RIBEIRA... BERÇO DA HISTÓRIA DO NATAL
O que você pode fazer para salvá-la?
Sábado à tarde, 31 de
outubro de 2014, estive na parte baixa da Ribeira, em Natal, acompanhado pelo
meu filho que foi fotografá-la para amadurecer um projeto escolar para 2015. Enquanto
ele fazia os registros foi aflorando em mim o desejo incontrolável de gritar
contra tudo o que eu via.
O que prometia ser
uma experiência agradável tornou-se uma sensação incômoda. Enquanto era bonita
- artisticamente falando - a tonalidade envelhecida das paredes,
harmonizando-se com o lodo ressequido, as parasitas, as rachaduras, as ruínas
etc, era deprimente testemunhar o assassinato da história. Percebi que a
Ribeira também grita. A Ribeira chora!
Como todos sabem,
Natal começou por ali e é exatamente nesse lugar que resistem, embora quase em
ruínas, suas construções mais antigas. Restam, em meio aos seus velhos
armazéns, depósitos e casas comerciais – sobrados residenciais imprensados
entre paredes centenárias, alguns em estado caótico. O cenário aflige a qualquer
cidadão consciente das significações daquilo tudo.
Tendo ruído o telhado
e o reboco, e desaparecidos belos frontões em alto e baixo relevos, vê-se
apenas tijolões brancos, rejuntados com barro vermelho. Restam grades de ferro
bordadas em rebuscados desenhos, sacadas com portas e janelas de madeira nobre,
carcomidas, escadarias que findam no nada... vidros e cristais que despencariam
ao leve toque.
Algumas paredes contam
a sua história de maneira mais clara, pois conservam em alto relevo o ano da
construção (alguns em algarismos romanos), os letreiros com o nome do comércio
e até mesmo os produtos que vendiam. Num deles se lê: “objectos de escriptorio”, “accessórios
para desenho”, e até mesmo a curiosa expressão “livros em branco” etc.
Certos prédios,
apesar de deteriorados, não perderam a imponência. Uma das mais belas fachadas,
e que aparenta não durar mais meia década, é a famosa “Samaritana”, onde o
“Mamão-São-Caetano” se dependura na janela da sacada. Na sua lateral se
enraizou uma árvore que resistiu anos dependurada. Recentemente sua raiz foi
cortada e hoje está seca. O conjunto é fantasmagórico.
As ruas, como se
sabe, não são ruas, mas becos. Alguns tão estreitos que somam doze palmos. Se
um homem adulto abrir os braços entre as paredes que se defrontam, por pouco
encosta as mãos em ambas. Alguns são intransitáveis devido ao lixo despejado
pelos poucos comerciantes que restaram. Ruas e vielas fedem a urina e fezes. O
lugar torna-se ainda mais – diríamos – sombrio, devido a quantidade de felinos
que passeiam por ali, justamente pela proximidade do porto e do comércio de
peixe.
Parasitas e trepadeiras
invadiram as paredes e se entrelaçaram às grades de ferro. Muitos telhados
ruíram. Sobrou apenas o frontão. Algumas fachadas escondem detalhes
interessantes devido ao lodo seco e sucessivas demãos de tinta. Nos locais
melhores conservados, mendigos e drogados fizeram “morada”.
Essa área antiga da
Ribeira parece mais um cemitério que sepultou boa parte da história do Natal.
Percorrê-la é se encontrar com a nostalgia. Chega a ser deprimente. Não há como
não dar asas à imaginação e ficar pensando no “ruge-ruge” e no “vuco-vuco” que
foi aquilo por séculos a fio... verdadeira “25 de março”. Vale lembrar que toda
a movimentação acontecia a pé, pois em muitos becos não entra sequer uma
carroça.
Saber que a “veia
nervosa” do Natal foi a Ribeira soa inacreditável aos olhos atuais. Parece mais
a Pripyat de Saraievo depois do fenômeno Chernobyl. Com a diferença de a
“radiação” daqui ter o nome de “indiferença à história”.
Observei também que em
meio a esse resto histórico que envergonha os órgãos públicos de fomento à
cultura, sobram ruínas humanas. São homens e mulheres – jovens – vagando por
ali, tais quais “malassombros”... restos de gente... muitos sob o transe do
crack. Eles invadiram os prédios melhores conservados, onde dormem como ratos.
Dói na alma.
Quantos episódios marcantes ocorreram
na Ribeira. Restam ainda a casa onde nasceu Pedro Velho há 154 anos... o
Palácio do Governo (felizmente recuperado – é uma escola de balet), o “Sport
Club do Natal” (cenário de tantos episódios do “Gizinha”, de Polycarpo Feitosa
- Antônio de Sousa); o prédio da alfândega... a casa do Frei Miguelinho. Em sua
parede esburacada encontra-se uma placa afixada ali há 108 anos, dizendo: “QUOD SCRIPSI SCRIPSI - 17 de novembro 1867
– 12 de junho 1817- Ao insigne patriota Miguel Joaquim de Almeida Castro - Frei
Miguelinho - Ao povo do Rio Grande do Norte em commemoração cívica, no 89º
anniversário de tua morte gloriosa, ufana-se de perpetuar nessa lápide,
solenemente posta no próprio lugar em que nasceste, teu nome imortal de heróe e
martyr” – 1906”. Pouco adiante, geográfica e temporalmente, a famosa casa
de Câmara Cascudo, cujas palavras tornam-se insignificantes para descrevê-lo.
Não sei exatamente o
que mais me impressionou... se foi o visual histórico jogado ao léu pelos
governantes e pelas pessoas “esclarecidas”, muitas delas ocupadas por toda
sorte de corrupção... não sei se foram as ruínas humanas destruídas pela droga
e hipocrisia de governos, ONG’s, igrejas etc...
Ao longo de décadas
as pessoas foram (e vem) saindo dali. A cada prédio “abandonado” aumenta o
incômodo nos que ficaram. É uma reação em cadeia. O cenário parece incomodar
aos que insistem em ficar. Recentemente o que saiu foi o Cartório. E assim
segue a Ribeira velha...
Alguns entendem a
Ribeira meramente como o projeto voltado para a “Rua Chile”. Não diria que foi
ruim, mas houve uma restauração acanhada. Sua movimentação tem hora e data
marcadas. Não é fluente... É só ir lá e checar.
O que sei é que precisamos
fazer algo pela Ribeira.
Se for apresentado ao
governo do Rio Grande do Norte um projeto à altura da Ribeira, esse bairro
ressuscitará diferente. Não me refiro a trazer de volta o passado. Não se trata
de preservar por preservar, mas dar funcionalidade, tornando-a um espaço vivo,
útil e agradável em sua perspectiva histórica, turística, cultural, comercial e
educacional. Falta à Ribeira rumo e utilidade.
Enquanto a Europa e diversos
países têm sua economia fortalecida em becos e vielas medievais, a Ribeira,
berço de Natal, verdadeiro tesouro, jaz abandonada. É um pedaço morto do Natal.
Em Marrocos existem
espaços comerciais de cinco mil anos, mas cheio de vida, fortalecendo a riqueza
do país. Curioso é que ali só transitam pessoas. O segredo está num conjunto de
fatores que convergem para que todos – sejam turistas ou não – sintam-se
atraídos pelo local.
O segredo é simples:
comércio (que vende uma infinidade de produtos obviamente dentro da cultura
deles, como ouro, tapetes tecidos, roupas etc), arte em suas múltiplas formas,
artesanato, comidas e bebidas para todos os gostos... As atrações são
incontáveis.
É lastimável que um
espaço tão significativo como a Ribeira, reste ilhado, quase inútil. Essa
situação serve de termômetro para entendermos nossos governantes e a nós mesmos
enquanto povo. Esse desprezo é um ataque à história do Brasil. Tenham certeza
que não demorará muito para que tudo aquilo vire pó.
Muitos alegam que
suas ruas não comportam trânsito fluente, mas isso é ingênuo e mal intencionado
diante das infindáveis significações desse bairro e de incontáveis soluções.
Basta querer. É muito pequeno alegar questões de trânsito.
Urge aos governantes,
às instituições diversas, à iniciativa privada e órgãos internacionais darem as
mãos e construir um projeto ousado, levando para lá os comerciantes com
diversidade de mercadorias e comes-e-bebes, o artesanato, as agências de
turismo, os camelôs, os meninos com os seus tabuleiros, o teatro de rua, as
vendedoras de tapioca recheada, as doceiras, os engraxates... o samba, o
folclore, o batuque... as coisas dos shoppings. Por que não? Há tantas formas
de revitalização..
Esse projeto deve estar
atrelado às agências de turismo nacional e internacional, às instituições
educacionais e culturais e a diversos órgãos governamentais. É imperdoável esse
olhar míope e acanhado dado à Ribeira. Restam por ali, intactos, em meio a
construções bicentenárias e de valor incalculável, prédios razoavelmente
antigos como o BANDERN dentre outros, nos quais deveria funcionar até mesmo
órgãos públicos, secretarias de turismo, cultura, educação etc. Ou até mesmo a
administração da Ribeira, até porque se trata de um projeto amplo de
revitalização.
A partir do momento
que as partes de direito se sentarem para tal projeto, verão que o mesmo
consistirá numa audácia diante das burocracias criadas por nós mesmos, mas não
serão superiores à significação da Ribeira. Nem ao retorno que dará.
A Ribeira tem tudo
para ser um espaço vivo de comércio, turismo e cultura. Mas que seja algo
intenso, forte, fluente. A Ribeira pode se transformar num dos mais ousados,
amplos e prósperos projetos de cultura e economia do Brasil, capaz de servir de
modelo para outros estados e países.
Com o novo governo
que se aproxima, com a nova equipe e com pessoas sérias que se descortinam no
cenário político atual, creio que o momento é esse.
Vamos salvar a
Ribeira! LUIS CARLOS FREIRE
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