O fenômeno das redes
sociais tem despertado uma espécie de patologia em boa parte dos
internautas/leitores. A síndrome se manifesta no comportamento de
ler textos rápidos e com escrita fácil. Os leitores não vão
adiante quando o texto passa de dez centímetros. As pessoas não
querem ler muito e não assistem a vídeos que passam de dez minutos.
O encantamento de se ter o mundo diante dos olhos desperta uma pressa
injustificável. O internauta quer ler/ver assistir o maior número
de coisas e com rapidez. Esse fenômeno faz com que muitos não
leiam/assistam produções/obras de qualidade, presos ao banal e
fútil. Uma parte considerável da juventude está propensa ao vazio
na música, na literatura, na arte etc.
Observo que o preocupante
sintoma tem saltado da internet e caído no colo da Literatura com
força. Tenho a impressão de que escrever uma narrativa tradicional
nos tempos atuais tem ficado cada vez mais difícil e por incrível
que pareça, artificial, obrigando o escritor a ir além da
superficialidade do discurso literário. É algo parecido com “se
reinventar” para agradar um público/leitor em decadência,
principalmente o público jovem. Aí reside o
desafio/problema/perigo, pois já vemos escritores nem tão
escritores que perceberam isso e escolheram atender justamente a esse público equivocado, visando vender mais enquanto o escritor real fica
para trás porque prioriza qualidade em todos os detalhes, inclusive
na palavra.
Na realidade, além do fator
“leitor apressado”, há outros fatores, como o problema da
comunicação entre a obra e o público. O desafio de quem escreve é
o de comunicar a incapacidade de expressar-se nos seus textos, pois a
estética pós-moderna não aceita mais um escritor que explica tudo.
Muitos autores trocaram a escrita que deixa subentendido, que diz sem
dizer, que sugere, que divaga, que leva o leitor ao pensar, que sai
do lugar-comum. A escrita fútil - na contramão disso - prendeu o leitor ao óbvio,
entregando tudo mastigado. A metáfora, a poesia, a descrição, a
discrição e uma série de considerações que deveriam ser
prioridade ao escritor – como forma de arte literária – foram
abortadas para atender leitores apressados, contaminados pelas
mídias.
Outro imbróglio que trava até
mesmo a capacidade criadora do autor - que se torna um impasse da
narrativa contemporânea - é a dependência do escritor diante do
mercado da editoração. A Editora Sextante, por exemplo, priorizava
clássicos da literatura. Hoje só publica autoajuda. Há editores
que não arriscam se o autor não estiver contaminado pelo fútil.
Ele entendem que o autor deve escrever algo que lembre/pareça com
algo. “Escreva algo que lembre Harry Potter”, “Pegue um gancho
em alguma coisa de Nárnia”…
As próprias capas das obras
lembram essas coisas cinzas da Europa.
Fazer algo que pareça ter
vindo do way of life dos Estados Unidos, da Inglaterra etc
parece sucesso garantido. Não importa o banal, o fútil.
Sinto falta de ouvir gente
dizendo: "Poxa! Sua obra faz a diferença”.
Muitos editores pecam por
escantear autores em que os alicerces se assentam no tradicional, não
necessariamente reproduzindo a estrutura do cânone literário, nem
sendo retrógrado, prolixo, mas se aproximando do imaginário dos
clássicos europeus e latino americanos. Autores com substância,
alicerçados numa vasta bagagem literária. Tenho observado muito
isso e não acredito estar enganado. É uma prática cada vez mais
comum, MAS NÃO É GENERALIZADA E AINDA BEM!
Todo autor é feito de
autores, de quintais, de mundos, de planetas imaginários e reais.
Creio que nos faltam - ou que seguem desconhecidos/desvalorizados -
grandes autores em quase todos os estados do Brasil, e a
responsabilidade está nessas visões deturpadas, contaminadas pelo
padrão mercadológico e industrial dos simulacros dos simulacros das
cópias das cópias.
E os autores regionais?
Piorou!
Ser regional não é defeito,
é uma constante mediação entre o particular e o todo, pois no
regionalismo está implícito questões universais, afinal o homem
objeto de toda escrita. Não existe escrita sem homens. No
regionalismo reside a Filosofia. No estado onde nasci, Mato Grosso do
Sul, por exemplo, temos Hélio Serejo, um monstro literário digno de
ser universal, mas desconhecido até no próprio estado como aqui no RN são
desconhecidos alguns autores que não mereciam.
No Rio Grande do Norte, por
exemplo, quando releio “Chão dos Simples”, obra prima do Rio
Grande do Norte, embora escrita há mais de meio século, mas
publicada há 31 anos, encontro sertanejos simples, mas que não
diferem de ninguém em qualquer parte do mundo, pois são universais.
Para desvelar esse mundo extraordinário criado pelo autor Manoel
Onofre Jr. é preciso adentrarmos o mistério cósmico ao qual ele se
refere. Esse mistério nos cerca, e o sentimos, e Manoel Onofre traz
à tona através da geografia do sertão e da alma tosca do sertanejo
d'outrora, tipos humanos que despreocupados com o raciocínio lógico,
são propensos a toda espécie de impulsos vagos, premonições,
crendices, hipocrisias religiosas, espertezas, caritós, alimárias,
maldades, inocência, agruras da seca, cangaço, folclore, o mundo
onírico… até mesmo o romanceiro ibérico ou uma versão sertaneja
de Joãozinho e Maria passeiam na obra. É o sertanejo, habitante
distante da nossa civilização urbana e niveladora. São homens e
mulheres com o espírito aberto por vezes ao fantástico, ao
extraordinário, ao milagre, e são elas que decifram o “Chão dos
Simples”, obra que conduz o leitor ao lado misterioso da
existência, revelando que a natureza e a própria existência
transmite inúmeros recados aos homens. Pressentimentos, revelações,
sonhos, pesadelos, sinas, mensageiros que transmitem aquilo que
precisamos ouvir, ou a resposta para coisas que pensamos não terem
resposta, mensagens que, se ouvidas, podem mudar os destinos de cada
um. Tristezas e situações hilárias pautam Chão dos simples. Como
não dizer que isso não é literatura universal se trazem um
gigantismo filosófico? O próprio e genial Guimarães Rosa escreveu
que “o sertão é o mundo”.
Pois bem, isso é um exemplo
dentre tantos escritores potiguares excepcionais, como os atuais
Pablo Capistrano, Nivaldete Ferreira, Ana Cláudia Trigueiro, Marize
Castro, enfim, o Rio Grande do Norte tem referências literárias de
qualidade e em vários estilos.
Creio que escrever uma
narrativa na atualidade, aproximando-se de noções canônicas,
apesar de caminhar para o estilo não-cânone, na lógica de que toda
criação é uma destruição, é trair a tendência do texto
imediatista e comercial da pós-modernidade industrial em que o autor
reproduz, quase como cópias, características de personagens,
cenários, narrativas, tipos humanos com pouco ou nenhum
desenvolvimento.
Quantos filmes, livros, séries
de livros, séries cinematográficas reproduzem o que Adorno chamou
de “ausência do clássico”. Narrativas que seguem a mesma
estrutura de um personagem principal que passa por uma tribulação e
que segue toda a história dramática para superar o problema que o
aflige, e o fim se dá basicamente na superação desse problema e na
conquista da felicidade. O que significa isso senão a demonstração
prática de uma subjetividade narcísica que destruiu toda a
complexidade das tragédias?
O escritor acredita - ou é
induzido pelo meio digital ou pelo mercado editorial, a investir num
aspecto “novo/diferente” de narrar, mas que não tem nada de
novo. Como nasce o novo? Por escolher abdicar do estilo próprio da
escrita para abraçar o suposto "novo'', muitos autores
abandonam a própria originalidade para parecer palatável. E assim
se afunda na mesmice, mesmo que – de repente – até sendo bem
lido. Mas lido por quem? Por um público mamão com açúcar?
Alguns autores optam pelo
caminho mais difícil, sem se importar em agradar o leitor com mamão
com açúcar. São exigentes e sólidos. Não erguem castelos de
areia que logo somem com o vento. Salvas as exceções, assistimos e
consumimos com frequência a banalização da literatura e sua
redução à mera mercadoria.
Atualmente as grandes
livrarias estão abarrotadas de livros de autoajuda, relatos de
viagem, biografias de homens ricos e socialites, business,
alimentadas pela indústria do entretenimento. Os autores de obras
literárias aparecem em segundo plano adiante, aceitos e contemplados
apenas pelos críticos, por quem não deixou se enganar, e por uma
elite intelectual que pouco se deixa levar pelas novidades da
indústria cultural. Hoje em dia essa elite não está lendo nem mais
O Pequeno Príncipe como o jactavam no passado. No caudal disso tudo
a literatura como arte tornou-se autônoma e aparentemente
inacessível ao grande público.
O assunto é complexo,
principalmente na filosofia da estética, pois está a abranger
política, educação, pedagogia e a cultura de um povo,
propriamente. Parece até piegas a conhecida e inacessível frase “um
país se faz com homens e livros”, e dependendo da qualidade do
livro se explica a qualidade do homem. Uma geração que preteriu
Paulo Freire em detrimento de ler as biografias de homens ricos de
Wall Street não parece estar construindo um futuro interessante.
Se o aprendizado em comunhão
e a solidariedade são concebidas como perda de tempo, e o egoísmo
patológico e a subjetividade humana domada pela lógica
concorrencial são tidas como virtudes, o que nos reserva?
Imagine esse público diante
de Memória do Cárcere, de Graciliano Ramos, Os Sertões, de
Euclides da Cunha, Grande Sertão Veredas, enfim as obras de José
Lins do Rego, Gilberto Freyre, Clarice Lispector, Érico Veríssimo,
Machado de Assis, padre Antonio Vieira, Lima Barreto e outros. Que
susto tomariam diante de Os Miseráveis, Os Irmãos Karamazov, Dom
Quixote de La Mancha, O Idiota, Madame Bovary, Satíricon, O conde de
Monte Cristo e tantos outros.
Somente um povo bem educado a
partir dos anos iniciais com acesso à literatura de excelência, a
museus, teatros, exposições de arte, ciências etc, frequentemente
estimulada a desenvolver a criatividade, mudará essa realidade.
2.7.2