O
registro das histórias de vida, independem de qualquer julgamento e
condição social, pois todos temos histórias, as quais não podem
ser levadas conosco quando encerramos a nossa missão. É exatamente
por isso que gosto de escrever histórias de pessoas aparentemente
anônimas, mas que nos dão grandes exemplos. Acho importante dar
existência a essas memórias.
“Seu
Bambão”, como é conhecido, nasceu no dia 5 de junho de 1937, no
Alto Monte Hermínio, hoje bairro de Nísia Floresta, quando a cidade
se chamava “Papari”. Filho de Delvira Cordeiro (nascida no mesmo
local) e Pedro Paulo do Nascimento (nascido no povoado de Tororomba),
tendo como irmãos: Maria da Conceição, Maria das Neves do
Nascimento, José Alexandre do Nascimento, João Evangelista do
Nascimento, Francisco do Nascimento e Joaquim José do
Nascimento.Veio ao mundo da maneira mais natural possível, sob os
cuidados da primorosa parteira “Mãe Pitu”, que, segundo ele
“tirava muito menino mundo afora”. Essa senhora era mãe do do
Sr. Flodoaldo Ribeiro de Moura (pai de Zé Ribeiro).
Seus
pais eram agricultores e buscavam o sustento fazendo “roça de
meia” nos diversos cercados da localidade. Uma dessas localidades
era conhecida como “Alecrim”, exatamente onde se localiza o
Conjunto Celina, hoje urbanizado. Segundo ele a terra era de
excelente qualidade, havia muita água. Nela se plantavam grandes
lotes de mandioca para vender semestralmente para as casas de
farinha, mas também faziam pequenos roçados para o plantio de
feijão, macaxeira, inhame, batata doce, quiabo, melancia, banana.
Segundo ele, “maxixe dava que só a peste... muita coisa ia para Natal (...) os caminhões saiam cheios..."
Também
plantaram muito no “Amará”, situado no Engenho Descanso,
propriedade do Sr. Humberto Paiva (in memorian), e na “Moita” em terras do
ex-prefeito Vicente Elísio (nesse mesmo blog você encontra a sua
história).
A
“farinhada”, como diz a tradição, acontecia na casa de farinha
do Sr. “Joca de Bivar”, localizada onde hoje se encontra um
terreno baldio na esquina da Escola Estadual Nísia Floresta. “Toda
a farinha produzida ali era vendida em Nísia Floresta mesmo. Não ia
para fora”, diz ele. "Era sacos de farinha a se perder de vista".
O
Sr. Pedro (pai do Sr. “Bambão”) tinha grande paixão pela caça,
e transmitiu essa tradição para o filho. Ele costumava sair aos
sábados e domingos para a as áreas de matas no município. Segundo
o “Sr. Bambão” existem bichos que se caçam de dia e outros que
se caçam de noite.
Normalmente
eles caçavam pássaros. Nesse caso os de hábitos diurnos mais
apreciados eram: “jacu”, “araquã”, “nambu”, “juriti”
e “zabelê”, os quais eram pegos com “espingarda de soca”. A
“nambu” era típica das capoeiras (existiam em abundância onde
hoje se localizam os lotes na estrada da Boágua).
A
caça do “jacu” e do “araquã” exige que se aguarde o início
do o pôr-do-sol ou durante o amanhecer. Mas o mais comum é à
tarde. É quando eles vêm comer os frutos da “embiridiba”,
“oiticica”, do “araçá” e outros. Alguns deles, na falta
desses frutos, comem suas folhas bem verdinhas.
O
“zabelê” adora a semente do “marfim”; a “juriti” e nambu
gostam de sementes em mata rasteira, inclusive adoram o “pinhão”.
O “araquã” e o “jacu” só comem frutas, por exemplo,
“embiridiba”, “araçá”, “fruta-de-cachorro”, “guabiraba”
e “grão de galo”. A “galega” (pássaro que só voa em bando
– tem o tamanho de uma “juriti”) aprecia os frutos da
“embiridiba” e as sementes do mangue.
Sobre
aves que apreciam áreas com água, ele disse que existem a
“marreca”, semelhante ao pato caseiro, mas é um pássaro que voa
e gosta de chafurdar na lama, onde se alimenta. A “garça branca”
costuma ciscar áreas ribeirinhas em busca de peixes minúsculos.
Existe
também outro tipo, a “garça vaqueira” que vive à sombra do
gado, passeando no pasto para degustar carrapatos e insetos que vivem
nos capins.
A
“jaçanã” gosta de lama. Come grama e “garapundá” (uma
planta d’água) e a flor do “gorfe”, também aquática. O
“socó-boi” é pássaro pescador, tão ágil que pega até
“traíra”.
O
“carão” come o molusco que vive dentro da carapaça chamada
“lolô”. Costuma passar o dia na beira dos rios e lagoas. Tem
bico forte. O “frecha-peixe” passa o dia pescando.
A
“jaçanã-chiqueta” come a flor do “gorfe”. A “jaçanã-azul”
gosta da flor da “pacavira”. Existe a “marreca-cangurú”,
muito semelhante ao pato. Gosta da lama. A “jaçanã verdadeira”
come lama e insetos que também gostam de áreas com água.
A
“pecopara” é ave de lagoa. Só come peixe. A “conduca” vive
em pasto e rio. Adora “mussum” (peixe parecido com cobra, também
conhecido na região centro-oeste e sudeste como “piramboia”). O
“tetéu” gosta das copas das árvores próximas a rios e lagoas.
Adora “cachorro-d’água” (um tipo de inseto muito curioso). A
“sericóia” parece uma galinha pequena. Curiosidade: ela gosta de
mandioca-mole.
Existe
também o “pinto-d’água”, a “galinha d’água” e o
“camboja”. Esses dois últimos gostam de ficar entre o junco
(mata aquática), comendo insetos.
Outros
pássaros muito comuns no passado são a “rolinha” (existem
vários tipos: “rolinha vermelha”, “rolinha pé-de-anjo”,
“rolinha cascavel” e “rolinha azul”. Essa última está
extinta na região.
D. Maria do Carmo (in memorian), com sua alegria contagiante. Foi com esse mesmo sorriso que ela contou-me a história "Lasca Procópio", na calçada de sua casa de taipa, provocando altas gargalhadas no meio da noite que poderia ser solitária, se não estivéssemos ali, eu, Gardênia e Sr. Bambão quebrando a solidão da noite. OBS. Quando fiz esta pesquisa ela era viva e com muita saúde. |
Existe
o “canário de chão” (tem esse nome porque vive comendo ciscos
pela mata), “cacuruta-mirim”, “piruá da mata”,
“beija-flor-da-mata”, “joão-de-barro”, “pica-pau”,
“concris”, “galo-de-campina”, “sanhaçu”,
“sabiá-da-mata”, “sabiá”, “papa-sebo”, “curió,
“azulão”, “papa-capim”, “vem-vem”, “sibito”,
“anum-mará”, “anum-preto”, “anum-branco”,
“papa-lagarta”, “sibito”, “gola preta”, “golinha”,
“bem-te-vi”, “rouxinol”, “lavadeira”, “pardal”,
“andorinha”, “apara-pedra”, “caboré”, “rasga-mortalha”
e “corujas”.
Perguntado
sobre outros tipos de animais que ela caçava junto com o pai,
mencionou que dois tipos de lagartos existiam em abundância, como o
“tijuaçu” e o “camaleão”. Eram muito apreciados. O tijuaçu
só caça ao meio-dia. Costuma devorar os ovos encontrados nos
ninhos, inclusive adora pássaros recém-nascidos. O camaleão caça
o tempo todo, Só come folhas (prefere juazeiro).
Outro
lagarto muito raro ultimamente, mas comum em épocas passadas é o
jacaré. Este era encontrado em abundância nas lagoas. Sua carne é
quase igual a peixe. “Uma caça boa para se fazer de manhãzinha é
a do coelho… ele só come capim”.
Existem
dois tipos de tatus muito comuns na região. Um é o tatu-peba, outro
é o tatu verdadeiro. Ambos caçam à noite, pois raramente se expõem
de dia. Só são possíveis de serem pegos com cachorro “encovando”.
Há
uns 20 anos ainda se via pelas capoeiras o “gato-do-mato” e o
“tamanduá”. Ainda é possível encontrar o “guaxinim” (“que
parece um pitibulzinho”), “punaré”, “preá”, “furão”
e o “punaré-da mata”.
As
cobras mais comuns na região eram: “salamantra”,
“cobra-de-veado”, “jararaca”, “salamantra-da-mata”,
“jararaca-açu”, “caninana”, “cobra de coral”, “rainha”,
“goipeva”, “corre-campo”, “cobra de cipó”, “cobra-verde”
e “jericuá”.
Sobre
as plantas medicinais da flora silvestre, contou-me o meu
entrevistado que a raspa do “cajueiro-bravo”, a “ameixa do
mato” e o “barbatimão” são excelentes contra a inflamação. Por coincidência, certo dia eu cortei o dedo e lá veio o "Sr. Bambão" com um frasco de um líquido estranho e pediu que eu aplicasse no local depois de tomar banho. Fiz o que ele disse e o ferimento apareceu seco no dia seguinte. É a sabedoria que só os idosos possuem.
Voltando aos remédios caseiros, a “angélica” e a “quina-quina” agem contra a maleita (creio que o “Sr. Bambão” se enganou no último nome, haja vista sabermos que durante a construção da Estrada de Ferro Madeira Mamoré, celebrizou-se a “quinina” como antídoto para tal doença, exceto se se trata da mesma planta com nome diferente). Segundo ele, são amargas como fel e devem ser ingeridas com mel.
Voltando aos remédios caseiros, a “angélica” e a “quina-quina” agem contra a maleita (creio que o “Sr. Bambão” se enganou no último nome, haja vista sabermos que durante a construção da Estrada de Ferro Madeira Mamoré, celebrizou-se a “quinina” como antídoto para tal doença, exceto se se trata da mesma planta com nome diferente). Segundo ele, são amargas como fel e devem ser ingeridas com mel.
O
“jucá” e o “pau-ferro” suavizam os sintomas de pancadas e
machucaduras. O “juá” é excelente para os cabelos. Raspa-se sua
casca, esfregando-as até formar uma espuma gelatinosa. Explicou-me
que dá brilho e fortalece os cabelos, evitando caspas e
escamações. Essa espuma é excelente creme dental,
embranquecendo os dentes e evitando cáries.
Usa-se
contra gripe a “pepaconha” e a “malva-rosa”. A raiz de
“catucá” serve para dor de coluna e de ossos. Contra prisão de
ventre, toma-se chá de “marcela” (folha ou semente).
O
“Sr. Bambão” é artesão e aprendeu a arte da marcenaria com o
seu pai. Começou fazendo pequenos serviços na Igreja Matriz de
Nossa Senhora do Ó. Trocava caibros, ripas, linhas, portas e
janelas. Também trabalhava como pintor, inclusive elege as marcas de
tinta Ipiranga, Coralit e Coralsol como as melhores. Essas tintas
eram compradas na Ribeira, em Natal, por Yayá Paiva, que era
zeladora voluntária da igreja.
Ele
também já fez alguns andores. O primeiro foi para Nossa Senhora do
Ó Pequena (a imagem antiga – original) e o outro foi para Nossa
Senhora de Santana, no distrito de Campo de Santana. Depois de casado
começou a fazer desempoladeiras, raspadores de coco, colheres de
pau, facas, cabos de serrote e faca, pilões pequenos e outras
ferramentas. Também amolava facas, tesouras. Seu pai era pessoa de
confiança de todos os padres para conserto do madeiramento e do
telhado da igreja.
Segundo
ele, Yayá Paiva passava o dia inteiro cuidando da igreja: às vezes
ia a Natal comprar velas, vinho e incenso e demais coisas de
necessidade da matriz. Ele diz que trabalhou com os padres Othom,
Armando Paiva, Monsenhor Antonio Barros, Frei Ambrósio, Frei José,
Frei Pepeu (esses eram religiosas dominicais, os quais não moravam
na cidade, e sim, vinham somente aos domingos. Ele também conviveu
com as irmãs Ivani, Maria José, Maria Célia, Francisca, Iracy,
Neusa, Glória, Elisa e Maria Auxiliadora, também conhecida como
“Chilú”. Essas religiosas moravam no antigo casarão das
freiras, na rua Dr. Antonio de Sousa. Segundo ele, houve uma grande
reforma no dito casarão, sob os cuidados das freiras e patrocínio
do fazendeiro “Mauro de Abdon”. Elas permaneceram 25 anos em
Nísia Floresta.
Durante muitos anos o "Sr. Bambão" foi "sineiro". Só ele subia no campanário da Matriz. Como se sabe, os sinos tem toda uma simbologia específica. "Há toques diferentes para enterro, morte de criança, morte de "moça-velha", morte de "anjinho", celebrações, festejos".
Durante muitos anos o "Sr. Bambão" foi "sineiro". Só ele subia no campanário da Matriz. Como se sabe, os sinos tem toda uma simbologia específica. "Há toques diferentes para enterro, morte de criança, morte de "moça-velha", morte de "anjinho", celebrações, festejos".
“Sr.
Bambão” era casado com dona Maria do Carmo do Nascimento (in
memorian).
Tiveram seis filhos, sendo três homens e três mulheres, uma já
falecida.
O
que me impressiona nessa experiência é o amplo conhecimento que o
meu entrevistado tem sobre peculiaridades da fauna e flora local. A
nomenclatura indígena, a associação do nome do animal com seu
habitat ou com seu hábito de vida, pessoas e lugares. São
informações importantíssimas e raras. No que se refere a fauna
local, suas memórias se tornam ainda mais preciosas, tendo em vista
que boa parte dos animais aqui evidenciados não existe mais nessa
região, inclusive alguns estão extintos.
Quando
sabemos que até a década de 1970 se viam “gatos do mato” e
“tamanduás” pelas matas de Nísia Floresta – conforme ele
afirma – somos levados a pensar sobre a dimensão dos danos
ambientais e as consequências para todos nós. E gosto de lembrar
que as consequências que falo não são apenas no âmbito do
desequilíbrio ambiental, mas as consequências sobre o direito dos
nossos filhos e netos conhecerem o que lhes é de direito. É muito
egoísmo desfrutarmos de algo que negamos a eles no futuro.
Como
ninguém está só, a história do “Sr. Bambão” coloca luz sobre
detalhes curiosos da sua trajetória associada a outras pessoas.
Desse modo aprendemos que alguns bairros locais serviram de roça no
passado, que pessoas que nem conhecíamos, fizeram os partos de
muitos que hoje são tão idosos como o entrevistado, além de se
evidenciar muitos nomes que já não se encontram mais por aqui e
outros detalhes sobre a história do município.
A
história do Sr. Bambão é simples, mas muito rica e curiosa. Para
mim foi um aprendizado. L. C. Freire – Novembro/2009
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E
nesse vai e vem de entrevistas despercebidas, fizemos, certo dia, uma
surpresa para a doce e encantadora senhora Maria do Carmo. Era o dia
do seu aniversário e, como sempre, ela contagiava a todos com suas risadas. Um dia ela contou-me uma história de Trancoso
muito curiosa: "Lasca Procópio". Nos próximos dias
estarei postando para que o leitor a aprecie. Veja, abaixo, o vídeo, é só clicar:
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