ANTES DE LER É BOM SABER...

CONTATO COMIGO: (Whatsapp) 84.99903.6081 - e-mail: luiscarlosfreire.freire@yahoo.com. O pelo formulário no próprio blog. Este blog - criado em 2008 - não é jornalístico. Fruto de um hobby, é uma compilação de escritos diversos, um trabalho intelectual de cunho etnográfico, etnológico e filológico, estudos lexicográficos e históricos de propriedade exclusiva do autor Luís Carlos Freire. O título NISIAFLORESTAPORLUISCARLOSFREIRE foi escolhido pelo fato de ao autor estudar a vida e a obra de Nísia Floresta desde 1992 e usar esse equipamento para escrever sobre a referida personagem. Os conteúdos são protegidos. Não autorizo a veiculação desses conteúdos sem o contato prévio. Desautorizo a transcrição literal e parcial, exceto trechos com menção da fonte, pois pretendo transformar tais estudos em publicações físicas. A quebra da segurança e plágio de conteúdos implicarão penalidade referentes às leis de Direitos Autorais. Luís Carlos Freire descende do mesmo tronco genealógico da escritora Nísia Floresta. O parentesco ocorre pelas raízes de sua mãe, Maria José Gomes Peixoto Freire, neta de Maria Clara de Magalhães Fontoura, trineta de Maria Jucunda de Magalhães Fontoura, descendente do Capitão-Mor Bento Freire do Revoredo e Mônica da Rocha Bezerra, dos quais descende a mãe de Nísia Floresta, Antonia Clara Freire. Fonte: "Os Troncos de Goianinha", de Ormuz Barbalho, diretor do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, um dos maiores genealogistas potiguares. O livro pode ser pesquisado no Museu Nísia Floresta, no centro da cidade de nome homônimo. Luís Carlos Freire é estudioso da obra de Nísia Floresta, membro da Comissão Norte-Riograndense de Folclore, sócio da Sociedade Científica de Estudos da Arte e da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Possui trabalhos científicos sobre a intelectual Nísia Floresta Brasileira Augusta, publicados nos anais da SBPC, Semana de Humanidade, Congressos etc. 'A linguagem Regionalista no Rio Grande do Norte', publicados neste blog, dentre inúmeros trabalhos na área de história, lendas, costumes, tradições etc. Uma pequena parte das referidas obras ainda não está concluída, inclusive várias são inéditas, mas o autor entendeu ser útil disponibilizá-las, visando contribuir com o conhecimento, pois certos assuntos não são encontrados em livros ou na internet. Algumas pesquisas são fruto de longos estudos, alguns até extensos e aprofundados, arquivos de Natal, Recife, Salvador e na Biblioteca Nacional no RJ, bem como o A Linguagem Regional no Rio Grande do Norte, fruto de 20 anos de estudos em muitas cidades do RN, predominantemente em Nísia Floresta. O autor estuda a história e a cultura popular da Região Metropolitana do Natal. Há muita informação sobre a intelectual Nísia Floresta Brasileira Augusta, o município homônimo, situado na Região Metropolitana de Natal/RN, lendas, crônicas, artigos, fotos, poesias, etc. OBS. Só publico e respondo comentários que contenham nome completo, e-mail e telefone.

segunda-feira, 3 de março de 2014

LENDA NISIAFLORESTENSE - "FLORBELA MARIA"

           

          Muito antigamente, quando Nísia Floresta se chamava Papari, a região era coalhada de engenhos de cana-de-açucar, movidos à força animal. Durante o dia os carros-de-boi cruzavam estradas, veredas, engenhos, sítios e fazendas, tangidos pelos escravos. Esses carros eram como imensas carroças feitas com troncos de madeira, puxados por juntas de bois. Alguns chegavam a ter oito animais agrupados. Só assim conseguiam movimentar o pesado veículo sempre carregado, ora de açúcar, ora de lenha, ora de aguardente, ora de melado. As gigantescas rodas rangiam tal qual um gemido, e os ventos levavam longe aquele clamor triste como choro.

           
 Papari, isolada junto ao seu povo simples, parecia não se importar muito com assuntos políticos. E desse modo sequer imaginava sobre a abolição, cujas conferências pipocavam aos montes na Corte. Algumas – por ironia -  ensaiadas por uma conterrânea que saíra pequena dessas plagas.
E na cadência dos afazeres a negrada fervilhava pelos canaviais e veredas, levando nas costas as ordens de seus senhores, as quais deveriam ser rigorosamente cumpridas, evitando assim os típicos e indesejáveis castigos.
Essa história passou-se no Porto, exatamente no Engenho “Flor de Cuba”, numa alusão a um tipo de cana-de-açucar muito comum por aqui. A propriedade era uma imensidão verde de coqueirais, fruteiras, cana e mata natural que se perdiam de vista.  


Coronel Leôncio Passos, o dono, era homem enérgico e sisudo, intolerante a qualquer coisa que o desagradasse. A ele atribuíam mortes de infelizes escravos que fugiram e eram capturados pelos capitães do mato – espécie de administrador. Comentavam que ele dava cabo a vida dos infelizes pretos que o retrucavam, ou tinham a ousadia de peitá-lo. Tais histórias eram contadas ‘a boca miúda’, pois o dito senhor de engenho era mais temido que respeitado.
 Leôncio era casado com a senhora Rogaciana Jansen, descendente de uma importante família da província de São Luiz do Maranhão, a qual conhecera quando empreendera compra de escravos naqueles confins.
Nessa época os costumes e hábitos familiares eram muito diferentes. A ‘honra da família’ era um patrimônio de valor incalculável, cujas famílias preferiam perder tudo o que tinham que perder a honra. Quando essa honra era ferida as consequências eram muitas vezes trágicas.

A questão de caráter, moral e valores familiares – embora que alguns deles moldados por hipocrisia – eram cultuados. As filhas só se casavam com homens prometidos, independente de gostos pessoais como beleza, modos etc. E desse jeito eram formadas as famílias, tal qual os costumes coloniais.


Muitas moças foram casadas a contragosto com senhores muito mais velhos, bufões, rabugentos e grotescos. Encerravam uma vida marcada por decepções, recebendo ordens como se fossem servas, sem direito a retrucar qualquer autoritarismo.
Algumas tornavam-se meras cuidadoras do lar e dos filhos, fingindo não perceber seus maridos chafurdando com as meretrizes e com incontáveis escravas, ignorando-as como esposas. Muitas sequer passaram a gostar dos seus pares, nutrindo pelos mesmos um ódio que acabava sendo levado para o túmulo.
As moças mais sortudas – embora fosse raro -  se apegavam à sorte de casar-se com rapazes da mesma situação socioeconômica, vizinhos que cresciam juntos. Feio ou bonito pelo menos comungavam de ideais parecidos. Mas isso era exceção.
Foi justamente por questão de ‘honra ferida’ que passou-se essa história escabrosa nos recônditos da velha Papari.


Esse senhor de engenho – filho de portugueses – possuía uma única filha por nome de Florbela Maria. Moça de beleza radiante. Dona de delicadeza e modos que a tornavam uma verdadeira princesa europeia. Olhos azuis, nariz afilado, pele louçã e cabelos ruivos. Suas mãos eram delicadas fazendo jus a exímia pianista que era. Lia e falava fluentemente a língua francesa, fazendo o pai importar de Paris livros de romances, além dos mais belos vestidos e assessórios de moda e toilete, os quais usava para ir à missa ou para os elegantes bailes que sacudiam o Vale do Capió. Não existia outro destino para as famílias esparecerem, numa época em que o banho de mar era raro recurso terapêutico, e visitas às lagoas eram diversões nem tanto atrativas. Toda essa região era  pincelada por casarões anchos, envoltos num interminável tapete verde, no qual pastavam o gado. A paisagem – cheia de lirismo – parecia um quadro vivo.
A presença de Florbela atraia a atenção de todos. Não havia como vê-la sem contemplá-la. Bastava ela se apresentar no alpendre da casa de engenho que os escravos, ou quem estivesse por perto, esticassem os olhos, contemplando-a como se toda a beleza do mundo ali tivesse feito morada. Os negros chamavam-na “Nhá Fulô”.


As senhoras da região diziam que vê-la era como olhar as pinturas angelicais encontradas no teto da matriz. Outros a comparavam com a beleza de uma santa.


Quando a carruagem da família parava de fronte à Matriz já estavam reunidas diversas pessoas, ansiosas para ver “Nhá Fulô” cravejada de joias, cuja vestimenta complementava uma imagem principesca. Florbela, acostumada ao imenso sobrado colonial, onde passava o dia, parecia não notar o fascínio que exercia nas pessoas, comportando-se de forma indiferente, mas sem ser indelicada. Seus gestos eram suaves e o olhar meigo e sereno.
Naquela época as moças nascidas em lares abastados só se dirigiam às pessoas comuns acompanhadas dos pais ou do irmão mais velho.


As moças da localidade sonhavam com um momento ao lado de Florbela. Nem que fosse para trocar poucas palavras. Elas queriam conhecê-la, vê-la tocando o piano, saber dos seus gostos, do que ela pensava da vida, e até mesmo ouvir algumas palavras em francês, as quais, para elas era algo do outro mundo.
A família, assim como outras – do mesmo nível econômico – tinha lugar reservado próximo ao altar. Eram cadeiras de jacarandá, acolchoadas com seda vermelha, cujos próprios donos compravam-nas para esse fim.
Florbela tinha dezessete anos, mas aparentava um pouco mais. Nos bailes não costumava dançar, mas quando encetava alguma valsa ou modinha, tinha o pai ou o primo Izidoro como pares definitivos. 



Os moços do lugar olhavam-na e cobiçavam-na. Mas sequer ousavam aproximar-se. Era um misto de respeito àquele ser tão puro, e ao mesmo tempo, temor ao pai, cujo olhar e a própria aura afastavam a todos.


Leôncioo era alto, bigodes fartos, com pontas voltadas para cima igual anzol. Os cabelos, grisalhos, emprestavam-lhe fisionomia até bonita, principalmente vestido para momentos de gala. A esposa, Rogaciana, era muito reservada e não dada às vestimentas modernas. Tinha predileção por cores escuras. Gostava de dançar, mas não se excedia, pois a polidez e o recato lhe eram muito fortes. Bela mulher de quarenta e dois anos.
Foi justamente num desses bailes que teve origem a semente de uma tragédia que se sucederia algum tempo depois. Florbela conheceu pela primeira vez um sentimento diferente. O causador dessa sensação fora Herculano Pereira, o qual encantou-a desde o primeiro momento que o vira, diferente dos demais rapazes da região.
A jovem não ousou conversar com ninguém sobre o assunto, mas sentia-se desconfortável, pois não tirava o rapaz do pensamento. Certo dia, passeando nas terras da fazenda, pajeada pela escrava Maria Pitu, viu ao longe um homem cortando mato. Qual foi a sua surpresa quando aproximou-se e constatou tratar-se do jovem que vinha lhe tirando o sono. Sua reação foi tão desconsertante que a escrava percebeu e alertou-a sobre o perigo que ela estava causando ao infeliz rapaz.
Mas como a linguagem do coração é desafiadora, o jovem também nutria sentimento igual desde o dia do baile. Herculano era um belo rapaz de 23 anos, filho de um pequeno sitiante da região. Naquele momento ele estava cortando um lote de cana que o pai comprara do pai de Florbela.
Ambos se olharam, mas o recato fluiu de igual maneira. A escrava puxou-a pelos braços e no caminho teceu todo um sermão sobre os riscos que a menina corria. E num instante já estavam no casarão. Maria Pitu chamou-a para o quarto e dedilhou mais um rosário de conselhos, precavendo-a da reação do pai.



Certo dia Florbela desvencilhou-se dos olhares vigilantes de Maria Pitu e saiu em direção ao partido de cana no qual vira Herculano. Por sorte ou azar o rapaz encontrava-se trabalhando no mesmo local. 

Ao retornar, Florbela constatou que não tinham notado a sua ausência. Maria Pitu engrossava um doce de goiaba no imenso tacho de cobre, junto ao fogão à lenha. O fato de ela dar-se a longas horas de leitura em seu quarto ajudou-a. Mas a partir daquele encontro tão furtivo, ela viu aumentar a sua vontade de estar ao lado de Herculano. Próximo dali o rapaz sequer conseguia dormir. Estava tomado de paixão, e certo que o senhor Herculano jamais permitiria que sua filha se casasse com ele, por sua condição econômica. Isso parecia aumentar o seu sentimento. Os pensamentos fervilhavam sem parar.
Florbela, confiante em suas horas insuspeitas junto aos livros, mais uma vez esquivou-se da vigília e abalou-se até o canavial. Caiu nos braços de Herculano. Os corpos se uniram, segredados pelos coqueirais. 



Era uma tarde morna de dezembro. Os amantes não conseguiram adiar o ardor que os consumia, aplacando ali mesmo aquela paixão. O sol tocava a paisagem, pintando-a de mel. Ambos sentiam-se num paraíso. Era hora de retornar.
A partir daquele dia Florbela foi tomada pelo desespero, pois sabia das consequências do seu ato. Tinha consciência que com o passar dos dias as evidências apareceriam. Sensação semelhante era sentida por Herculano. Ele tinha certeza que a diferença socioeconômica de ambas as famílias impediriam o seu objetivo. Florbela tinha convicção das piores coisas e já planejava fugir com o seu amado. Aguardava apenas o próximo encontro para planejar a fuga.
 Alguns dias depois Herculano apareceu sem avisar na casa grande e pediu para falar com o senhor  Leôncio. Florbela ficou desesperada ao saber daquela visita. Procurou um local na casa para conseguir ao menos escutar a conversa. Sabia que seus pais sequer imaginavam da relação dos dois. Ela não conseguia entender o que trazia Herculano à sua casa. Sabia que seu pai jamais permitiria a união dos dois, e que a tentativa de o rapaz convencê-lo seria fracassada e consistiria em mais um problema. Para ela a única solução era a fuga.


O senhor Vespasiano, pensando tratar-se de negócios, ficou chocado quando o rapaz pediu a mão de sua filha em casamento. Em fração de segundos gritou pelo capataz e pediu-lhe que o acompanhasse até a porteira do engenho, expulsando-o com xingamentos humilhantes, inclusive vociferou que “não tinha filha para casar com cachorro”.
Desconfiado, chamou Florbela para que ela explicasse as razões daquilo que considerou uma afronta. Ele queria saber como aquele rapaz apareceu ali sem sequer conhecer Florbela.


Amedrontada, ela preferiu teatralizar a mesma surpresa do pai, pois sabia que se contasse a verdade estaria adiantando uma tragédia. Tinha a certeza que a única forma de se unir a Herculano era empreendendo fuga. Eles teriam que sumir para sempre. E para muito longe. A visita do amado acabou piorando a situação, dificultando o encontro que ela já maquinava para planejar a fuga.
A partir daquele dia o senhor Herculano ficou desconfiado. Colocou uma vigília composta por vários escravos espalhados pelo engenho. Procurou o pai de Herculano e desfez os negócios que tinham, impedindo o rapaz de entrar em sua propriedade. A situação ficou difícil para os amantes. Em Papari não se falava em outro assunto. Herculano sentiu-se humilhado e buscava loucamente uma solução que nunca vinha.
Florbela não tinha outra saída. Conversou com Maria Pitu e pediu que ela a ajudasse a fugir. A escrava tremeu só de ouvir, mas, piedosa como era, aceitou ajudá-la.



Uma vez por semana Maria Pitu se abalava até o centro de Papari, onde comprava mercadorias na única venda do lugarejo. Ela costumava ir numa pequena carroça usada exclusivamente para isso. Foi nessa carroça que Florbela escondeu-se, coberta por sacos de açúcar vazios. Ela teria o tempo que Maria Pitu costumava demorar nas compras para encontrar-se com Herculano e dali mesmo fugir. Mas a ingenuidade de ambas não convenceu o capitão do mato, logo na porteira de saída do engenho. Foram descobertas.
Aquela tarde foi curta para o tamanho da indignação do senhor Leôncio. A confusão durou quase à noite inteira, cujos pedidos de clemência da senhora Rogaciana não sensibilizaram o truculento senhor.
A infeliz escrava foi mandada para o ‘tronco’ e gemeu a madrugada toda sob incontáveis chicotadas dadas por um capataz. Florbela foi encerrada num quarto. Ali se alimentaria, faria a sua toalete e as demais necessidades. Só sairia com a companhia do pai.
Quatro meses depois a família recebeu convite para um baile nas proximidades. Florbela ficou desesperada. Sentiu minar a possibilidade de continuar escondendo a sua gravidez. O fato de ela ter sido trancada num quarto ao longo desses meses e receber apenas a visita de Maria Pitu, impediu que seus pais percebessem o aumento no volume da barriga.
Mas como tudo tem a sua hora e dia, Florbela teve que revelar a verdade. Ela ainda quis encobrir, mas o lindo vestido comprado para ela ficou muitas medidas abaixo do normal.


Naquela noite a casa tornou-se uma extensão do inferno. O senhor Leôncio gritava e andava para todos os lados. Quebrou louças, cadeiras e vidros das janelas. Virou um animal enfurecido. Dizia sucessivas vezes que nunca fora tão desmoralizado. Ninguém ousava dirigir-lhe qualquer palavra, nem a própria esposa que também o temia. A casa grande tornou-se tumultuada, impedindo que a escravaria do engenho dormisse. O homem dizia o tempo todo que Florbela tinha desonrado a família.
 Leôncio tentou tirar de Maria Pitu a verdade, mas esta apenas dizia que não tinha conhecimento de nada. Tanto ela quanto a senhora Rogaciana pediam clemência. Em vão. Naquela mesma noite a infeliz pajem foi levada ao tronco mais uma vez, recebendo a culpa pelo fato de a situação ter chegado aquele ponto.
Leôncio deduzira de imediato que o autor daquela desmoralização era Herculano. E já traçara um plano para o ousado homem que tinha ‘manchado a honra da sua família’. O dia amanheceu sem que ninguém na casa pregasse os olhos.
Pela manhã mandou preparar os cavalos, carro de boi e carruagem e informou a sua esposa que ela iria para a casa de familiares na província de São Luiz do Maranhão, muito bem guarnecida por escravos e capitães do mato. A mulher não entendia aquela decisão súbita, mas o obedecera. 



Ele alegou que Rogaciana ficaria naquela província durante o período que ele levaria a filha para Portugal, na casa de familiares. Decidiu que seria dito à toda comunidade de Papari que sua filha havia partido para estudos. Aos escravos orientou que dissessem que “Nhá Fulô” fora estudar em Lisboa.
A esposa entristecera, mas entendera que diante de tanta desmoralização seria melhor que a filha ficasse longe. Era uma mulher resignada. Tinha certeza que o marido jamais receberia Florbela de volta. E não havia como contradizer qualquer decisão do marido. Naquela época as mulheres viviam numa submissão humilhante. A única atividade na qual as mulheres tinham total autonomia era na condução dos afazeres domésticos. Sobre esse assunto escritor francês Charles Expilly, que esteve por essas plagas naquela época, registrou um antigo provérbio português muito falado e praticado no Brasil, o qual explica muito claramente esse comportamento: “Uma mulher já é bastante instruída, quando lê corretamente as suas orações e sabe escrever corretamente a receita da goiabada. Mais que isso seria um perigo para o lar” (p.269).



O senhor Leôncio mancomunou uma história fictícia. Diria aos parentes portugueses que a filha ficara viúva e escolhera novos ares para retomar a vida. E tudo transcorreu da forma como ele planejou. Mas, na realidade, seu plano era muito diferente.
Dois dias depois sua esposa partiu. Maria Pitu já não era mais a mesma pessoa. O sofrimento tornou-a insana. Começou a falar coisas desconectadas. Certo dia comentou no centro de Papari que “achava que o senhor Leôncio iria matar a filha”. Ele soube da conversa e ficou furioso. Indagou a negra, perguntando onde ela tirara tamanho absurdo. Maria Pitu, que já não se importava mais com nada, pois estava com quase setenta anos - idade rara para uma escrava – respondeu-lhe:
 “O sinhozinho pode até matar as pessoas, mas depois de mortas elas encontram uma liberdade que o senhor jamais encontrará. Eu sei que o senhor é um assassino. O senhor me vê como nada, mas sou sobrinha de um rei africano – sou de família lorde de Moçambique. Fomos tirados dos nossos países como bichos. Eu, sim, tenho sangue nobre que sequer o senhor possui. O senhor me menospreza, pois é incapaz de reconhecer o reinado de Guezô, do Danxomé, ao qual sou descendente.
O senhor Leôncio ouviu em silêncio as palavras para ele consideradas ofensivas e fruto de uma mente insana. Dias depois ordenou a um capataz que desse fim a vida da infeliz negra. Dizem que depois de morta Maria Pitu foi enterrada exatamente no local onde se encontra a casa da dona “Joaninha dos Padres”, na estrada do Porto. Na época o local era uma floresta fechada.



Três dias após a partida da senhora Rogaciana o senhor Leôncio colocou seu terrível plano em ação. Pediu que a escrava fosse para a senzala e ficasse por lá durante uma semana, pois ele estaria em constantes idas para as vilas próximas e não precisaria dos serviços da negra. Foi tempo necessário para que ele envenenasse a comida da filha
Naquela época os casarões possuíam paredes muito largas. Algumas chegava a ter um metro de largura, assim como as paredes da Igreja Matriz. Foi exatamente na parede da sala que ele retirou os tijolos e pedras e fez o túmulo da sua filha e do neto que ela trazia no ventre.
Após colocar o corpo, cobriu-o com cal, pedra e barro e lacrou a parede. Contratou um mestre de obras da Vila de Arês e pediu que ele rebocasse a parede, alegando que o pedreiro que fazia a reforma na casa havia se machucado. O mestre sequer suspeitou que finalizou o túmulo da filha do dono da casa grande. Dois dias depois a parede foi pintada com cal, adquirindo a característica anterior, sem despertar qualquer suspeita.


Toda a Papari se entristecera com a partida de Florbela para Portugal. A povoação perdera o seu brilho mais especial. Herculano, revoltado com a partida de sua amada, foi para a Bahia onde recomeçou os seus projetos pessoais.
Três meses depois ele mandou buscar a esposa. Teve o cuidado de mandar vir de Recife um baú com diversas fazendas, perfumes, louças, pratarias e assessórios femininos, comprados numa casa portuguesa ali existente. Para a esposa disse que havia comprado em Lisboa.
Rogaciana, como quase todas as mulheres daquela época, tinha nesses “mimos” se é que assim se possa dizer, o único momento de prazer com seus senhores. Era quando se sentiam lembradas e valorizadas.
Muito diabólico, ainda disse à esposa que havia colocado Florbela numa escola de Humanidades, onde ela iria enriquecer os seus conhecimentos. E para incrementar ainda mais, disse-lhe que deixara pago para a sua filha uma viagem a Paris, com o tio Leopoldo, irmão dele.
Perguntado sobre a escrava Maria Pitu, informou à esposa que a idade a havia deixado caduca, portanto a mandara para Vila Flor, onde ela dizia ter parentes. “Aquela preta velha não servia mais para nada, Estava velha” ´disse.
Dez meses se passaram e Rogaciana estranhara o silencio da filha, a qual não escrevia para contar-lhe as novidades. A inocente mãe ficava imaginando a filha em Lisboa, lendo, estudando, tocando piano e coisas assim. Sonhava com uma carta contando-lhe as novidades.

Após um ano e meio sem notícias d. Rogaciana passou a achar que a filha estava sendo ingrata. Via no silêncio de Florbela uma forma que ela encontrara para vingar a separação que nunca pode evitar. Na realidade, D. Rogaciana mesmo querendo não podia ter mudado aquela história, pois o controle de tudo estava nas mãos do marido.
Após quase dois anos sem notícias resolveu escrever. Naquela época as cartas eram levadas ao porto marítimo. De lá partiam para os seus destinos.
O senhor Leôncio, muito atento, ordenou a um dos capitães do mato que destruísse a carta e dissesse tê-la entregue no destino desejado. Assim foi feito.
Passaram-se seis meses sem resposta. Inconformada com a ingratidão da filha, escreveu novamente, implorando por novidades. Desta vez queria saber sobre o neto – ou neta. O marido disse que a esposa estava sendo boba ao insistir naquelas cartas. “Ela é uma ingrata. Mostrou realmente o que era. Desonrou nossa família e decerto está fazendo coisa parecida em Portugal. Tu és besta de insistir nessas cartas. Esqueça essa ingrata, pois de minha parte ela está morta” – disse o esposo.



O tempo passava e cada dia o coração de D. Rogaciana ficava mais apertado. Certo dia ela confidenciou a uma amiga da família, que estava morrendo aos poucos, pois o único amor da sua vida, a causa da sua existência, tinha abandonado-a. A amiga despertou-lhe um desejo que ela jamais pensara.
Certo dia ela disse ao marido que queria ir a Portugal visitar a filha. Senhor Leôncio quase teve um enfarto de susto, mas disfarçou a sua reação, deixando-a pensar que ainda era resquício do desgosto que a filha lhes dera. Ele foi implacável na resposta, dizendo que jamais iria vê-la, e que tanto a filha estava impedida de colocar os pés no engenho quanto a esposa estava impedida de ir a Portugal ver  “aquela desavergonhada”.
Como já foi dito, palavra de marido era uma sentença. Foi a partir daí que D. Rogaciana resignou-se para sempre. Esqueceu as cartas e resolveu guardar a dor para si. Buscou nos afazeres domésticos uma forma de matar o tempo. Optou por nunca mais falar sobre a filha, pois sabia ser em vão – pelo menos para o marido.



O tempo passou, veio a abolição dos escravos. A maior parte dos cativos partiu sem rumo. Apenas alguns optaram por viver no engenho, pois não sabiam como viver em outro lugar. Não tinham recursos para se manter fora dali. O Engenho “Flor de Cuba” já ensaiava o princípio de um fogo morto.
Dona Rogaciana já estava com oitenta anos e o senhor Leôncio contava noventa e dois.
O cotidiano da fazenda já não era mais o mesmo. O canavial definhara, tomado pelas ervas daninhas. O gado diminuiu grandemente. Os tachos de melado secaram. Já não se viam mais fumaça saindo das chaminés.
A casa grande também não era mais a mesma. Há tempo não recebera demão de tinta. As belas folhagens, as flores e roseiras que perfumavam o imenso alpendre, cederam lugar para um cheiro diferente. Cheiro de mofo. Cheiro de coisa velha. Cheiro de túmulo antigo.


Senhor Leôncio – que tinha fama de ser dono de toda a província vendera aos poucos diversas partes de sua propriedade, mas nem mesmo o fato de diminuir os seus bens aplacava sua personalidade geniosa e intransigente. Era pessoa detestada pela vizinhança. Apesar de idoso, era firme e parecia ter menos idade.
Certa noite, após duas semanas de chuva intensa, as estradas de acesso ao engenho estavam alagadas. A ex-escrava Inah não conseguira chegar à Casa Grande, onde vinha todas as noites para servir aos patrões.
A chuva estava torrencial naquela noite. O casal estava sentado no sofá da sala. Vez por outra a casa era iluminada pelos clarões dos relâmpagos. O barulho dos filetes de água caindo sobre as telhas eram fortes.


De repente surgiu uma infiltração exatamente na parede da sala. A água escorria como cachoeira. Em fração de segundos a parede se tornou uma mistura de lama desprendendo-se com os tijolos.
Os velhinhos, atônitos, olhava aquela cena, prontos para se refugiar em outro cômodo. Mas a cena seguinte os impediu. Um esqueleto veio junto com aquela massa de barro molhado. Logo em seguida caiu o esqueleto de um bebê arrastando junto uma roupa bordada com pérolas. Na mesma hora D. Rogaciana conheceu aquela peça.
“É a minha filha e o meu neto! O senhor matou a nossa filha e o nosso neto. Monstro cruel, como tiveste esta coragem?  Eu sabia que existia alguma coisa errada nessa história, mas nunca imaginava ser algo tão triste! Maldito, maldito! Amaldiçoado sejas tu!”
Essas foram as palavras de D. Rogaciana, a qual caiu sem vida, conseguindo ainda abraçar os esqueletos da filha e do neto, numa enfarto fulminante.


O velho Leôncio afastou-se lentamente. Ignorando tudo o que vira e ouvira. Desceu nas escadarias do casarão, saiu andando a esmo pelo engenho encharcado sob a chuva que seguia incontinente. Nunca mais foi visto.
Com o passar dos anos as terras do engenho foram tomadas pela mata. A casa grande tornou-se ruína. A história foi esquecida e os próprios nativos foram se apossando cada um de um pedaço de terra. Nunca apareceu herdeiro para reclamar a propriedade.

REFERÊNCIA

EXPILLY, Charles. MULHERES E COSTUMES DO BRASIL. São Paulo; Ed. Nacional, 1977. 320 p. 

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