ANTES DE LER É BOM SABER...
domingo, 28 de setembro de 2025
ACTA NOTURNA - O ASSASSINATO DE GESTEIRA EM 1892 – UM MISTERIOSO CRIME EM SÃO JOSÉ DE MIPIBU...
O corpo de Gesteira foi encontrado na estrada
ao amanhecer, próximo à localidade denominada “Pituba do Salles”, local ermo,
esquisito e de mata fechada, subúrbio de São José de Mipibu. Gesteira recebeu oito facadas e um corte profundo de foice.
Ele vivia em São José, mas havia se retirado para
sua casa em Pituba do Salles naquela noite. Era descrito como “moço muito
estimado e pacífico”, sem inimizades aparentes na cidade, pertencente a uma
família local respeitada.
São José de Mipibu parou. A revolta era
geral. O professor Elias Souto, abolicionista, político e jornalista local,
fundador do jornal Diário de Natal, dirigiu severas críticas à autoridade
policial local, acusando negligência do delegado Tiburtino de Azevedo
Mangabeira (nomeado por decreto em 11 de agosto para a Comarca de São José de
Mipibu, 13º batalhão de Infantaria). Segundo Elias, enquanto caiam os sinos
fúnebres de consternação pública, o delegado cortava carne no açougue e
soldados permaneciam inertes no corpo de guarda da cadeia, sem diligências
imediatas para elucidar o assassinato. Não se viam da parte das autoridades
qualquer ato proativo e esse estranho gesto revoltou a população.
Fonte: Loja Maçônica São José Nº 14: SÃO JOSÉ DE ANTIGAMENTE |
No dia 26, a polícia prendeu operários em Cajupiranga, que à época, antes do desmembramento de Papary (hoje Nísia
Floresta), pertencia a São José de Mipibu, local associado à lavoura e engenhos
de parentes próximos da família Leitão, de grande prestígio na região. Um
indivíduo chamado Manoel Alves (que exercia influência local) teria instigado
que os presos fossem interrogados publicamente, procurando forçar que
denunciassem que o assassinato fora cometido por dois jovens primos da família
Leitão, que eram amigos de Gesteira. O relato defende que esses moços, embora
acusados sem base consistente, tinham reputações irrepreensíveis e eram
próximos de Gesteira, sem motivo de conflito. Começa aí uma série de fatos
esquisitos e que alçariam o bizarro, como veremos.
Paralelamente, surgiu outra linha de
suspeita: um irmão de Gesteira teria tido uma disputa de terra com habitantes
de um lugar chamado “Língua de Vaca”. Ele teria, segundo se dizia, tomado uma
escritura de venda de terra dos indivíduos, sob alegação de que o vendedor (já
falecido) não estaria autorizado para vender porque a terra pertenceria às suas
filhas e ao genro. Isso suscitava uma hipótese de que o assassinato de Gesteira
poderia ser consequência indireta desse litígio, talvez por engano ou vingança.
O assassinato poderia ter sido uma emboscada
planejada “para mim” (no dizer do irmão de Gesteira), acusando um tal “Joaquim
de Emília”, que residia em casa do Dr. Olintho Meira, o que segundo a denúncia
o tornaria fisicamente incapaz de executar o crime na noite de 22 para 23, por
estar longe de São José (cerca de 14 léguas).
A essa altura, devido à comoção popular,
autoridades de Natal envolveram-se na investigação. Foi então instaurada uma
devassa policial sob a chefia do Dr. José de Moraes Guedes Alcoforado, chefe de
polícia de Natal. Ele recolheu indícios circunstanciais que recaíam sobre dois
filhos e um cunhado de Dona Josefa, senhora dos engenhos de Cajupiranga,
enviando-os ao Juiz de Direito da Comarca de São José de Mipibu para as
providências legais.
Até 27 de outubro de 1892, concluiu-se o
inquérito. O Dr. Guedes manifestou empenho em descobrir os responsáveis, mas
sem apoio local sincero ou pistas concretas, culminou com boatos divergentes,
apontando ora uns réus, ora outros, sugerindo que a acusação mudava conforme
conveniências políticas. Havia uma força maior nos fatos. Talvez uma força de
bastidores, e a roda patinava na lama.
Aos parentes de Gesteira foi concedida uma
homenagem: no lugar onde ocorreu o crime foi erguida uma cruz de mármore com
inscrições, ofertada por Lyle Nelson, Intendente de São José de Mipibu desde
outubro daquele ano (A cruz é exatamente esta da fotografia). Em 4 de outubro
houve cerimônia religiosa com benzimento da cruz, conduzida pelo reverendo
Gregório Lustosa. São José de Mipibu inteira se deslocou para a Pituba dos
Salles.
No fórum local, o promotor da Comarca denunciou Antonio Joaquim Teixeira de Carvalho (pai de Juvenal de Carvalho, que foi prefeito de São José de Mipibu), Antonio Leitão e João da Matta, residentes em Cajupiranga, entidade espírita, apenas conhecida nas evocações do espírito de Gesteira. Porém, após a fase de instrução, interrogatório de acusados, inquirição de testemunhas (mais de trinta), e oferta de cinco testemunhas adicionais pelo Ministério Público, o juiz de direito Luiz Manoel Ferreira Sobrinho julgou improcedente a denúncia e despronunciou os acusados, isto é, entendeu que não havia justificação legal para levá-los a julgamento. Segundo o relato, isso contrariou as forças políticas que queriam puni-los.
Um dado curioso desse episódio é que o
espiritismo foi usado como base para a denúncia. Foi evocado o espírito de
Gesteira, e houve quem afirmasse que falava com o espírito do infeliz morto,
que dissera ter sido efetivamente assassinado pela família de Cajupiranga,
sendo um dos executores o vaqueiro de Carvalho, de nome João da Matta, que
aliás não existe. Mas, outra vez, não havia elementos suficientes para
condenação sobretudo novo Código Penal da República pune o uso e prática do
espiritismo com penas de prisão.
Enfim,
o Juiz de Direito de São José de Mipibu julga improcedente a denúncia do
promotor daquela comarca, despronunciando os distintos cavaleiros Antonio de
Carvalho, Antonio Leitão e Joaquim de Carvalho, residentes em Cajupiranga, e
que estavam sendo processados no fórum de São José, como supostos autores do
assassinato do infeliz Gesteira, lavrador e protegido daqueles cidadãos.
O processo chegou a recorrer “ex officio”
para o Superior Tribunal do Estado, mas segundo o texto não se encontraram
indícios de que houvesse confirmação da acusação: ficou como uma espécie de
tragédia irreparável sem culpados.
Gesteira era descrito como jovem de família
modesta, porém de bom senso e reputação honrada. Ele estaria endividado em
200.000 réis com seu primo Manoel Alves Vieira d’Araújo, e teria buscado
socorro em parentes de Cajupiranga. Lá lhe concederam terra para plantar, apoio
financeiro, moradia e sustento, de modo que ele pudesse pagar a dívida. Ele
trabalhou tanto em Cajupiranga quanto em São José, onde mantinha seus pais e
roças.
Gesteira tinha desavenças com um feitor do capitão
Joaquim Silvino e um homem negro, ex-escravisado, chamado Pio, a quem acusava
de furtos em suas plantações. Circulou uma carta polêmica, supostamente
redigida em seu nome, que ofendia a honra de uma família de prestígio; ele
teria mandado que não fosse enviada por não querer envolvimento em escândalos.
Esse episódio foi usado pela polícia como elemento no inquérito.
No dia do sepultamento, prendeu-se o ex-escravisado
Pio e outro suspeito. Boatos indicavam que Pio fora visto com roupas
ensanguentadas e foice, indo lavá-las na lagoa Papary. Mas nas três dias de
prisão não houve confissão.
Durante o processo eleitoral local (intendências
municipais), surgiam boatos de que pessoas de Cajupiranga estariam envolvidas
no assassinato. O senhor Manoel Alves dirigiu ações policiais para prender
moradores de engenhos ligados à família Leitão, sob pressão para que
confessassem o crime, ainda que não houvesse provas, mas o relato denuncia forte
manipulação política, calúnia e uso da polícia local para fins pessoais,
comprometendo a justiça.
Esse parece ter sido o crime mais misterioso de São
José de Mipibu. Percebe-se que a culpa recaiu sobre pessoas aparentemente
inocentes, do Engenho Cajupiranga. Mas notamos, pelo contexto pautado de
imbróglios, que poderosos estavam por trás da execução, como
mandantes. As pessoas do Engenho Cajupiranga eram parentes do
Gesteira. Também parece que a polícia de São José de Mipibu montou um ardil
para livrar a cara dos poderosos.
O Gesteira assassinado era do lado
"pobre" da família. No local foi erguido um marco com uma cruz doada
pelo intendente Lyle Nelson, com inscrições em placas de bronze que, além de
uma tradição, ficou como uma represália para doer na consciência dos
verdadeiros mandantes do crime. A família fez questão daquele marco porque
certamente tinha boa noção dos assassinos, ou dos mandantes e, com certeza,
aquela cruz gritava...
Igreja Matriz de Santana e São Joaquim - São José de Mipibu |
Passados 133 anos, o assassinato de Gesteira
permanece como uma ferida aberta na história de São José de Mipibu. A cruz está
lá, intacta. A mata que envolvia a região rasgada por uma pequena vereda desapareceu, transformada em canavial e pasto. Hoje o local, ainda que ermo, é abraçado por algumas
casas. Mas a cruz marca a estrada da Pituba dos Salles, ecoando como símbolo de
justiça não alcançada.
O local, ainda bastante misteriooso, entre memórias, lendas e silêncios, resume as tensões de um tempo em que
a República nascente prometia igualdade, mas entregava, no interior, a mesma
lógica de poder e impunidade. Um crime sem solução, que permanece vivo na
tradição oral e no imaginário coletivo - como uma acta noturna que insiste em
não se apagar.
Enfim, o crime nunca foi esclarecido...
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NOTA: Essa cruz sempre chamou a minha atenção. Há alguns anos passei a pesquisar e reunir material, até passara a tarde por aqui, construindo o texto que ora ofereço ao povo, especialmente de São José de Mipibu. Quem me contou algumas nuanças dessa história foi meu primo Tamires Ítalo Trigueiro Peixoto, mas a maior parte foi pesquisa em documentos de época e em jornais antigos. Já ouvi muitos mipibuenses ansiosos para saber sobre o que é essa cruz, quem foi morto ali e o porquê. Pois bem, para quem nunca soube nada, eis a história de Gesteira...
quinta-feira, 25 de setembro de 2025
ENFIM, REFORMA DO TÚMULO DE NÍSIA FLORESTA...
O ato se deu à partir das 09h00, nas imediações do túmulo e do monumento à Nísia Floresta, contando com diversas autoridades, como a sra. Natália Chagas, secretária adjunta de Cultura de Parnamirim, admiradores de Nísia Floresta e abrilhantado pela banda de música do município, sob as mãos amorosas do músico maestro Almeida. À ocasião, foi instalada no local a placa contendo os dados da Ordem de Serviço e depositado uma coroa de flores sobre o túmulo.
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Prefeito Gustavo Santos (acervo Secretaria de Cultura de NF) |
Convidado a falar, agradeci o convite, parabenizei o gestor pela nobre iniciativa, sintetizei brevemente a minha relação com o município de Nísia Floresta, o trabalho de história oral iniciado ali em 1992, os diversos eventos que realizei no município em louvor à história e à memória da intelectual Nísia Floresta. Aproveitei o momento para agradecer pelo convite para o "Ato de entrega da requalificação do Cemitério Frei Herculano", ocorrido no dia 31 de julho de 2025, ocorrido no município, mas que por motivo superior, não pude estar presente. Parabenizei por mais esse ato de reparação à história do município, tendo em vista que o cemitério de Nísia Floresta é uma aula de história, pois ali está sepultado Ferreira Nobre, autor do primeiro livro sobre a História do Rio Grande do Norte, o Coronel Trajano Leocádio de Medeiros Murta, 28º presidente da província (governador) do Rio Grande do Norte, Coronel José de Araújo, primeiro presidente da Intendência (prefeito) de Papary, Roque de Albuquerque Maranhão, terceiro presidente da Intendência de Papary (casado com Luísa Peixoto, prima legítima da minha mãe, Maria Peixoto), dentre outras figuras.
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Professor Jorge Januário de carvalho, secretário municipal de cultura de Nísia Floresta (acervo Secretaria de Cultura de NF) |
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Vice-prefeita (acervo Secretaria de Cultura de NF) |
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(acervo Secretaria de Cultura de NF) |
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(acervo Secretaria de Cultura de NF) |
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Assinatura da Ordem de Serviço (acervo Secretaria de Cultura de NF) |
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Bandeiras do Brasil, de Nísia Floresta e da França, onde Nísia Floresta viveu a maior parte de sua vida (acervo Secretaria de Cultura de NF) |
8 - FRANCISCA FREIRE DO REVOREDO (1760-1840), irmã de Antônia Clara Freire do Revoredo (1780-1855), mãe de Nísia Floresta, casada com o seu primo FÉLIX FERREIRA DA SILVA II (1755-1814), são pais de: Anna Francisca Ferreira da Silva (1793 s/d.), também mencionada como Anna Francisca Freire da Silva.
10 - ANNA FRANCISCA FERREIRA DA SILVA (1793 s/d.), também mencionada como Anna Francisca e Anna Francisca Freire da Silva, casada com MANOEL JOAQUIM GRILLO (1790 s/d.), filho único, primos carnais, são pais de: Maria Jucunda Belmiro (1835 s/d. – também mencionada em assentos como Maria Zulmira Fontoura, Maria Jucunda Fontoura e Maria Grillo)
11 - MARIA JUCUNDA BELMIRO (1835 s/d.), casada com CAPITÃO JOSÉ THOMAZ DE MAGALHÃES FONTOURA (1829-1913), citado acima por Câmara Cascudo na Acta Diurna acima, pais de: - Maria Clara de Magalhães Fontoura (1861-1950)
12 - MARIA CLARA DE MAGALHÃES PEIXOTO FONTOURA (nascida em Goianinha: 1861- falecida em Natal: 1950), casada com ABEL GOMES PEIXOTO (1845-1946) são pais de: José Gomes Peixoto (1889-1958)
JOSÉ GOMES PEIXOTO (1889-1958), casado com MARIA GUEDES DE MOURA (1901-1957), casamento realizado no dia 22 de julho de 1924 em São José de Mipibu/Rio Grande do Norte, pais de: *A-6: Maria José Peixoto (1932).
13 - MARIA JOSÉ PEIXOTO (1932), casada com J. A. FREIRE (1925-2018), falecido aos 93 anos de idade, são pais de: - Luís Carlos Freire (20.11.1967).
14 - LUÍS CARLOS FREIRE (20.11.1967), casado com Alysgardênia de F.C.M.F, são pais de:
OBS. Os dados abaixo são retirados de documentos cartoriais, parte deles provém de estudos genealógicos de Felipe Trindade, Ormuz Barbalho Simonetti e de textos cascudianos diversos. Esse material está sendo organizado em livro para posterior publicação, inclusive com a História de Francisca Clara Freire do Revoredo, bisavó da minha bisavó. OBS. Para que essa informação não ficasse longa, coloquei apenas o nome do casal e do filho – ou filha – que gerou a próxima família. Se fosse mencionar os nomes de todos os filhos, ficaria muito extenso, e não é esse o fito desta publicação.
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Fonte: Fábio (SEMUC) |
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Acervo: Fábio - SEMUC |
sábado, 20 de setembro de 2025
ACTA NOTURNA - SETEMBRO DE 1954 EM NÍSIA FLORESTA...
Setembro de 1954 desponta nas páginas da história como o mês em que o Brasil reparou uma dívida histórica com a intelectual Nísia Floresta Brasileira Augusta (1810-1885) e com o município em que ela nasceu.
O túmulo foi localizado 1950 em Rouen, após quase setenta anos em solo francês, pelo jornalista cearamirinense, Orlando Dantas (1896-1953), mas só em 1954 se efetivou o traslado. O intelectual Marciano Alves Freire, presidente do Centro Norte-Rio-Grandense do Rio de Janeiro, recebeu incumbência do Governo Brasileiro para essa missão, e no começo de setembro, começava-se o processo de devolução não só de um corpo mumificado – quase intacto –, mas de identidade, memória e reconhecimento.
A decisão de trasladar o corpo da escritora, nascida em Papary - município que em 1948 mudara oficialmente de nome para Nísia Floresta -, contou com forte articulação política, intelectual e diplomática desde meado da década de 30 do século XX, com destaque para Henrique Castriciano de Souza (1874-1947) e Adauto da Câmara Miranda Henrique (1898-1952), esse último, seu primeiro biógrafo (ambos morreriam sem ter realizado o desejo de ver o traslado).
Em 1954 o governo francês autorizou a
exumação, e autoridades brasileiras, respaldadas pelo Itamaraty, lideravam os
trâmites para que nada faltasse na cerimônia de retorno, com apoio do
presidente da república João Café Filho, coincidentemente norte-rio-grandense.
Na manhã de 5 de setembro, o navio
Loide-Brasil aportou em Recife trazendo a urna funerária. Já ali se viveu
tensão: autoridades alfandegárias demandaram documentação precisa, relutaram em
liberar o ataúde, por entenderem-no como “carga especial”. Só a intervenção do
presidente Café Filho (1899-1970) garantiu que o corpo seguisse sua marcha. A
chegada foi anunciada com solenidade: representações literárias e acadêmicas,
entre elas a Academia Pernambucana de Letras, estiveram presentes, cujo caixão
foi velado nessa instituição; Nilo Pereira, importante figura intelectual
pernambucana, foi um dos que o acolheu.
Seis dias depois, em 11 de setembro, o poema do retorno tocou Natal, capital do Rio Grande do Norte. O caixão chegou pela Base Naval, aproximadamente nesse local foi exposto ao povo no instituto de Educação, aos cuidados da professora Chicuta Nolasco (1908-1995), vigiado por forças da Marinha e da Aeronáutica, com cortejo, bandas de música e manifestantes emocionados. O Rio Grande do Norte era governado por Sylvio Pedroza (1918-1998).
O município de Natal, sob a administração do prefeito
Wilson de Oliveira Miranda (1919-1988) participou de forma significativa por
meio da Prefeitura Municipal, da Igreja Católica e de instituições culturais e
de imprensa. Em Natal, celebrou-se missa de encomendação com Monsenhor João da
Mata Paiva (1897-1965), e naquele mesmo dia foi lançado selo dos Correios como
homenagem postal ao regresso de Nísia, gesto que expressava o cunho nacional
que aquela devolução representava.
No dia 12 de setembro, o cortejo seguiu para o município de Nísia Floresta. A cidade que havia sido chamada Papary, agora definitivamente homenageava sua filha ilustre. A Prefeitura local, sob os préstimos do prefeito José Ramires da Silva (*16.6.1923+25.3.2000), junto com autoridades estaduais, vereadores, Igreja paroquial e cidadãos comuns, preparou recepção popular. O ataúde foi conduzido em procissão pelas ruas até a Igreja Matriz de Nossa Senhora do Ó, onde foi celebrada missa solene pelo jovem padre Rui Miranda (1928-2011), que contava com 26 anos à ocasião.
Como o mausoléu definitivo
ainda não estava pronto, os restos mortais ficaram provisoriamente depositados
na Matriz, até que se concluísse a construção do túmulo no Sítio Floresta, em
1955, quase nove meses após a chegada, ao lado do monumento que havia sido
erguido em 1909, justamente sobre as ruínas da casa onde Nísia residiu. Esse
monumento foi erguido para se comemorar o centenário do seu nascimento, embora
que adiantaram um ano, tendo em vista que ela nasceu em 1810.
Outras instituições fizeram-se presentes: a imprensa local e regional, jornais do Rio Grande do Norte e de Pernambuco cobriram o evento, relatos destacam o envolvimento de cidadãos, associações culturais e entidades religiosas. Aviões sobrevoaram o local do cortejo, em Nísia Floresta, despejando panfletos com o retrato de Nísia Floresta e sua biografia preparada por Luís da Câmara Cascudo (1898-1986).
A
recepção não foi só de autoridades, mas de professores, estudantes, moradores
das comunidades rurais próximas, que vieram às ruas para saudar o corpo da
escritora que, décadas antes, havia deixado sua terra para viver entre
realidades de ‘exílio’ e inovação intelectual.
Esse conjunto de momentos - a chegada
conturbada a Recife, a consagração pública em Natal, a emoção em Nísia Floresta
- representa mais do que uma simples cerimônia: simboliza o retorno de algo
muito maior do que restos mortais. É o regresso da voz de uma mulher que falou
de igualdade, liberdade e educação quando ainda poucos se atreviam, é a
coroação de sua memória com o reconhecimento coletivo.
sexta-feira, 19 de setembro de 2025
QUEM SEMEIA ARTE, COLHE CORAÇÕES...
Seu trabalho vai muito além do magistério. Ao conduzir seus alunos a novos horizontes, ela os ensina a olhar o mundo de maneira ampla, despertando a capacidade de pensar com profundidade e sensibilidade, inserindo-os em campos diversos que saltam os muros da escola e percorrem os mais significativos espaços, ora em Parnamirim, ora em Natal.
Como artista plástica, abre caminhos para que cada estudante descubra possibilidades no universo criativo, incentivando talentos e formando olhares atentos à beleza. Essa nova pegada no campo das aquarelas de café, em que ela se exercita há mais de um ano, é surpreendente, pois tanto ela como os alunos avançaram anos luz quando olhamos os primeiros trabalhos e os últimos. Há um avanço de técnica, de criatividade, de filosofia, de viagem que só mesmo o arista é capaz. Estudei aquarela e sei que é uma técnica que sangra.
Ana Catarina vem tornando férteis as terras de Parnamirim ao "produzir" artistas. Sua prática é dinâmica, sempre inovadora com a característica nobre do voluntariado. Há nessa mulher a intenção admirável de oportunizar aos jovens sair do lugar comum e ver o mundo de cima, como águia. Com esse trabalho tão bonito, Ana Catarina se projeta no seio da sociedade por excelência, e isso se torna grandioso porque ela o faz de mãos dadas com os jovens.
Na área da Língua Portuguesa, sua contribuição também é notável. Autora de dois livros que merecem ocupar as prateleiras de escolas e bibliotecas, Ana Catarina oferece obras que dialogam com crianças, jovens, pais e educadores. Ler seus textos é mergulhar em uma escrita clara, amorosa, formadora e sensível, que tem valor duradouro para a formação de leitores e cidadãos.
Um traço marcante de sua personalidade é a humildade de reconhecer no outro uma fonte de inspiração. Ela está sempre buscando aprender com os mestres milenares, com os mestres dos livros e com os mestres do mundo real daqui e dali. Ao afirmar a colegas de profissão: “você me inspira, aprendi muito com você”, revela um espírito raro. Essa capacidade de aprender com o próximo lembra o pensamento de Sócrates, que dizia: “Só sei que nada sei”. A grandeza está em admitir a incompletude e, a partir dela, seguir aprendendo. Poucos têm essa disposição, mas Ana Catarina demonstra diariamente que a gratidão e o reconhecimento fazem parte de uma alma superior.
Em suas aulas, conduz os alunos como quem mergulha em águas profundas, oferecendo-lhes conhecimentos que os preparam para passos futuros. Assim como Paulo Freire defendia que ensinar exige coragem e generosidade, Ana Catarina assume essa missão com inteireza, mostrando que educar é, antes de tudo, acreditar no potencial humano.
Por tudo isso, afirmo que Ana Catarina da Silva Fernandes é uma das grandes sustentadoras da educação, da arte e da literatura dessa terra de Manoel Machado, de Salizete Freire, de Francisca Henrique e de tantas figuras especiais. Ao lado de outros profissionais que marcam história em suas áreas, ela se destaca como exemplo de professora, escritora e artista, inspirando não apenas seus alunos, mas todos aqueles que acompanham sua caminhada.
segunda-feira, 15 de setembro de 2025
domingo, 14 de setembro de 2025
UMA VISITA À "IGREJA DO GALO"...
Era exatamente 16h00 quando atravessei a porta da Igreja do Galo, na Cidade Alta de Natal na última segunda-feira. O sol ainda dourava as fachadas antigas como pode se perceber nas fotografias, e eu, com o coração aberto ao inesperado, não imaginava que estava prestes a ser tomado por uma emoção profunda. Até então eu não sabia, mas os fiéis, contritos, aguardavam confissão. Então, invisível e mudo, divaguei pelo templo.
Fundada em 1766 e dedicada a
Santo Antônio, este templo é muito mais que um edifício religioso: é uma
cápsula de tempo, um respiro da própria alma potiguar. Há um mistério na aura local. Ao entrar, senti um
silêncio tão denso que parecia falar comigo. É como se cada pedra, cada madeira
e cada tijolinho branco guardasse vozes e passos de séculos atrás. Eu estava
dentro da terceira igreja mais antiga da cidade — e que o nome “Igreja do Galo”
nascera de um detalhe quase poético: um galo de bronze, presente de um
capitão-mor da capitania, colocado no alto da torre como guardião eterno da
cidade.
Meus olhos se demoraram no piso
antigo, ora de pedras – como fossem cantarias – ora de ladrilho hidráulico, ora de tijolinhos brancos.
Eles parecem conter, em suas ranhuras, histórias de devoção e despedidas,
orações e esperanças. Do lado de fora as pedras entalhadas parecem peças de
museu. Caminhar sobre eles era quase como pisar sobre páginas de um livro
escrito em silêncio. Os altares laterais – todos em madeira nua - me chamaram
com intensidade: santos com expressões fortes e humanas, alguns sérios, quase
austeros, outros com ternura no olhar, como quem oferece consolo. O dourado,
longe de parecer velho, traz a beleza daquilo que resiste ao tempo — uma
dignidade que só os séculos são capazes de dar.
A arquitetura barroca me cercou
como um abraço feito de linhas e curvas que se elevavam, todas, na mesma
direção: o céu. Não há excessos; havia música em pedra e madeira. O convento ao
lado, hoje sob os cuidados dos Capuchinhos, fez-me pensar no curioso destino
dos lugares: já fora quartel de militares, colégio, abrigo... e hoje respira
oração e fraternidade. Quantas transformações cabem num só espaço?
No coração da igreja, outra
revelação: o Museu de Arte Sacra. Ali, entre imagens barrocas e neoclássicas,
pinturas, paramentos, pratarias e móveis antigos, senti como se tocasse não
apenas objetos, mas memórias vivas. Cada peça aparenta guardar não apenas a
beleza da forma, mas também a devoção daqueles que a usaram. Era arte, mas era
também fé petrificada.
E foi então que, ao olhar pela
lateral, vi o jardim, tal qual os jardins típicos dos mosteiros antigos, abraçado pelas grossas paredes caiadas, destacadas pelo azul royal. Um recanto singelo, mas de uma força arrebatadora.
Entre flores e sombras brandas, vi fiéis confessando-se com os freis.
Aquela cena me comoveu profundamente: as palavras ditas em voz baixa, inaudíveis, entrecortadas pelo canto dos pássaros, faziam do próprio jardim um confessor
silencioso. Pensei, então, na delicadeza da fé — tão discreta, tão íntima, mas
ao mesmo tempo tão presente.
Bem ao lado da confissão, uma
parede guardava túmulos de gente que morreu há séculos. O local soou-me
impregnado de mistérios.
Ali compreendi que a Igreja do
Galo não é apenas um patrimônio tombado, um ponto turístico ou uma bela
construção barroca. É um coração pulsante da cidade, guardiã de uma história
que inclui mais de dois séculos da Trezena de Santo Antônio, festa que
atravessou gerações e se fez tradição viva.
Saí, por fim, com a alma leve,
tomado por uma sensação rara: a de que não fui eu quem visitou a Igreja do
Galo, mas ela quem abriu seus braços para me acolher. E naquele fim de tarde,
às 16h00, percebi que algumas experiências não se explicam com razão, apenas
com encantamento.
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Casarão do arcebispo metropolitano. Esse imóvel tem mais de 200 anos. |