MATARAM O PADRE!
ACTA NOTURNA - O ASSASSINATO DO PADRE DA VILA IMPERIAL DE PAPARY - 1833 (1.8.1993)
O relógio informava treze horas do dia 21 de novembro de 1833 no centro da Vila de Papary. O sol forte e alguns poucos transeuntes que passavam na hora sagrada da sesta, testemunharam cena chocante: um homem muito conhecido na vila se aproxima do padre local, portando uma pistola. Em fração de segundos eles trocam breves palavras. O homem desfere-lhe um tiro a queima roupa e desaparece a pé. O religioso tomba ali mesmo, imóvel. Ninguém mais o viu o assassino. Surge um turbilhão de curiosos (de frente onde hoje está o mercado de Totoca). Pessoas correm amedrontadas. Outras, acodem o vigário querido por todos. Mas é tarde, o religioso está morto!
Mataram o padre!
Mataram o padre!
Mataram o padre!
Era pontualmente 13h00. Uma hora da tarde.
Os gritos soaram uníssonos nas vozes paparienses.
Os mais próximos entenderam a motivação daquele crime, mas boa parte da população buscava explicação para tamanha barbaridade.
“Como pode alguém matar um padre, homem ungido por Deus?” – teriam pensado.
Mas o que foi isso?
Por que esse ato escabroso?
O leitor deve estar perguntando "quem são essas duas pessoas? Por quê?"
Vamos por parte: o religioso assassinado era Antonio Gomes de Leiros, primeiro vigário da história da Igreja Matriz de Nossa Senhora do Ó. Era norte-riograndense e estava na vila há quase dois anos, tendo chegado ali pouco tempo depois da criação da “Freguesia de Nossa Senhora do Ó”.
O Padre Leiros, como era conhecido, formou-se no Seminário Episcopal de Nossa Senhora da Graça, em Olinda, PE, tendo sido ordenado em 1833. Como o daguerrótipo ainda não havia chegado por aqui, era novidade, não existem imagens desse sacerdote.
Ele estava no auge da jovialidade, e com pouco tempo de estadia no local, conquistou a todos, passando a ser admirado e querido. Eventualmente era convidado pelos paroquianos para fazer refeições em suas casas. Cada dia um novo convite. Essas coisas típicas de lugares interioranos. Assim jorrava o cotidiano do vigário depois das obrigações sacerdotais na bucólica vila.
Mas, então, o que ocorreu? Por que alguém mataria uma pessoa tão querida e, ainda mais, um religioso? Embora não justifica, esse crime tem pelo menos uma explicação. Na realidade foi a culminância de uma contenda que se desenhava meio quieta, há meses.
Naquela época o cenário urbano da vila era muito diferente, emoldurado de floresta. Existia uma localidade próxima à Igreja Matriz, denominada “Sítio Bica”, exatamente no local que abrange o sitio do sr. “Deca Severo” e que se estende até a “Bica” atual (próxima da residência do sr. “Veinho”).
Pelo aspecto atual dá para deduzir a beleza do lugar à época, somada a prosperidade do solo, pois era farto em plantações de frutas, tubérculos, além de serpentear veios d'água aqui e alí, inclusive uma nascente fluente, muito bonita, que alimenta uma espécie de balneário construído há mais de cem anos pelo presidente da Intendência Coronel José de Araújo.
Essa vasta propriedade despertou cobiça no padre, pois, ignorando que ela pertencia ao Sr. Tomás Marinho, tentou se apossar dela, aproveitando o seu status de padre. Condição esta que, àquela época, era muito diferente de hoje. Os padres daqueles primórdios, por serem concebidos como representantes da igreja interpretada como 'fundada por Deus', legava-lhes uma espécie de devoção de realeza. Pois bem, os olhos gordos do padre revoltaram o proprietário.
Como argumento, o religioso alegou que o referido sítio estava em área pertencente ao patrimônio da igreja. Para conseguir o seu intento, contratou um advogado que elaborou uma diabólica argumentação. Era o Dr. Manoel Gabriel de Carvalho, verdadeiro capeta! E, somado a sua função de sacerdote – espécie de reinado para uma época de grandes ignorâncias, Pe. Leiros investiu nesse empreendimento como leão atrás de uma presa. A contenda rolou por meses a fio. Até que um dia saiu o resultado:
“O padre ganhou a causa”.
Todos anunciavam aos sete cantos. Tomás Marinho ficou decepcionado. O resultado soou como uma facada no seu coração! Os nativos, conhecedores dos fatos, sabendo que aquelas terras caminhavam com a família Marinho há tempos incalculáveis, começaram a indagá-lo. Grande parte dos paparienses se revoltou também. Alguns passaram a debochar, chamando-o de mole.
- Taí, a terra não era vossa? Agora é do padre! E vosmecê, como vai ficar?
De uma hora para a outra o assunto tomou conta das bodegas, dos cercados, das esquinas... A cada dia o sofrimento do agricultor aumentava. Tomás Marinho ficou mastigando aquele ressentimento, tendo em vista que era homem da terra, do roçado, da enxada. Estava humilhado, ultrajado e roubado. Seu maior gosto era a roça, o cercado. Ficou impotente.
Como brigar com "um rei"? E no bojo dessa amargura, ele jurou vingar aquela injustiça. Infelizmente cumpriu a palavra no centro da vila e saiu em disparada no meio das abundantes matas que emolduravam a velha Papary.
A vila ficou em choque. Se um crime feito a um cidadão comum causava horror, imagine matar um padre! Era escabroso demais. Mas ele foi capturado e levado a prisão em Natal. O assunto tomou conta das cidades e vilas próximas. Ninguém falava n'outra palestra.
Mas como muitas pessoas não são blindadas à corrupção, algum amigo de Tomás Marinho, oriundo da vila de Papary, conseguiu subornar o carcereiro com a importância de “quinhentos mil réis” (moeda originada no período Colonial por influência do monetário português, não se tratava de uma moeda genuinamente brasileira).
Nesses conformes, Tomás Marinho desapareceu na noite escura, tendo mal esquentando a cela. Houve uma devassa nas imediações da Casa de Câmara e Cadeia. Em vão. O assassino encantou-se (a gente até lembra o filme "Fuga Para Alcatraz"). Seis anos após o crime, em 1839, o comandante do Destacamento do Corpo de Polícia da Vila Nova da Princesa, hoje denominada Assú, recebeu uma denúncia. Comentavam que um homem de comportamento muito estranho rondava aquela vila a certo tempo.
"Era esquisito, desconfiado, como se tivesse sempre atento com receio de alguém”, diziam.
Investigando o fato, o referido comandante, tenente José Antonio de Souza Caldas, constatou tratar-se de Tomás Marinho, e imediatamente foi ao seu encalço. Foi um reboliço na Vila Nova de Princesa. Gente correndo, cachorro latindo, tiro pro alto. E nada. Tomás Marinho sumiu como água em chapa quente. Mas como ninguém desaparece como "Jeannie é um gênio" (lembram dela?), de repente alguém começou a gritar:
- Tem um homem agachado aqui!
E o dito homem nem se movia. Parecia nem escutar que alguém o dedurava. Eis que um soldado apareceu em seguida, reconheceu-o, e deu-lhe voz de prisão. Mas nem assim Tomás Marinho reagia. Irritado com sua inércia, um dos ordenanças o pegou pelos colarinhos e o sacudiu. Para surpresa de todos o dito cujo se rolou no chão como um tronco de coqueiro. Estava morto!
O infeliz agricultor teve um infarto minutos antes, e ali mesmo ficou, escondido na eternidade. Fosse no mato, talvez nem os ossos teriam sido encontrados. Seu coração não resistiu ao pavor e à exigência que a fuga pedia ao seu físico esquálido. Quisera o destino que o agricultor não passasse por mais uma decepção?
Por nova ironia, Tomás Marinho foi levado a sede da vila de Assu e sepultado nas paredes da Igreja Matriz de São João Batista. Naquela época era comum enterrar pessoas dentro das igrejas, as quais funcionavam como cemitérios.
Houve celebração da missa de corpo presente, sem que celebrante fosse informado que ali estava o corpo do assassino de um padre.
Coincidentemente, poucos dias após esse sepultamento, o bispo de Olinda, Dom João da Purificação Marques Perdigão, abalou-se até Assu em suas eventuais visitas pastorais feitas a diversos locais da província (por coincidência, conto no meu blog como foi o dia festivo em que ele chegou a Papary).
Àquela ocasião a diocese do Rio Grande do Norte era subordinada a Pernambuco. Mal chegou, tomou conhecimento que a igreja em que ele se encontrava abrigava os restos mortais do assassino do padre de Papary.
O bispo ficou horrorizado e disse que só sairia dali quando retirassem os restos mortais do assassino e o levassem para outro lugar, não santo, fora da igreja, tipo um cemitério pagão. A ordem foi cumprida no fechar de boca.
No período entre 3 a 5 de novembro de 1839, ou seja, seis anos após o assassinado do Padre Leiros, o Bispo Dom João da Purificação também visitou Papary e deixou registrada a seguinte versão para o crime:
“Foi nessa povoação que assassinaram o padre antecessor do atual, pela 1 hora da tarde, cuja morte mui sensível foi para a maior parte dos habitantes. Esse assassino, morrendo na freguesia do Assú, poucos dias antes de eu visitar aquela freguesia, foi sepultado na igreja, depois que aquele pároco encomendou o seu corpo, ignorando ser o assassino do dito padre. Logo porém, depois que este corpo foi entregue à sepultura, foi desta tirado e enterrado em lugar não sagrado, em conseqüência da certeza que o pároco teve de ser o homem o assassino daquele pároco.”
Testemunhas do crime, na Vila de Papary, contaram ao delegado que estavam no centro da vila (se fosse hoje, o local exato seria entre a escola Yayá Paiva e o Mercado Totoca. O baobá ainda não havia sido plantado). As últimas palavras trocadas entre o padre Leiros e Tomás foram de deboche. Ei-las:
- Então, caro Tomás, perdeste a questão, não foi?
- Sim, padre...
E apontando-lhe a pistola à queima roupa, disparou-a, sem antes dizer:
- Mas o senhor saiu pior, pois perdeste a vida!
Infelizmente o município de Nísia Floresta tem que conviver com esse fantasma em sua história - dentre tantos -, cujo primeiro padre foi assassinado por um morador local. Essa história nada agradável, a meu ver, ensina as pessoas a não serem glutonas com os bens alheios. Mas ela também ensina que palavras também matam. Quem sabe a ira de Tomás Marinho não o tivesse levado a esse extremo se o padre tivesse se poupado de contatos, agido com serenidade e não tivesse sido tão debochado. Creio que o padre Leiros, embora eu abomine esse assassinato, "morreu pela boca", como diz o velho adágio.
LUÍS CARLOS FREIRE. (Essa história me foi narrada por um senhor muito idoso, morador de Papary. Ao chegar ao município e ser informado sobre tal fatalidade, e o ter entrevistado, em 1993, ele foi o único, dentre tantos, que guardava tal informação com requintes. Todas as demais pessoas que perguntei sobre fatal episódio, nada sabiam, exceto que o primeiro padre da vila havia sido assassinado.
FONTE: - Narrativa de História Oral, contada no dia 23 de dezembro de 1993, pelo senhor Vicente Marinho, 89 anos (in memorian).
- Arquivo Diocesano de Olinda - PE. 1995.
Realmente próximo à casa de minha avó, na rua da bica, há resquícios de casas antigas,e na minha pré-adolescência montei uma coleção de moedas antigas achadas no quintal. Muito interessante essa história. Parabéns pelo trabalho.
ResponderExcluirSr. Luis Carlos Freire. tem como vc me mandar esse texto por e-mail
ResponderExcluiranayja54@gmail.com
grata: Anair Leiros
Sr. Luis Carlos Freire. tem como vc me mandar esse texto por e-mail
ResponderExcluiranayja54@gmail.com
grata: Anair Leiros
Bom dia, Anair! Acabei de enviar para o seu e-mail. Um abraço!
ResponderExcluirBom dia, Anair! Acabei de enviar para o seu e-mail. Um abraço!
ResponderExcluirEstimado pesquisador Luis Freire, saudações! Terias esse documento scaneado ou fotocopiado? Terias como fazer o envio por correio eletrônico? Caso seja positivo realizar esse prestimo, este é o correio eletrônico: mensageirocoordenador@gmail.com
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