Na
adolescência recordo-me de uma família que chegou à cidade em que nasci, vinda
de algum lugar que eu nunca soube. Eles chegaram como ciganos, mas enquanto
esses estão de passagem, essa família instalou-se no município e ficou. Moravam
num local afastado do centro. Eles eram muito pobres. Creio que alguém
emprestou um cômodo abandonado e ela ampliou o local com restos de madeiras
catadas no lixo e lonas pretas. O fogão a lenha ficava nos fundos. Não sei se
eles ainda residem lá nem como se encontram. A pobreza neles não era apenas uma
condição econômica, mas uma prisão espiritual, emocional, psicológica e
existencial. Eram pobres de Jó, como dizem.
A pobreza neles ia muito além da questão
material; era uma condição que minava a dignidade humana e distorcia o amor.
Eles viviam num estado constante de privações, onde cada ação, cada sentimento,
era filtrado pela humilhação e pela escassez de tudo. Aquela família tão pobre
e empobrecida de tudo permitia-me sentir como a pobreza destrói a própria
essência das pessoas, corroendo-lhes a autoestima, a esperança e até mesmo a
capacidade de sonhar. Todos os filhos daquela mulher eram problemáticos.
Aquela miséria me causava perplexidade e
profunda compaixão. Mas o que mais me chamava a atenção naquele cenário triste
era a postura daquela mulher pobre. Ela tinha uma dignidade que não sei de onde
vinha. Essa dignidade se traduzia no esforço para manter uma aparência de
honra, mesmo quando o mundo os desprezava. A mulher pobre trazia uma postura
naturalmente imperiosa. Havia nela uma classe, um aspecto lorde, como se fosse
a rainha que ficou na miséria, mas conservou a majestade.
A mulher pobre personificava a luta
entre o orgulho e a humilhação. Apesar de sua situação deplorável, ele tentava
manter uma imagem de dignidade, vestindo-se impecavelmente. Entendam por
“impecavelmente” um figurino que certamente era roupas recebidas de doação, mas
ela conseguia o prodígio de montar um figurino completo, do sapato ao “tailleur”.
Ainda que isso significasse sacrificar o pouco
que eles tinham. Esse comportamento revela o desejo desesperado da mulher pobre
de ser visto como alguém de valor, de ser reconhecido como um ser humano digno.
A dignidade, para ela, é um último recurso, algo que ele não pode perder sem
perder-se por completo.
Sei que aquela mulher pobre não sabia
nada sobre a realeza, apenas externava uma aura de rainha por excelência.
Recordo-me que ela passava na frente da minha casa e chamava a atenção. Seu
penteado era diferente de todas as mulheres da cidade. Era um coque muito
imponente, elaborado sobre a uma cabeleira farta e um pouco grisalha. Seus
sapatos eram desgastados, tronchos, mas ela conseguia andar como se rainha
fosse. Trazia sempre uma bolsa pequena – de mão – e sua postura corporal
destoava de todas as mulheres da cidade. Quando eu via a mulher pobre andando
na cidade em alguma demanda pessoal, enxergava as rainhas que via na televisão.
Muitos debochavam daquela mulher pobre,
certamente supondo que ela queria ser rica ou até mesmo superior a tantas
famílias ricas da cidade, inclusive famílias de grandes fazendeiros locais,
cujos modos grosseiros e espetaculosos, passavam longe da elegância daquela
mulher pobre. Mas havia naturalidade nos modos imponentes e lordes da mulher.
Não era um tipo que ela criou para si, nem havia teatro nela. Aquilo tudo
traduzia o seu eu. É possível imaginar que as mulheres ricas da cidade, se
pudessem e tivessem humildade, pediriam aulas de elegância àquela mulher, pois elegância
jorrava nela como água na fonte. Era muito educada, fina, comedida, polida,
desde o olhar cheio de autoridade à fala mansa, serena e o uso do português
correto. Sabia entrar e sair de qualquer lugar da forma mais respeitosa e
civilizada possível.
A existência daquela mulher pobre parecia
soar como um mecanismo de crítica social, expondo a hipocrisia e a indiferença
da sociedade local em relação aos desfavorecidos. Juro que consigo pensar isso. Ela dava aulas
magnas sem precisar se dirigir a ninguém. Naquele tempo não existiam políticas
públicas de assistência social, iguais à atualidade, de maneira que pobres eram
eternamente pobres e fadados a se tornarem miseráveis. Aquela mulher pobre
representava muitos outros pobres e miseráveis iguais a ela que viviam à margem
– ali mesmo na cidade –, ignorados pelo governo e desprezados pelas classes
superiores.
Aquela mulher pobre soava como uma
denúncia de o quanto a sociedade reduz os pobres a meros objetos de caridade ou
de repulsa, ignorando suas complexidades e seus sofrimentos, portanto a imagem
daquela mulher pobre contrastava com tudo, tornando-a notada por onde passasse.
Ela mantinha a sua diplomacia mesmo chegando ao final da feira ou num bazar de
caridade para receber roupas dadas pela primeira dama da cidade.
Aquela mulher pobre, sem nunca ter
falado comigo, deu-me uma aula que me ensinou que a pobreza é uma prisão que
vai além da fome, da sede, do frio, do desprezo dos ricos e de tudo o que
consiste em humilhação. É uma condição que aprisiona a mente e o espírito.
Aquela mulher pobre nunca demonstrou preocupação em ser humilhada, pois os
espinhos sangrentos da humilhação não a atingiam por dentro. Ela acreditava que o menor deslize poderia
arruinar sua vida, pois sabia que não há margem de segurança para os pobres.
Esse estado de tensão constante é uma crítica à falta de mobilidade social e à
ausência de um sistema de apoio para os desfavorecidos. Sem giz nem lousa ela
ensinava que a pobreza e a miserabilidade humana não se resumem apenas a falta
de dinheiro, mas uma espiral de insegurança e vulnerabilidade que afeta todos
os aspectos da vida de uma pessoa.
Aquela mulher pobre nos permitia
explorar as contradições e as profundezas emocionais dela e de sua família e de
outras famílias em igual situação. Ela representava a resiliência silenciosa
das mulheres pobres, que enfrentam adversidades sem perder completamente sua
capacidade de sonhar. Ela sabia, percebia, sentia a amargura da humilhação, mas
aceitava – ou aprendia a conviver com aquilo – porque era tudo o que lhe restava.
A aceitação daquela mulher pobre refletia uma resignação melancólica, uma
percepção de que suas escolhas são limitadas pela pobreza e pelo papel social
que lhe é imposto. A única coisa que destoava de tudo era como ela conseguia
ter uma aura de rainha em meio aos escombros da pobreza extrema.
Ter conhecido aquela mulher pobre pude
perceber as mais variadas facetas da alma humana. A miséria não cria
necessariamente heróis ou vilões, mas seres humanos marcados por fraquezas e
forças, desejos e desilusões. A miséria pode até destruir alguém, mas haverá
quem resistirá como fortaleza de pedra. Os pobres não são caricaturas, mas
indivíduos complexos, cujas ações são moldadas por circunstâncias que eles não
podem controlar. Com aquela mulher pobre foi assim. Ela não conseguia controlar
a nobreza natural que havia dentro dela.
Aquela mulher pobre ampliou em mim a
compaixão. Aprendi em suas aulas que sofrimento humano nunca deve ser objeto de
riso nem de desprezo, mas um instrumento de compreensão da condição humana. A
pobreza e um câncer que corrói a dignidade, a esperança e o amor. Aquela mulher
pobre ampliou em mim o sentimento de empatia. Ela alargou o meu olhar,
tornando-o capaz de penetrar a superfície da condição humana e revelar o
sofrimento silencioso, a força invisível daqueles que lutam para viver em um
mundo que os ignora. Aquela mulher pobre me fez sentir a minha pequenez diante
do sofrimento alheio.
Aquela mulher pobre não me ofereceu soluções
ou consolos fáceis. Ela apenas me confrontou com a verdade de que a miséria é,
em última instância, uma condição que desumaniza e que apenas a compreensão e a
empatia podem, ainda que brevemente, aliviar. Aquela mulher pobre não é um
grito de revolta, mas um sussurro de angústia, um ser nobre, superior que, ao
expor a fragilidade humana, revela também a sua resiliência. Ela me ensinou a
lutar contra a pobreza e contra quem massacra os pobres.
Aquela mulher pobre, paradoxalmente, foi
a mulher mais rica que conheci.
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