo a sabedoria. Teria sido isso?
Contam
que o povoado de Cururu "encheu do dia pra noite". Se os nativos não
tivessem sido rápidos teriam se afogado, pois a água cobriu as casas em poucas
horas. Foi uma sucessão de "estouro" de barragens quilômetros acima.
Os que tinham canoas se serviram delas imediatamente, mas os que não as
possuíam, correram para o alto para preservar a própria vida. Ninguém morreu.
As pessoas mais antigas
olham para a vida e a natureza de maneira destoante da nossa. Embora muitas
vezes recebam o deboche dos mais novos, são muito sábias, observadoras. Elas
tinham consciência que Cururu estava numa "bacia", numa depressão.
Sabiam da existência de muita água represada nas áreas mais altas e que, mesmo
uma chuva muito forte poderia inundá-la.
Contam
que por anos a fio as estradas e veredas que ligavam o Cururu às partes mais
altas - para onde as pessoas transitavam até o centro de Papari ou até mesmo em
direção a Natal - ficavam submersas. O deslocamento das pessoas era feito em
canoas. A experiência de ficar ilhado não era uma novidade. Mas nada se compara
a “cheia de 74”.
Desse
modo, construir um cemitério num local tão alto e de difícil acesso, dava a
certeza de que jamais as águas o tocariam. Desse modo os antigos construíram um
cemitério na "divisa com o céu".
Um
cemitério não pertence apenas a um município, e de certo modo, nem os próprios
túmulos são propriedades exclusivas de seus donos. Cemitérios pertencem a todos
nós e seus túmulos também, principalmente quando se tornam históricos.
A partir do momento que
um bem passa a ter uma significação sentimental, estimativa, histórica,
mitológica, lendária etc., automaticamente passa a constituir em patrimônio de
todos – e deve ser preservado - portanto o cemitério de Cururu pertence a
todos, inclusive a você. Cabe às autoridades se vestirem dessa consciência".
--------------------------------------------------------------------
Leia mais sobre Cururu; clique nos sites abaixo:
Gostaria de manter contato com o senhor Luiz Carlos que tão bem escreve sobre a educadora Nísia Floresta; gostaria de obter números de telefones, what zap, e-mail, etc. estou escrevendo uma monografia sobre a escritora Nísia Floresta, e estou tendo dificuldades, que certamente serão resolvidas com a sua ajuda.
ResponderExcluirJoão Bosco de Sales - 994072206 (ZAP) - boscosalles@yahoo.com.br - Rua São José de Mipibu, 1481, Lagoa Nova, Natal/RN, CEP 59063-070.