O corpo de Gesteira foi encontrado na estrada
ao amanhecer, próximo à localidade denominada “Pituba do Salles”, local ermo,
esquisito e de mata fechada, subúrbio de São José de Mipibu. Gesteira recebeu oito facadas e um corte profundo de foice.
Ele vivia em São José, mas havia se retirado para
sua casa em Pituba do Salles naquela noite. Era descrito como “moço muito
estimado e pacífico”, sem inimizades aparentes na cidade, pertencente a uma
família local respeitada.
São José de Mipibu parou. A revolta era
geral. O professor Elias Souto, abolicionista, político e jornalista local,
fundador do jornal Diário de Natal, dirigiu severas críticas à autoridade
policial local, acusando negligência do delegado Tiburtino de Azevedo
Mangabeira (nomeado por decreto em 11 de agosto para a Comarca de São José de
Mipibu, 13º batalhão de Infantaria). Segundo Elias, enquanto caiam os sinos
fúnebres de consternação pública, o delegado cortava carne no açougue e
soldados permaneciam inertes no corpo de guarda da cadeia, sem diligências
imediatas para elucidar o assassinato. Não se viam da parte das autoridades
qualquer ato proativo e esse estranho gesto revoltou a população.
| Fonte: Loja Maçônica São José Nº 14: SÃO JOSÉ DE ANTIGAMENTE |
No dia 26, a polícia prendeu operários em Cajupiranga, que à época, antes do desmembramento de Papary (hoje Nísia
Floresta), pertencia a São José de Mipibu, local associado à lavoura e engenhos
de parentes próximos da família Leitão, de grande prestígio na região. Um
indivíduo chamado Manoel Alves (que exercia influência local) teria instigado
que os presos fossem interrogados publicamente, procurando forçar que
denunciassem que o assassinato fora cometido por dois jovens primos da família
Leitão, que eram amigos de Gesteira. O relato defende que esses moços, embora
acusados sem base consistente, tinham reputações irrepreensíveis e eram
próximos de Gesteira, sem motivo de conflito. Começa aí uma série de fatos
esquisitos e que alçariam o bizarro, como veremos.
Paralelamente, surgiu outra linha de
suspeita: um irmão de Gesteira teria tido uma disputa de terra com habitantes
de um lugar chamado “Língua de Vaca”. Ele teria, segundo se dizia, tomado uma
escritura de venda de terra dos indivíduos, sob alegação de que o vendedor (já
falecido) não estaria autorizado para vender porque a terra pertenceria às suas
filhas e ao genro. Isso suscitava uma hipótese de que o assassinato de Gesteira
poderia ser consequência indireta desse litígio, talvez por engano ou vingança.
O assassinato poderia ter sido uma emboscada
planejada “para mim” (no dizer do irmão de Gesteira), acusando um tal “Joaquim
de Emília”, que residia em casa do Dr. Olintho Meira, o que segundo a denúncia
o tornaria fisicamente incapaz de executar o crime na noite de 22 para 23, por
estar longe de São José (cerca de 14 léguas).
A essa altura, devido à comoção popular,
autoridades de Natal envolveram-se na investigação. Foi então instaurada uma
devassa policial sob a chefia do Dr. José de Moraes Guedes Alcoforado, chefe de
polícia de Natal. Ele recolheu indícios circunstanciais que recaíam sobre dois
filhos e um cunhado de Dona Josefa, senhora dos engenhos de Cajupiranga,
enviando-os ao Juiz de Direito da Comarca de São José de Mipibu para as
providências legais.
Até 27 de outubro de 1892, concluiu-se o
inquérito. O Dr. Guedes manifestou empenho em descobrir os responsáveis, mas
sem apoio local sincero ou pistas concretas, culminou com boatos divergentes,
apontando ora uns réus, ora outros, sugerindo que a acusação mudava conforme
conveniências políticas. Havia uma força maior nos fatos. Talvez uma força de
bastidores, e a roda patinava na lama.
Aos parentes de Gesteira foi concedida uma
homenagem: no lugar onde ocorreu o crime foi erguida uma cruz de mármore com
inscrições, ofertada por Lyle Nelson, Intendente de São José de Mipibu desde
outubro daquele ano (A cruz é exatamente esta da fotografia). Em 4 de outubro
houve cerimônia religiosa com benzimento da cruz, conduzida pelo reverendo
Gregório Lustosa. São José de Mipibu inteira se deslocou para a Pituba dos
Salles.
No fórum local, o promotor da Comarca denunciou Antonio Joaquim Teixeira de Carvalho (pai de Juvenal de Carvalho, que foi prefeito de São José de Mipibu), Antonio Leitão e João da Matta, residentes em Cajupiranga, entidade espírita, apenas conhecida nas evocações do espírito de Gesteira. Porém, após a fase de instrução, interrogatório de acusados, inquirição de testemunhas (mais de trinta), e oferta de cinco testemunhas adicionais pelo Ministério Público, o juiz de direito Luiz Manoel Ferreira Sobrinho julgou improcedente a denúncia e despronunciou os acusados, isto é, entendeu que não havia justificação legal para levá-los a julgamento. Segundo o relato, isso contrariou as forças políticas que queriam puni-los.
Um dado curioso desse episódio é que o
espiritismo foi usado como base para a denúncia. Foi evocado o espírito de
Gesteira, e houve quem afirmasse que falava com o espírito do infeliz morto,
que dissera ter sido efetivamente assassinado pela família de Cajupiranga,
sendo um dos executores o vaqueiro de Carvalho, de nome João da Matta, que
aliás não existe. Mas, outra vez, não havia elementos suficientes para
condenação sobretudo novo Código Penal da República pune o uso e prática do
espiritismo com penas de prisão.
Enfim,
o Juiz de Direito de São José de Mipibu julga improcedente a denúncia do
promotor daquela comarca, despronunciando os distintos cavaleiros Antonio de
Carvalho, Antonio Leitão e Joaquim de Carvalho, residentes em Cajupiranga, e
que estavam sendo processados no fórum de São José, como supostos autores do
assassinato do infeliz Gesteira, lavrador e protegido daqueles cidadãos.
O processo chegou a recorrer “ex officio”
para o Superior Tribunal do Estado, mas segundo o texto não se encontraram
indícios de que houvesse confirmação da acusação: ficou como uma espécie de
tragédia irreparável sem culpados.
Gesteira era descrito como jovem de família
modesta, porém de bom senso e reputação honrada. Ele estaria endividado em
200.000 réis com seu primo Manoel Alves Vieira d’Araújo, e teria buscado
socorro em parentes de Cajupiranga. Lá lhe concederam terra para plantar, apoio
financeiro, moradia e sustento, de modo que ele pudesse pagar a dívida. Ele
trabalhou tanto em Cajupiranga quanto em São José, onde mantinha seus pais e
roças.
Gesteira tinha desavenças com um feitor do capitão
Joaquim Silvino e um homem negro, ex-escravisado, chamado Pio, a quem acusava
de furtos em suas plantações. Circulou uma carta polêmica, supostamente
redigida em seu nome, que ofendia a honra de uma família de prestígio; ele
teria mandado que não fosse enviada por não querer envolvimento em escândalos.
Esse episódio foi usado pela polícia como elemento no inquérito.
No dia do sepultamento, prendeu-se o ex-escravisado
Pio e outro suspeito. Boatos indicavam que Pio fora visto com roupas
ensanguentadas e foice, indo lavá-las na lagoa Papary. Mas nas três dias de
prisão não houve confissão.
Durante o processo eleitoral local (intendências
municipais), surgiam boatos de que pessoas de Cajupiranga estariam envolvidas
no assassinato. O senhor Manoel Alves dirigiu ações policiais para prender
moradores de engenhos ligados à família Leitão, sob pressão para que
confessassem o crime, ainda que não houvesse provas, mas o relato denuncia forte
manipulação política, calúnia e uso da polícia local para fins pessoais,
comprometendo a justiça.
Esse parece ter sido o crime mais misterioso de São
José de Mipibu. Percebe-se que a culpa recaiu sobre pessoas aparentemente
inocentes, do Engenho Cajupiranga. Mas notamos, pelo contexto pautado de
imbróglios, que poderosos estavam por trás da execução, como
mandantes. As pessoas do Engenho Cajupiranga eram parentes do
Gesteira. Também parece que a polícia de São José de Mipibu montou um ardil
para livrar a cara dos poderosos.
O Gesteira assassinado era do lado
"pobre" da família. No local foi erguido um marco com uma cruz doada
pelo intendente Lyle Nelson, com inscrições em placas de bronze que, além de
uma tradição, ficou como uma represália para doer na consciência dos
verdadeiros mandantes do crime. A família fez questão daquele marco porque
certamente tinha boa noção dos assassinos, ou dos mandantes e, com certeza,
aquela cruz gritava...
| Igreja Matriz de Santana e São Joaquim - São José de Mipibu |
Passados 133 anos, o assassinato de Gesteira
permanece como uma ferida aberta na história de São José de Mipibu. A cruz está
lá, intacta. A mata que envolvia a região rasgada por uma pequena vereda desapareceu, transformada em canavial e pasto. Hoje o local, ainda que ermo, é abraçado por algumas
casas. Mas a cruz marca a estrada da Pituba dos Salles, ecoando como símbolo de
justiça não alcançada.
O local, ainda bastante misteriooso, entre memórias, lendas e silêncios, resume as tensões de um tempo em que
a República nascente prometia igualdade, mas entregava, no interior, a mesma
lógica de poder e impunidade. Um crime sem solução, que permanece vivo na
tradição oral e no imaginário coletivo - como uma acta noturna que insiste em
não se apagar.
Enfim, o crime nunca foi esclarecido...
..............................................................
NOTA: Essa cruz sempre chamou a minha atenção. Há alguns anos passei a pesquisar e reunir material, até passara a tarde por aqui, construindo o texto que ora ofereço ao povo, especialmente de São José de Mipibu. Quem me contou algumas nuanças dessa história foi meu primo Tamires Ítalo Trigueiro Peixoto, mas a maior parte foi pesquisa em documentos de época e em jornais antigos. Já ouvi muitos mipibuenses ansiosos para saber sobre o que é essa cruz, quem foi morto ali e o porquê. Pois bem, para quem nunca soube nada, eis a história de Gesteira...

Nenhum comentário:
Postar um comentário