ANTES DE LER É BOM SABER...

CONTATO: (Whatsapp) 84.99903.6081 - e-mail: luiscarlosfreire.freire@yahoo.com. Este blog - criado em 2008 - não é jornalístico. Fruto de um hobby, é uma compilação de escritos diversos, um trabalho intelectual de cunho etnográfico, etnológico e filológico, estudos lexicográficos e históricos de propriedade exclusiva do autor Luís Carlos Freire. Os conteúdos são protegidos. Não autorizo a veiculação desses conteúdos sem o contato prévio, sem a devida concordância. Desautorizo a transcrição literal e parcial, exceto breves trechos isolados, desde que mencionada a fonte, pois pretendo transformar tais estudos em publicações físicas. A quebra da segurança e plágio de conteúdos implicarão penalidade referentes às leis de Direitos Autorais. Luís Carlos Freire descende do mesmo tronco genealógico da escritora Nísia Floresta. O parentesco ocorre pelas raízes de sua mãe, Maria José Gomes Peixoto Freire, neta de Maria Clara de Magalhães Fontoura, trineta de Maria Jucunda de Magalhães Fontoura, descendente do Capitão-Mor Bento Freire do Revoredo e Mônica da Rocha Bezerra, dos quais descende a mãe de Nísia Floresta, Antonia Clara Freire. Fonte: "Os Troncos de Goianinha", de Ormuz Barbalho, diretor do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, um dos maiores genealogistas potiguares. O livro pode ser pesquisado no Museu Nísia Floresta, no centro da cidade de nome homônimo. Luís Carlos Freire é estudioso da obra de Nísia Floresta, membro da Comissão Norte-Riograndense de Folclore, sócio da Sociedade Científica de Estudos da Arte e da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Possui trabalhos científicos sobre a intelectual Nísia Floresta Brasileira Augusta, publicados nos anais da SBPC, Semana de Humanidade, Congressos etc. 'A linguagem Regionalista no Rio Grande do Norte', publicados neste blog, dentre inúmeros trabalhos na área de história, lendas, costumes, tradições etc. Uma pequena parte das referidas obras ainda não está concluída, inclusive várias são inéditas, mas o autor entendeu ser útil disponibilizá-las, visando contribuir com o conhecimento, pois certos assuntos não são encontrados em livros ou na internet. Algumas pesquisas são fruto de longos estudos, alguns até extensos e aprofundados, arquivos de Natal, Recife, Salvador e na Biblioteca Nacional no RJ, bem como o A Linguagem Regional no Rio Grande do Norte, fruto de 20 anos de estudos em muitas cidades do RN, predominantemente em Nísia Floresta. O autor estuda a história e a cultura popular da Região Metropolitana do Natal. Há muita informação sobre a intelectual Nísia Floresta Brasileira Augusta, o município homônimo, situado na Região Metropolitana de Natal/RN, lendas, crônicas, artigos, fotos, poesias, etc. OBS. Só publico e respondo comentários que contenham nome completo, e-mail e telefone.

sexta-feira, 1 de abril de 2022

O que Luís Gastão d'Escragnolle Doria escreveu sobre Nísia Floresta


 O QUE LUÍS GASTÃO D’ESCRAGNOLLE DÓRIA 

 ESCREVEU  SOBRE NÍSIA FLORESTA (L.C.F.7.7.2000)

Entramos em abril, mês em que Nísia Floresta Brasileira Augusta faleceu em Rouen, França, aos 24 dias do ano 1885. Não se comemora data de morte, mas lembra-se para enaltecer feitos. Como estudioso da vida e obra dessa notável norte-rio-grandense, há 30 anos, tenho essa data sempre em minhas lembranças, assim como a do seu natalício, e sempre a evoco através de breves homenagens neste mês. 

Exatamente com esse olhar estarei apresentando ao leitor – durante este mês – alguns textos relacionados a Nísia Floresta. Alguns até inéditos – para a maioria das pessoas – de autoria de intelectuais conhecidos e mesmo pessoas comuns, algumas desconhecidas, admiradoras da insigne intelectual. Outros, conhecidos mais por quem tem um aprofundamento no estudo sobre essa intelectual. Uns são mais diluídos, outros mais condensados, O legal é apreciarmos a visão da pessoa que escreveu. O que ela pensava sobre Nísia, como ela está mostrando Nísia, e no bojo de tudo, curiosidades e algumas informações que sempre os autores nos trazem. O material será postado aqui, aleatoriamente, nessa temporada de abril.

Muitos intelectuais e admiradores escreveram sobre Nísia Floresta ao longo de décadas, começando logo após a sua morte. Alguns desses escritos jazem esparsos, sem nunca terem sido mencionados em bibliografias por pesquisadores. Esse é um texto em que o grande lapso de tempo devolveu-lhe o ineditismo. 

O texto de hoje, escrito em 1933, é uma contribuição de Luís Gastão d’Escragnolle Dória, um dentre tantos textos sobre Nísia Floresta e quase totalmente desconhecido no presente. O autor, que inclusive é um renomado intelectual e escritor, o escreveu assim que leu o conhecido ensaio escrito por Roberto Seidl, intitulado “Nísia Floresta - 1810-1885 – vida e obra de uma grande educadora, precursora do abolicionismo, da República e da emancipação da mulher no Brasil”, publicado em 1933, no Rio de Janeiro.

Escrito há 89 anos, pode aparentar ultrapassado e sem novidades aos olhos do século XXI. Mas não é bem assim. Ele é tão importante - principalmente para quem estuda a ilustre potiguar -  que a poeira do tempo ora é sacudida para encantar a todos com mais uma contribuição à memória da nossa Nísia Floresta. 

A longevidade não envelheceu a interessante visão de Escragnolle Doria sobre Nísia Floresta, tornando-o um material precioso para todos os leitores. O detalhe de consistir num texto quase nonagenário não dissolve a impressão digital do autor. Na realidade, o texto é a grande novidade, e traz algumas novidades também, como veremos. 

Muitos pesquisadores ou admiradores que acompanham as produções sobre Nísia Floresta ainda desconhecem algumas publicações e se surpreendem, como nesse caso, justificando a importância de lançarmos os holofotes sobre os materiais “desconhecidos”. Mas quem é o autor?

Atriz Núbia Santana, ensaiando para as gravações do documentário "Nísia Floresta, uma mulher a frente de seu tempo" (Projeto Memória/Fundação Banco do Brasil/Correio Braziliense - 2006

Luís Gastão d’Escragnolle Dória nasceu no Rio de Janeiro, aos 31 de janeiro de 1869. Era filho do general Luiz Manuel das Chagas Dória e Adelaide d'Escragnolle Taunay Dória. Escragnolle Dória, como era mais conhecido, foi um renomado professor, escritor, libretista, publicista, arquivista, compositor e tradutor. Colaborou em vários jornais e revistas como Gazeta de Notícias e outros. 
 
Era reconhecido por sua preocupação com a preservação do patrimônio intelectual brasileiro a história e  memória de figuras notáveis do país, fato que explica o seu texto sobre a nossa Nísia. Vale ressaltar que ele não era um pesquisador de Nísia Floresta, mas um admirador. Ele também foi membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB).  

Em 1890 Escragnolle concluiu o curso de Direito na Universidade de São Paulo - USP, mas certamente o fez pelo modismo da época, período em que cursar Direito era entendido como status pelas famílias patriarcais. Ele nunca exerceu a profissão, dedicando-se às mais variadas funções ao longo de sua vida, fazendo jus ao conceito hoje tão falado das múltiplas inteligências, e foi brilhante em tudo o que fez.

Senado Federal, Rio de Janeiro, 1910 (Brasiliana)

Seu primeiro emprego se deu no Senado Federal do Brasil - que à época tinha o seu endereço no Rio de Janeiro, capital Federal. Ali ele exerceu o cargo de editor do Diário dos Debates do Senado e tinha uma vida social/cultural ativa. A partir de 1906 assumiu a função de professor de História Universal e de História do Brasil no Colégio Pedro II no Rio de Janeiro. Foi um educador reverenciado em sua época devido à sua especial ilustração.

No período de 1910 a 1912 viajou pela Europa como bolseiro do Ministério da Justiça e dos Negócios Interiores, com o objetivo de recolher documentação histórica relativa ao Brasil, função que provavelmente o colocou diante de obras e escritos jornalísticos de Nísia Floresta na Europa. É possível que algumas obras de Nísia Floresta, trazidas da Europa, em em outros idiomas, e que hoje estão em algumas instituições brasileiras, fizeram parte dessa busca de Escragnolle Doria. Importante também tomarmos conhecimento de que algumas obras de Nísia Floresta foram roubadas desses espaços, e creio que que isso tenha se dado pelas mãos de pesquisadores.

Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, 1910.

No período de 1917 a 1922 ele foi diretor do Arquivo Nacional do Brasil e editor do respectivo periódico. Era membro de doze sociedades científicas e literárias e deixou uma vasta obra publicada, incluindo dispersos por vários periódicos brasileiros e de outras nacionalidades, com destaque para o Jornal do Comércio do Rio de Janeiro.

Como poliglota, traduzia diversos textos de autores europeus. Desse modo, segundo informações de Júlio Castañon Guimarães, especialista na obra do famoso poeta francês Mallarmé, Escranolle Dória foi o primeiro tradutor brasileiro a traduzir uma obra de Stephane Mallarmé para a língua portuguesa. Essa tradução foi publicada na Revista do Ouvidor, no Rio de Janeiro, em 1901.

Mallarmè (Biblioteca Nacional)

Escragnolle era casado com a pedagoga Lavínia de Oliveira d’Escragnolle Doria que também exercia o magistério. Escreveu seis livros: Dor (1904); Cousas do passado (1909); Da conveniência de um acordo luso-brasileiro (1910); A significação da obra de Anchieta no Brasil (1910); Un coup d'oeil sur l'histoire du Brésil (1910); Romão de Mattos Duarte o benfeitor dos expostos (1916). 

Quando Escragnolle Doria nasceu, em 1869, Joaquim Pinto Brasil, irmão de Nísia Floresta, que também morava no Rio de Janeiro, tinha 50 anos de idade. Augusto Américo de Faria Rocha, filho de Nísia Floresta, também residia na corte, contava 36 anos de idade, e sua mãe, 59 anos de idade, mas essa residia na Europa junto com a filha Lívia Augusta de Faria Rocha, então com 39 anos de idade. Nesse período, Nísia Floresta estava no auge de suas publicações e era reconhecida na França, Itália e Portugal. 

Augusto Américo de Faria Rocha, filho de Nísia Floresta, final do século XIX.

Por ser um intelectual muito ativo e residir numa província em que todos os intelectuais se conheciam, é bastante provável que Escragnolle, apesar de muito jovem, tenha conhecido Augusto Américo, um respeitado educador no Rio de Janeiro. Ele dirigiu o colégio que pertencia à sua mãe, e outro educandário particular. Augusto Américo morreu muito novo, em 1889, aos 60 anos de idade, quando Escragnolle tinha 22 anos, e faleceria aos 79 anos, aos 14 de janeiro de 1948, no Rio de Janeiro, quinze anos após ter escrito o texto que o leitor apreciará abaixo.

DEDICATÓRIA

Este estudo é dedicado a minha mãe, Maria Freire, que me apresentou Nísia Floresta desde a minha infância, despertando-me o interesse em lê-la e estudá-la.

Maria Freire

Agora que conhecemos um pouco de Escragnolle Doria, vamos conhecer o seu olhar sobre Nísia Floresta, cujo texto está conforme o vocabulário da época. Em seguida se seguirão os meus rápidos comentários sobre o texto:

“NÍSIA FLORESTA – POR ESCRAGOLLE DORIA

Roberto Seidl, professor, dado as pesquisas históricas, acaba de  publicar ensaio sobre a escritora Nísia Floresta, a educadora. Trabalho meritório e desinteressado, homenagem de mestre a mestre. Ressurreição de memória esquecida, lembrados outros na pedagogia nacional. Tudo digno de applauso sobre louvor. Cumpre amar bastante esse Brasil depreciado por muitos de seus filhos. Parricídio e matricídio não figuram apenas no Código Penal. O espírito tem seus crimes.

Nísia Floresta nasceu a 12 de outubro de 1810. Tinha o seculo XIX dez annos, para dizer á Victor Hugo falando a Napoleão. Na data do descobrimento da América vinha a mundo a menina Nísia fadada a ser a mulher mais americana das americas.

Recebia berço em pequena povoação perdida no Rio Grande do Norte ainda assim maior que Hollanda e Suissa. A recem-nascida de Floresta, hoje Papari era filha de portuguez  casado com brasileira. Lusitano, Dionísio Gonçalves Pinto perseguido foi com tal nas revoluções de 1817 a 1824, ambas ardendo em jacobinismo aos brados de “mata marinheiro”.

Gonçalves Pinto cahiu assassinado em Pernambuco, por volta de 1828. A viúva e a filha, esta Nísia Floresta Brasileira Augusta, desejariam sahir do Recife mais que depressa. Mas a pobreza não se move quando deve ou quér, sim quando póde.

Angariados alguns recursos, viúva e orphã dirigem a outro Rio Grande, ao do Sul, da’hi, tangidas pela guerra dos Farrapos. Aportam no Rio de Janeiro. Nísia Floresta retoma a profissão já exercida em Porto Alegre, o magisterio.

Em 1848, na Rua D. Manoel, 20, mantém Nisia Floresta o Collegio Augusto. Possuia então a capital do Império numerosos collegios para ambos os sexos, dirigidos por nacionaes e estrangeiros. Muito fallados entre os institutos de instrucção para meninas era na epoca os pertencentes a Madame Mallet, Madame Luiza Haubolt, mãe do professor do Imperial Collegio Pedro II, Madame Tanière, e a Baronesa de Geslim.

Viuva desde 1834, Nísia Floresta foi sempre a mulher do lar, apreciando os seus nos extremos da dedicação. Á mãe, á filha, Lívia, ao filho Augusto Américo de Faria Rocha, ao irmão Joaquim Pinto Brasil, consagrou-se Nísia Floresta de corpo e alma.

Partiu ella para a Europa, em 1849, a bem da saude da filha. Casaria esta na Allemanha, para enviuvar d’ahi a quatro mezes. A viuvez era sorte das mulheres era sorte da familia de Gonçalves Pinto.

Mais de tres lustros viveu Nisia Floresta na Europa. Veio ao Brasil depois da guerra do Paraguay, à europa tornando em 1875. Dez annos mais tarde recebia sepultura em Ruão, a cidade franceza onde Flaubert tanto martelou estylos para as paginas de Madame Bovary, insuflando antiguidades ás de Salambô, gigante que era, no physico e na arte de escrever.

Resumimos a vida social de Nisia Floresta, a Rio Grandense do Norte.

Á par d´aquella vida,outra houve, intensa: a espiritual, n´ella a considerar varios aspectos, o da feminista,o da educadora, o da viajante amiga das lettras sobre observadora incessante.

Nada ha talvez mais curioso ou arguto no mundo do que se conservar sereno entre o pró e o contra de tudo quanto habita este universo ou por elle passou. Quanto sim para quanto não!

Depois de ter lido, por exemplo Por Que Sou Feminista, de Mauricio Donay, convem ler o Por Que Não Sou Feminista, de Rachilde. Esta, em salão parisiense, por feminista norte americana, ignorante da lingua franceza, foi chamada de libertina em vez de libertária, o que de certo não é a mesma cousa, oh! não!

Disposto a lêr Razões de Ser Feminista, recorramos aos livros de Nisia Floresta, muito e todos inflammados pelo enthusiasmo da emancipação da mulher em geral, e da brasileira em parcticular. Não nos faltará pabulo intellectual.

A lembrança das tristes scenas de sua mocidade, a mais pungente a do assassínio paterno não extinguio em Nisia Floresta o amor á humanidade. Explicavel seria o sentimento opposto em quem tanto soffrera pela maldade dos homens, na carencia da justiça diante de mandatario poderoso qual o que mandara sacrificar Dionisio Gonçalves Pinto.

Feminista, quando o ser era singularidade, Nisia Floresta tambem republicana e abolicionista, rendeu homenagem a D. Pedro II. Brasileira, vio nelle o brasileiro. De acampamento opposto não se fica privado de saudar adversario digno.

Pugnando por suas idéas, como feminista e educadora, Nisia Floresta publica, valendo-se para defender o pensamento da imprensa e do livro. O Opusculo Humanitario da escriptora recebeu saudação de Alexandre Herculano, caracter adamantino, columna vertebral das mais duras que o universo tem conhecido. Mãe, Nisia Floresta escreveu Conselhos A’ minha Filha. D’elles nos diz Seidl: “Quando vemos, nos nossos ginasios e liceus, o Cuore De D’Amicis traduzido, lembram-nos o “Consigli a Mia Figlia”, tornando-se assim a obra prima do famoso escritor uma replica do famoso escritor italiano uma replica do trabalho da nossa eminente patricia”.

Aproximaremos os Conselhos de Nísia Floresta as Cartas a Cora, de José Lino Coutinho o médico ministro.

Nisia Floresta conhecia bem linguas vivas: exprimia-se correctamente em francez e italiano, já na conversa, já no papel. Ella propria verteu os Conselhos parao italiano, tendo o gosto de ver a obra recommendada para uso das escolas diocesanas pelo bispo de Mondovi, a cidade piemontesa consagrada por victoria de Bonaparte jovem, quando aos sorrisos da Fortuna.

Na Europa buscou Nisia Floresta o convivio de eminentes, entre elles, Augusto Comte, conhecido pela nossa patricia ao declinar de existencia. A approximação do fundador do Positivismo, mostra a largueza de pensamento da approximante.

Adianta Roberto Seidl que a Nisia Floresta “cabe, sem favor algum,o titulo de precursora do feminismo no Brasil e quiçá na America do Sul”

Aos 22 annos, Nisia Floresta, em 1832, imprimira no Recife opúsculo da senhora Godwin “Direito das Mulheres e Injustiça dos Homens”. Traduzido livremente do francez a traductora offerecera o trabalho ás brasileiras e aos academicos de nossa patria.

Abolicionista da America do Sul, póde Nisia Floresta ficar a par de Beecher Stowe, a abolicionista da America do Norte, cuja Cabana do Pae Thomaz ainda hoje o cinema reproduz fixando historia.

Não se contentou Nisia Floresta de reprovar a escravidão no Brasil e nos Estados Unidos, onde o negro tanto deu vermelho de sangue á Secessão. A nossa abolicionista buscou mostrar quão reprovavel em qualquer epoca era a nefanda instituição de tantos culpados mundo afóra.

Nisia Floresta viajante não se contentou em vêr. Deixou-nos prova de saber vêr, evocando historia e patria. Na casa alheia, por mais bella que fosse, não esquecia a casa natal, por menos que aos outros merecesse.

Correu Nisia Floresta, durante longa estadia européa, a Allemanha, a Italia, a Sicilia, a Grecia, não viajava só para ver vivos. Os grandes mortos inspiravam-lhe preitos. Nisia e a filha deixam no tumulo de Rafael ramo de rosas frescas “por emblema da suavidade que inspiram as figuras de suas madonas”.

Em Roma, Nisia Floresta avistou o arcebispo monsenhor Bedini, que conhecera internuncio no Rio de Janeiro da Maioridade.

A presença do prelado aviva-lhe recordações. Presidira, no Collegio Augusto, da rua D. Manoel, os exames annuos de litteratura e linguas estrangeiras. Ouvira, recitados por alumnas de 1848, trechos de poesia e prosa italiana. Pasmara quando certa menina recitara mais de centena de verso de Eneida, e outros das Odes de Horacio.

Nisia Floresta conheceu também da Igreja o mais alto representante, o tão combatido Pio IX, beijou-lhe a mão a emancipada, talvez agnostica no fundo d’alma. A polidez sabe inclinar-se diante da tradição. Ao lado da filha e da nora, Nisia Floresta observou o olhar brando e calmo de Pio IX, que lhe dirigio primeiras palavras em portuguez. Ouvindo a fala do Vigario de Christo, dizia Nisia Floresta haver “esquecido o fausto da Côrte Pontifícia que impressiona mal todos os espíritos versados nas santas maximas do evangelho”.

Em Napoles teve Nisia Floresta o ensejo de recordar ainda mais Brasil na pessoa de princêza e patricia, D. Januária, irmã de D. Pedro II, mulher do conde d’Aquila.

Lobrigou-a na cathedral da cidade do Vesúvio no dia napolitanissimo do milagre da liquefação do sangue coagulado de São Januario. Reparou tambem Nisia Floresta em Fernando II, o rei de Napoles tão taxado de tyranno sem nenhuma apparencia despotica antes com a de pae de familia. Na História nem tudo o que luz é ouro.

Podiam ficar espírito e temperamento como o de Nisia Floresta insensiveis em Florença. Ahi a viajante olvidou, comtudo, em dia de visita ao Palazzo Vecchio,  tudo quanto o museu podia encerrar: Nisia Floresta na propria praça do Palazzo, poz-se a lêr cartas e cartas vindas do Brasil, percorrendo-as avidamente, “passeiando entre o Davi de Buenarotti e o Perseu de Celinni”.

Tres annos levou Nisia Floresta a visitar Italia, experimentando as mais variadas sensações. Teve a de serenata popular no Canal Grande d’essa Veneza da qual Zien nos deu tantas côres em tantas telas. Commoveu-se com os rugidos de Othelo no palco de Ecnice ouvindo na propria Veneza os lamentos do grande mouro shakesperiano.

Em Verona como esqueceria Nisia Floresta Romeu e Julieta pela idealista evocados por noite de luar? Para compensar a crueldade da sórte dos amantes de Verona, teve Nisia Floresta o duplo prazer de visitar Manzoni em Milão e de admirar a Ristori, n’um palco de Genova tragediando na Myrra.

Na Sicilia emprehendeu Nisia Floresta a ascenção do Etna, obrigada a vestir-se á excurcionista como em pleno inverno dos paizes do Norte, tão de rigor o frio nos cimos do vulcão, de sombra gigantesca sobre a Sicilia.

Eis Nisia Floresta em Athenas quando atravessára a vida e a Europa para chegar alli, ella e a filha no Rio Grande do Norte! Antes passára pela ilha de Cythera, para a qual Watteau pintou tão celebre Embarque Cupidineo.

Em 12 de maio de 1859 entrava Nisia Floresta em Athenas, “onde viera entreter-se com as grandes sombras”. Não admira que, a 15 de maio, a viajante exclamasse: “será verdade estar eu em Athenas, realizando um dos sonhos de minha verde mocidade? 

Enlevaram-se as ruinas do Parthenão, o murmurio de Ilisso e do Cephiso: percorreu Nisia Floresta a planicie de Marathona da qual nunca deixou de  elevar-se através dos seculos o ruido de armas dos gregos de Milciades prostrando no pó da derrota os persas de Dario; o grande rei diminuido.

A sonhar no passado, a sonhar sempre com o Brasil, Nisia Floresta perdia-se pelo jardim de Athenas, obra e cuidado da Rainha da Grecia, delicioso oasis onde a passeiadora cismarenta caminhava entre as muralhas de rosas, de jasmins, de clematites, eden no qual aos bosques de laranjeiras  e de arbustos do Japão susccediam alamedas á jardim inglez, massiços de verdura  impenetraveis a qualquer restea de sol, caramanchoes para repouso da qual mais aprisionado por plantas trepadeiras retorcidamente caprichosas.

Afastando-se de Athenas, descendo a estrada de Daphne para Eleusis, Nisia Floresta embebeu olhar em maravilhosa perspectiva: de um lado a bahia, o estreito, a ilha de Salamina, de outro as plagas atticas e as collinas  onde Xerxes poz throno para contemplar a derrota dos gregos de 480. Mas, Nisia Floresta, que significação tinha e tem tudo isto para o grosso do exercito humano? A despeito de teu sexo out’róra pertenceste ao grande estado maior do Espírito.

                                                                         Escragnolle Doria "

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Breves comentários sobre o texto de Escragnolle Doria (L.C.F.)

Logo no início do texto, ao elogiar a iniciativa de Seidel, Escragnolle escreveu “...Trabalho meritório e desinteressado, homenagem de mestre a mestre. Ressurreição de memória esquecida, lembrados outros na pedagogia nacional”. Ele dá a memória de Nísia Floresta como esquecida, mas com certeza desconhecia muitas iniciativas que haviam ocorrido até aí, evocando Nísia Floresta desde a sua morte, principalmente no Rio Grande do Norte. Um exemplo foi a saga empreendida  por Henrique Castriciano e Adauto da Câmara, em especial, dentre outros intelectuais e autoridades, muito embora antes deles, outros potiguares o fizeram.

O que difere, nesse caso é a garimpagem feita por esses dois intelectuais, que foi fundamental para muito do que sabemos hoje sobre Nísia Floresta. Verdadeira arqueologia, com a vantagem de estarem mais próximos da morte dessa intelectual naquele tempo, e o próprio contato que Castriciano teve com Lívia, tendo bebido em rara fonte. Mesmo com lacunas que ainda permanecem, essa experiência foi louvável. Além de diversas ações ocorridas em outros estados e no exterior com essa finalidade. Cada um num contexto.

O nome de Nísia Floresta corria os sete cantos do Brasil e de outros estados e cidades, mediante correspondências que Adauto da Câmara trocava com outros intelectuais e instituições, tratando de assuntos como publicação de sua memória e traslado de seus despojos. Fora do Brasil, ao longo das décadas, Nísia Floresta também foi objeto de várias iniciativas (trataremos sobre esse assunto em texto futuro).

 

Adauto da Câmara

Um trecho chama a atenção pela frase célebre “... Na data do descobrimento da América vinha a mundo a menina Nísia fadada a ser a mulher mais americana das americas”. Essa é mais uma, dentre algumas citações marcantes sobre Nísia Floresta, celebrizadas por alguns intelectuais. É uma pérola para a coleção.

Vejamos um ponto interessante do ensaio quando Escraganolle escreve “... Gonçalves Pinto cahiu assassinado em Pernambuco, por volta de 1828. A viúva e a filha, esta Nísia Floresta Brasileira Augusta, desejariam sahir do Recife mais que depressa. Mas a pobreza não se move quando deve ou quér, sim quando póde”. Toda vez que falo sobre Nísia Floresta a uma plateia, há sempre a indagação sobre a suposta vida de fausto que ela desfrutava. 

Naquele tempo, viajar de navio não era para todos, portanto esses questionamentos afloram quando se sabe que Nísia Floresta viajava muito, principalmente depois que foi para a corte. Seus itinerários eram mais intensos no exterior. Estava sempre lançando ou reeditando livros, o que prediz gastos.

Engenho Benfica, Goianinha (Ormuz Barbalho Simonetti)

Como sabemos, Nísia Floresta nasceu no seio numa família de posses razoáveis, mas não eram donos da riqueza que alguns propagam. Seu pai, Dionísio, português, vivia da profissão de advogado. Sua mãe, Antonia Freire, vinha de uma família de proprietários de terras férteis, mas terra naquela época só dava dinheiro para quem mantinha engenho em intenso funcionamento – o que não era o caso deles – ou para quem as vendia – que também não foi o caso até então.

Com a morte do marido, dona Antonia Freire, como todas as mulheres de sua época, era “do lar”, desse modo ela passou a contar financeiramente com a filha, Nísia, que era professora de francês. Isso explica a dificuldade com que deixaram o Pernambuco, instigado pelos ares tristes da morte do pai.

Aspecto de um engenho à época de Nísia Floresta - Não é padrão, mas quase todos tinha praticamente essa compleição arquitetônica. 

A possibilidade de retornarem ao Rio Grande do Norte talvez agradasse a sua mãe, pois ali estavam os irmãos, tios e primos dela. Mas com certeza desagradava Nísia Floresta, tendo em vista os seus sonhos visionários e o possível reencontro com o primeiro marido. Retornar significava enclausurar a ilustração que cada vez mais se ampliava nela. Nísia já estava unida ao segundo marido Manuel Augusto, grande amor de sua vida, e trazia a filha Lívia ainda bebê. Como bacharel em direito, as oportunidades na província potiguar seriam parcas. Voltar ao berço norte-rio-grandense também ofuscava o próprio marido.

 

Charles F. Hartt, com a cidade do Recife ao fundo, durante levantamento da Comissão Geológica do Império - Marc Ferrez - 1875


Quando Escragnolle diz que Nísia Floresta desejava sair do Recife rapidamente com toda a sua família, mas a pobreza não permitia, deixa evidente que a mudança repentina de ares decorria da dor sofrida pela morte do chefe da família, e o momento delicado das finanças. Não havia mais o patriarca que arcava com as despesas da família. Após a morte de Dionísio eles permaneceram mais três anos em Recife, obviamente juntando recursos para a longa viagem que fariam para as terras pampas. 

A ida para o Rio Grande do Sul significava “mudança de ares”, que também era uma terapia muito recomendada pela medicida daquele tempo e válida até hoje. Creio que Nísia Floresta almejava fazer vida no Sul, trabalhando com o magistério. Ali ela  foi bem acolhida, mas a morte repentina do marido, somada ao clima hostil da guerra dos Farrapos frustrou os seus planos. Visionária, enxergou logo a capital do império como o local oportuno para alçar voos maiores.

Rua Duque de Caxias, Porto Alegre, Rio Grande do Sul - Final do século XIX.

Eram oito pessoas. As despesas não eram poucas. Os recursos certamente vinham das aulas particulares que Nísia Floresta, com apenas 17 anos de idade, oferecia em sua casa, somadas aos ganhos do marido, Augusto, e supostamente alguma ajuda financeira dos familiares de d. Antonia Freire, que residiam no Rio Grande do Norte.

A “riqueza” de Nísia Floresta, vista por alguns como majestosa, não é mais importante do que a sua história e as suas obras. De certo modo é normal atentar para o detalhe de que era necessário ter considerável recursos para o padrão de vida que ela passou a ter a partir de uma fase da vida. As idas e vindas entre o Brasil e Europa, as idas e vindas a países europeus – essas últimas tão bem destrinçadas em seu diário – e as constantes publicações predizem muitos gastos. Sobre isso somos levados apenas a supor dentro de uma lógica, já que nunca Nísia Floresta escreveu sobre isso.

Sobre a sua filha, Lívia Augusta, que havia casado com um alemão em enviuvado em seguida, sabemos quase nada. Somos levados a supor que ela, que também era tradutora, ajudava a mãe financeiramente, já que – igual à mãe – depois da viuvês, nunca mais se casou. Lívia poderia ter herdado razoável recursos do marido.

 

Largo da Carioca, 1895 - Nesse cenário esteve Nísia Floresta e sua família (Brasiliana)

Não se sabe se Colégio Augusto era um imóvel alugado  ou que ela o tenha comprado, mas desfazer-se desse patrimônio prediz somar recursos, e certamente ela possuia reservas que, tempos depois, se juntaram à venda da grande propriedade onde ele nasceu, situada numa extensa área denominada Sítio Floresta. Nísia, que aos 17 anos já trabalhava como professora de línguas em sua própria casa, não ficaria na Europa esperando as coisas caírem do céu. Provavelmente ela cobrava por suas conferências. 

O Brasil era objeto de interesse de muitos. Ela comercializava os seus livros, enfim tinha meios de vida. O seu próprio vai e vem em alguns países europeus não era algo extraordinário, continente onde tudo é perto, e ela não distava muito entre os países. Essa ideia de uma espécie de vida nababesca que muitos questionam, é exagero.

Aspectos da vida escolar feminina no final do século XIX - Observe que as meninas estavam praticando atividades físicas (Calestenia)

Aspectos da vida escolar feminina no final do século XIX - Observe que as meninas estavam numa aula  em que aprendiam  algo com tecido, linha e agulha.

Uma informação preciosa é dada quando Escragnolle Doria escreve que “... Em 1848, na Rua D. Manoel, 20, mantém Nisia Floresta o Collegio Augusto. Possuia então a capital do Império numerosos collegios para ambos os sexos, dirigidos por nacionaes e estrangeiros. Muito fallados entre os institutos de instrucção para meninas era na epoca os pertencentes a Madame Mallet, Madame Luiza Haubolt, mãe do professor do Imperial Collegio Pedro II, Madame Tanière, e a Baronesa de Geslim”. 

Esses dados são muito importantes porque nomeiam algumas diretoras de colégios que já existiam ali, permitindo pesquisas e estudos, além de revelar as mestras gringas que se debatiam na capital do império, ávidas por alunas, e que supostamente deram várias rabissacas ao verem uma concorrente tão ilustrada e - pasmem! - brasileira.

Largo da Carioca - 1895 - Marc Ferrez, ILM.

Nísia Floresta criticava a banalização dos educandários da época, percebendo a falta de competência e ética de muitas diretoras. Lembrando que tanto a pessoa de Nísia Floresta quanto o Colégio Augusto foram alvos de detratações terríveis, anonimamente, e deboches publicados em alguns jornais. Embora não justificassem, motivos não faltavam: era mulher, viúva, nordestina, sem diplomas para ostentar na parede, e a notícia escandalosa de que antes de todos esses fatos, havia abandonado o marido “no norte”. 

A “alternativa” que concorrência adotou para desviar o olhar da sociedade carioca para o colégio que prometia muito, era desmerecer a ilustração da proprietária com ataques injustos. Pesava ainda ao velho adágio: “santo de casa não faz milagres”.

O Colégio Augusto oferecia um ensino de excelente qualidade para as meninas, inclusive passou a contar com disciplinas que só existiam nos colégios masculinos. As detratações que Nísia Floresta e sua pedagogia recebiam eram armas sujas dos demais diretores. Quem sabe se não eram de autoria de uma dessas gringas citadas por Escragnolle? Outro detalhe que se soma a esse inferno contra Nísia Floresta é um texto anônimo – publicado em jornal naquela época –, divagando assuntos que a sociedade patriarcal recriminava. Por exemplo, que abandorana o marido no “Norte”. Conversas e fofocas à parte, Nísia Floresta sobreviveu a tudo isso, resilientemente.

Aspecto da fachada do Colégio Augusto, 1837 - Rio de Janeiro (H. Castriciano/A. Câmara)

Retomando o ensaio de Escragnole: “... Viuva desde 1834, Nísia Floresta foi sempre a mulher do lar, apreciando os seus nos extremos da dedicação. Á mãe, á filha, Lívia, ao filho Augusto Américo de Faria Rocha, ao irmão Joaquim Pinto Brasil, consagrou-se Nísia Floresta de corpo e alma”. Sobre esse trecho, ressalvo que Nísia Floresta ficou viúva em 1833, diferente do que Escragnolle informou. Como já foi dito, as informações sobre Nísia Floresta eram escassas, recolhidas aqui e ali, mediante correspondências e depoimentos orais de quem a conheceu ou teve contatos com os seus filhos.

No tocante à referência de que ela era “mulher do lar”, com certeza Nísia Floresta exercia essa nobre missão com primor. Os escritos dela falam por si. Era zelosa no cuidado com os seus familiares. E mesmo tão jovem e com tantos afazeres, programava o tempo de maneira que pudesse ler muito e passar para o papel as suas ideias. 

Sua vida era de muito trabalho, e isso não foi empecilho para publicar um livro aos 22 anos de idade, totalmente apoiada pelo marido. Com certeza, se tivesse permanecido casada com o primeiro marido no Rio Grande do Norte, homem tosco e patriarcal, que a queria submissa, seu talseria sufocado. O rompimento do casamento significou o rompimento de correntes que a tornariam enclausurada como se numa ermida vivesse. 

Aspecto de Paris à época de Nísia Floresta - Margens do Sena: cabanas e redes de pescadores - 1859  (Marville)

“... Partiu ella para a Europa, em 1849, a bem da saude da filha. Casaria esta na Allemanha, para enviuvar d’ahi a quatro mezes. A viuvez era sorte das mulheres era sorte da familia de Gonçalves Pinto”. Aqui, Escragnolle informa que Lívia Augusta Augusta de Faria Rocha Gade se casou na Alemanha e ficou viúva em seguida, lembrando uma espécie de sina da família, considerando a viuvez de Nísia Floresta e de sua mãe, d. Antonia Freire. A propósito disso, nada se sabe sobre o casamento de Lívia Augusta, o nome do marido, a causa mortis, nem o local do casamento. O assunto faz parte das tantas lacunas que  haverão de ser decifradas, necessitando para isso de muitos recursos para esquadrinhar velhos documentos na Alemanha e em outros países. 

... Mais de tres lustros viveu Nisia Floresta na Europa. Veio ao Brasil depois da guerra do Paraguay, à europa tornando em 1875. Dez annos mais tarde recebia sepultura em Ruão, a cidade franceza onde Flaubert tanto martelou estylos para as paginas de Madame Bovary, insuflando antiguidades ás de Salambô, gigante que era, no physico e na arte de escrever”. Sobre essa colocação de Escragnolle, por coincidência sou apaixonado pela obra de Gustave Flaubert e já pensei sobre a possibilidade de ele e Nísia Floresta terem se conhecido. Ele nasceu em 1821 e morreu em 1880. Morava em Rouen, muito próximo do endereço de Nísia Floresta. 

Rouen

Flaubert era um renomado e polêmico escritor.  Há episódios de sua história em que ele foi notícia em toda a França e parte da Europa, como, por exemplo, o seu julgamento na justiça. É possível que ambos se conheceram. Nísia Floresta nunca mencionou o nome dele. Diferente de outros notáveis intelectuais europeus que ela manteve laços de amizade e escreveu sobre os mesmos. Quem sabe se não existem alguns materiais inéditos – guardados em algum baú –  que pertenceram a Nísia Floresta em que ela cite Flaubert?

 “... Depois de ter lido, por exemplo Por Que Sou Feminista, de Mauricio Donay, convem ler o Por Que Não Sou Feminista, de Rachilde. Esta, em salão parisiense, por feminista norte americana, ignorante da lingua franceza, foi chamada de libertina em vez de libertária, o que de certo não é a mesma cousa, oh!.  Aqui Escragnolle se refere a Rachilde, autora de romances e crítica literária. Ao final do século XIX, fez parte do Mercure de France, revista simbolista francesa. Publicou diferentes obras. Era muito polêmica, inclusive escreveu Monsieur Vénus, romance publicado em 1884 e que causou pescândalo em seu tempo. (Sua bibliografia completa está no final deste estudo).

Com relação a Donay, encontrei um amplo material sobre ele, mas está em inglês, então pedi para Fídias traduzi-lo e posto aqui em outro momento.

... Disposto a lêr Razões de Ser Feminista, recorramos aos livros de Nisia Floresta, muito e todos inflammados pelo enthusiasmo da emancipação da mulher em geral, e da brasileira em parcticular. Não nos faltará pabulo intellectual”. Esse trecho ele chama a atenção para a Nísia Floresta feminista e seu entusiasmo sobre a emancipação da mulher. 

Um detalhe chama a atenção quando ele escreve “recorramos aos livros de Nísia Floresta”. Como expus acima, é muito provável que ele tivera acesso aos livros da nossa Nísia, pois foi para a Europa a trabalho - onde passou longo período - com a missão de reunir tudo o que existia ali sobre o Brasil. E esse empreendimento se deu numa época em que era muito mais fácil encontrar materiais sobre a nossa brasileira.

Certamente ele leu Nísia Floresta, inclusive era poliglota e teve obras escritas em francês, igualmente a ela. Escragnolle também trabalhou na Biblioteca Nacional. Quem sabe algumas obras de Nísia Floresta espalhadas em algumas instituições do Brasil pertenceram a ele, ou foram trazidas da Europa por ele. CITAR AQUI O ASSUNTO DO SOBRINHO DE ASSIS CHATEUBRIAND

... Feminista, quando o ser era singularidade, Nisia Floresta tambem republicana e abolicionista, rendeu homenagem a D. Pedro II. Brasileira, vio nelle o brasileiro. De acampamento opposto não se fica privado de saudar adversario digno”. Nesse trecho ele usa a expressão "feminista", então bastante moderna e ressalta que o ser era uma novidade. Essas palavras de Escragnolle Doria também reforçam a personalidade aparentemente contraditória de Nísia Floresta, ao elogiar e ao mesmo tempo criticar o imperador, mas isso precisa ser passado a limpo.

É o mesmo caso do catolicismo em Nísia Floresta. Sem sombra de dúvida, embora não praticante, ela era católica. Já escrevi sobre isso algumas vezes neste blog. Mas não poupava críticas a diversas faces do catolicismo. Críticas ácidas, diga-se de passagem. D Pedro II era um gentleman, um intelectual, um diplomata e fez muito pelo Brasil. Mas também deu diversos testemunhos autoritários e dúbios que receberam críticas dela, mas o assunto não vêm ao caso neste estudo. Nísia Floresta era antenadíssima. Há, sim, falas dela elogiando o imperador e outras figuras que estão nos livros de História do Brasil, mas na hora de criticar ela não se fazia de rogada. Inclusive acredito que ela sofreu censura direta em alguns de seus escritos.

Ainda sobre o catolicismo nela, esse trecho de Escragnolle fala por si: “Nisia Floresta conhecia bem linguas vivas: exprimia-se correctamente em francez e italiano, já na conversa, já no papel. Ella propria verteu os Conselhos para o italiano, tendo o gosto de ver a obra recommendada para uso das escolas diocesanas pelo bispo de Mondovi, a cidade piemontesa consagrada por victoria de Bonaparte jovem, quando aos sorrisos da Fortuna”.

“... Na Europa buscou Nisia Floresta o convivio de eminentes, entre elles, Augusto Comte, conhecido pela nossa patricia ao declinar de existencia. A approximação do fundador do Positivismo, mostra a largueza de pensamento da approximante”. Essa fala de Escragnolle reforça o que sabemos sobre a breve relação de amizade entre Comte e Nísia Floresta, embora essa amizade é muito deturpada até mesmo por pessoas esclarecidas,  que alimentam a ideia errônea de que houve um relacionamento amoroso entre ambos. 

Em 1997, tendo sido convidado a falar sobre Nísia Floresta a uma sala de alunos de História, na UFRN, ouvi, perplexo, o professor titular dessa disciplina, falando com ênfase sobre o que chamou de “caso amoroso entre Nísia Floresta e Comte, e que o próprio sobrenome dela “Augusta”, era uma homenagem a ele. Outra inverdade. Era uma homenagem ao segundo marido, que se chamava Augusto.


Obviamente que não seria proibido nem errado um relacionamento amoroso entre Nísia e Comte. Mas isso não existiu, e as cartas trocadas entre ambos, descobertas muito tempo depois, comprovam. Ademais, Escragnolle explica que Comte se tornou “... conhecido pela nossa patricia ao declinar de existencia”. 

Na realidade, Nísia o conheceu apenas de longe, assistindo suas conferências quando foi pela primeira vez a Paris. Em outra viagem ela o conheceu pessoalmente, quando ele se encontrava com a saúde mais abalada. Comte faleceu pouco depois, considerando que seus problemas de saúde caminhavam há anos. Foi uma bela amizade que durou apenas alguns meses. Não há razão nem necessidade para negar o suposto relacionamento.

... Abolicionista da America do Sul, pode Nisia Floresta ficar a par de Beecher Stowe, a abolicionista da America do Norte, cuja Cabana do Pae Thomaz ainda hoje o cinema reproduz fixando historia”. Aqui, Escragnolle sugere que o abolicionismo em Nísia Floresta recebeu - também - influência de Beecher Stowe, autora do clássico “A Cabana do Pai Tomás”. A suposição é muito lógica tendo em vista que Nísia Floresta era uma devoradora de livros, e é válido destacar que o abolicionismo em Nísia Floresta tem várias etapas. Como todos nós, ela se lapidou em suas ideias. “... Não se contentou Nisia Floresta de reprovar a escravidão no Brasil e nos Estados Unidos, onde o negro tanto deu vermelho de sangue á Secessão. A nossa abolicionista buscou mostrar quão reprovavel em qualquer epoca era a nefanda instituição de tantos culpados mundo afóra”.

... Nisia Floresta viajante não se contentou em vêr. Deixou-nos prova de saber vêr, evocando historia e patria. Na casa alheia, por mais bella que fosse, não esquecia a casa natal, por menos que aos outros merecesse”. Nísia Floresta foi uma divulgadora do Brasil lá fora, e essa ênfase, além do gosto em divulgar o seu país não apenas por ufanismo e romantismo, cumpria a missão de desmentir diversos autores europeus que escreviam obras que falavam sobre um Brasil idealizado. Uma alegoria. Não era o Brasil que ela bem conhecia.

... Em Roma, Nisia Floresta avistou o arcebispo monsenhor Bedini, que conhecera internuncio no Rio de Janeiro da Maioridade. A presença do prelado aviva-lhe recordações. Presidira, no Collegio Augusto, da rua D. Manoel, os exames annuos de litteratura e linguas estrangeiras. Ouvira, recitados por alumnas de 1848, trechos de poesia e prosa italiana. Pasmara quando certa menina recitara mais de centena de verso de Eneida, e outros das Odes de Horacio”. Aqui, Escragnolle dá uma palhinha do nível do Colégio Augusto, confirmando a ilustração de sua proprietária.


"... Nisia Floresta conheceu também da Igreja o mais alto representante, o tão combatido Pio IX, beijou-lhe a mão a emancipada, talvez agnostica no fundo d’alma. A polidez sabe inclinar-se diante da tradição. Ao lado da filha e da nora, Nisia Floresta observou o olhar brando e calmo de Pio IX, que lhe dirigio primeiras palavras em portuguez. Ouvindo a fala do Vigario de Christo, dizia Nisia Floresta haver “esquecido o fausto da Côrte Pontifícia que impressiona mal todos os espíritos versados nas santas maximas do evangelho”. Embora, diferente de mim, Escragnolle enxergou uma Nísia Floresta agnóstica, mas não é esse o detalhe mais curioso. Ademais, todos que escreveram sobre Nísia Floresta, tem opiniões pessoais no bojo dos fatos sobre ela. É só lê-los. Opinião é opinião. Mas é  importante que a suposição se dê dentro de uma lógica, que é obtida por quem a estuda com profundidade.

Sobre o trecho acima nos reencontramos com a Nísia Floresta católica. O que ela teria ido fazer no Vaticano? Por que visitou o papa? Ora, porque era católica. Isso é um assunto muito amplo. (Já escrevi sobre isso e está no meu blogue). Chamo a atenção aqui para a aparente contradição de Nísia Floresta, quando Escragnolle cita as palavras dela “esquecido o fausto da Côrte Pontifícia que impressiona mal todos os espíritos versados nas santas maximas do evangelho”.

Na realidade não é uma contradição. Quando ela chegou em algum silenciso jardim, ou em casa, que pegou da pena, que pegou da tinta e pôs-se a falar com o seu diário, a ficha caiu. É uma auto-crítica. Como se ela se punisse naquele instante por ter experimentado a oportunidade rara de estar diante do papa, ter a chance de dizer “ei, papa, o senhor é o chefe, contenha os seus clérigos, eles vivem no fausto, tem uma vida nababesca, enquanto muitos sequer têm o pão; voltem-se mais para os pobres”. Mas se calou. Estava extasiada diante de um monumento. Assim ficam todos, até hoje.

Escragnolle traz interessantes informações sobre Nísia Floresta, e nem todas estavam no ensaio de Seidl, além de externar suas próprias reflexões. Isso nos convence de que ele havia lido Nísia Floresta antes. Ele descreve muitas experiências que Nísia viveu na Europa, evidenciando o quanto ela era culta, além de lembrar da visita que ela fez a Alessandro Francesco Tommaso Manzoni, um dos maiores romancistas italianos de todos os tempos. Nísia Floresta bebeu em fontes preciosas, e sua ilustração se amplifica quando sabemos que ela conheceu pessoalmente várias figuras geniais.


Manzoni - 1870

“... Em 12 de maio de 1859 entrava Nisia Floresta em Athenas, “onde viera entreter-se com as grandes sombras”. Não admira que, a 15 de maio, a viajante exclamasse: “será verdade estar eu em Athenas, realizando um dos sonhos de minha verde mocidade?” Aqui reforçamos o entendimento de o quanto a genialidade de Nísia Floresta teria sido vilipendiada se tivesse ficado em Papary ou mesmo na corte. 

Leitora voraz, ela conhecia minuciosamente as histórias dos lugares que um dia conheceria pessoalmente. Ela que, conforme escreveu, sonhava viagens internacionais desde a adolescência, num tempo incomparável ao presente. Quando o Brasil não tinha estradas, cujas viagens rápidas e confortáveis eram exclusividade dos navios – mesmo as nacionais – e quando não, sofridamente, em lombos de cavalos que cortavam veredas, interligando as províncias ao longo de meses. Nesse tempo Nísia Floresta conhecia tudo dos Clássicos, tudo de História Universal e se via na Grécia. Como já foi dito, suas asas não cabiam no ninho em que nasceu.

... A sonhar no passado, a sonhar sempre com o Brasil, Nisia Floresta perdia-se pelo jardim de Athenas, obra e cuidado da Rainha da Grecia, delicioso oasis onde a passeiadora cismarenta caminhava entre as muralhas de rosas, de jasmins, de clematites, eden no qual aos bosques de laranjeiras  e de arbustos...”

Sobre o trecho acima, diferente do que alguns divulgam ou questionam, Nísia Floresta nunca abandonou o Brasil. O Brasil foi dentro dela. Suas obras que o digam. Ocorre que àquele tempo não era tão fácil estar entre o Brasil e a Europa na frequência como ela desejava. Era caro. E mesmo assim ela ainda fez essa ponte de maneira incomum. Muitos iam e nunca mais retornavam.

Exatamente sobre as ruínas da casa onde nasceu a nossa Nísia, ergueu-se o monumento em sua homenagem (1909). Observe que ainda é possível ver os restos do piso ou baldrame.

Nísia Floresta nunca esqueceu Papary. Sempre mencionou o seu berço, assim como Porto Alegre, Rio de Janeiro e Pernambuco, inclusive escreveu que sentia-se pernambucana. Talvez isso explique a razão de alguns intelectuais desse estado a reivindicar para eles as origens de Nísia Floresta. E assim encerro esse estudo, não para comemorar a morte da nossa ilustre potiguar, afinal ela está mais viva do que se pensa. Escrevo como escreveu Escragnolle e outros; escrevo para lembrar, para proclamar uma das intelectuais mais importantes do Brasil, tão grandiosa que é lembrada até hoje em várias partes do mundo. E sempre será, pois visionários são eternos. 25.12.2018

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Segue, abaixo, uma dissertação sobre Rachilde, de autoria de Camila Soares López. Com relação a Donay, encontrei um amplo material sobre ele, mas está em inglês, então pedi para Fídias traduzi-lo e posto aqui em outro momento:

 RACHILDE: CRÍTICA LITERÁRIA E ROMANCE NO FIN-DE-SIÈCLE FRANCÊS

Camila Soares López (ILEEL-UFU) Graduada em Letras (UNESP), Mestre em Literatura Brasileira (UNESP), Doutora em Literatura Francesa (UNESP). Docente de Língua e Literatura Francesa do Instituto de Letras e Linguística (ILEEL) da Universidade Federal de Uberlândia (UFU).

Resumo: Rachilde escreveu romances e dedicou-se à crítica literária. Ao final do século XIX, fez parte do Mercure de France, revista simbolista francesa, e publicou diferentes obras. Neste texto, apresentamos elementos da escrita e da vida de Rachilde. Concentramo-nos na análise de Monsieur Vénus, romance publicado em 1884 e que causou polêmica em seu tempo, e discorremos sobre a rubrica “Romans”, na qual Rachilde apresentou resenhas de livros.

Palavras-chave: Rachilde; Romance; Crítica Literária; Mercure de France.

Nascida em 1860, Marguerite Eymery adotou o pseudônimo Rachilde e lançou-se no mundo literário parisiense. Proveniente de família abastada, iniciou-se na atividade escrita muito jovem e obteve reconhecimento entre os agrupamentos decadentistas e simbolistas do final do século XIX francês. Rachilde criou para si uma existência tão fantasiosa quanto aquela que permeou sua narrativa. Dizia-se descendente de lobos, nascida em condições místicas e agraciada pelo espírito de um desencarnado soldado sueco, de quem recebera a alcunha que a fez famosa. Já na capital francesa, precisou vestir-se como homem para transitar nos espaços então proibidos às mulheres. Vale ressaltar que, na época, para além das amarras sociais, alguns homens da ciência acreditavam que o cérebro feminino era menor do que o masculino, por exemplo. Assim, a atividade escrita de mulheres limitava-se ao “domínio privado, à correspondência familiar ou à contabilidade da pequena empresa” (PERROT, 2007, p.97). Nomes como Michelet, Zola, Baudelaire, Barbey d’Aurevilly e os irmãos Goncourt, entre outros, não “apreciavam” mulheres que escreviam. No Livre de Masques, lançado em 1896 para traçar o perfil dos simbolistas da época, Remy de Gourmont afirmou que a incapacidade feminina para a escrita não era “pessoal”, mas “genérica e absoluta” (GOURMONT, 1896, p. 190). Na contramão de tais julgamentos, figuras como Sévérine, Gyp, Dick May e Marcelle de Tinayre conquistaram, ao lado de Rachilde, ainda que a duras penas, seu espaço no campo literário do período. Rachilde dedicou-se aos romances e à crítica literária. Fez parte do Mercure de France, revista simbolista que rivalizava com as grandes folhas da época, a exemplo da Revue des Deux Mondes, e que propôs a apresentação de novas perspectivas nas artes e da literatura. O Mercure foi responsável, também, pela edição de diversas obras francesas e estrangeiras, traduzindo para o francês, por exemplo, os escritos de Friedrich Nietzsche. Nas próximas linhas, discorreremos sobre a escrita da autora, analisando suas particularidades.

Rachilde: romance

Rachilde começou a publicar na década de 1870. Entretanto, alcançou polêmica e sucesso quando do lançamento de Monsieur Vénus, em 1884. Por conta dessa publicação, sofreu julgamento na Bélgica. Prefaciado por Maurice Barrès,2 que afirmou que a obra se tratava de um “prolongamento” da vida da própria Rachilde, Monsieur Vénus trouxe ao público, em narrativa em terceira pessoa, a história de Raoule de Vénérande e Jacques Silvert. O título do livro e nome da protagonista, Raoule, indicam a temática que perpassa essas páginas: a união entre o masculino e o feminino, em alusão à deusa Afrodite, inspiradora do amor e da beleza. A androginia, tema caro aos decadentes, aparece ao longo de toda a obra. Nessa trama, espaços frequentados por indivíduos socialmente privilegiados são descritos. Raoule de Vénérande é filha de uma família de posses, de quem herdou um luxuoso hotel. Nele, vive em companhia de sua casta tia, Madame Élisabeth de Vénérande, e nutre sua amizade com o Barão de Raittolbe. Longe de tal atmosfera, também marcada por aspectos decadentes, Raoule conhece Jacques, irmão de sua florista, Marie Silvert. Se Raoule de Vénérande é descrita como “la nerveuse” e aparece vestida, na maioria das vezes, em trajes “quase masculinos”, Jacques Silvert é construído de maneira oposta. De personalidade forte, Raoule é a “leoa”, a “amazona” e a “Diana” da narrativa de Rachilde. Seu comportamento, questionador desde a infância, é tido como resultado das desventuras de seus pais, mortos quando ela ainda era uma menina – isto é, suas atitudes seriam uma predisposição genética. Já os aspectos então vistos como “femininos” de Jacques são constantemente ressaltados: tratava-se de um homem florista de 24 anos, habituado a pintar paisagens bucólicas e que se mostrava “fresco e rosa como uma Romancista, ensaísta e crítico francês (1862-1923) jovem”. Também foi político e jornalista. Prefaciou a segunda edição de Monsieur Vénus, de 1889. Pudico, vivia ao lado de uma irmã que se prostituía; ambos eram oriundos de um lar precário, marcado pela miséria dos pais e pelo alcoolismo. No primeiro encontro entre Raoule e Jacques Silvert, aparece o indício inicial do infortúnio dessa relação: o ambiente, sugestivamente alcunhado “Éden”, apresenta odor de maçã, fruta associada ao pecado primordial da humanidade, cometido por Eva, mulher responsável por findar a existência de um aprazível paraíso ao ceder as tentações de uma ardilosa serpente. Ao longo da história, Raoule consegue transformar Jacques em sua amante, em situações caracterizadas pelo uso do haxixe e por práticas sadomasoquistas. O ápice ocorre quando Jacques e Raoule decidem se casar. Na cerimônia, são julgados por convidados e convidadas, cujos nomes são revelados e vemos tratarem-se de figuras importantes para o círculo social construído no livro, denunciando o olhar desses indivíduos diante do feito do novo casal: Por volta de meia-noite, os convidados do casamento de Jacques Silvert se deram conta de um fato interessante: a jovem noiva ainda estava entre eles, mas o jovem noivo havia desaparecido. Indisposição súbita, vexação de apaixonado, incidente grave, todas as conjecturas possíveis foram feitas entre os familiares, a quem essa união preocupava intensamente. O marquês de Sauvères presumiu que o bilhete de um rival rejeitado havia sido encontrado, sob sua toalha, no início da maravilhosa refeição que lhe fora servida. René afirmava que tia Élisabeth seguiria para a clausura naquela noite e entregaria seus poderes ao esposo (RACHILDE, 1899, p. 207, tradução nossa). Para Raoule de Vénérande, Jacques, já transformado em “Jaja” – que, segundo Claudine Lecrivain (1988, p. 107) remete à cortesã Nana, de Émile Zola, – seria a “mulher querida”, a “amante adorada” (RACHILDE, 1899, p. 190). Na ocasião do enlace, Madame de Vénérande amaldiçoa a sobrinha, renegando-a e, mais uma vez, reforçando os prenúncios da desgraça que acometeria os recém-casados. Apesar da objeção, a sobrinha mantém-se firme em suas escolhas, mostrando-se contrária aos preceitos de seu tempo: Raoule, com a ponta de seu indicador, acariciava seus traços regulares e seguia o arco harmonioso de suas sobrancelhas. - Sim, nós seremos felizes aqui e não é preciso deixar este templo

[quarto de Raoule] por muito tempo, para que nosso amor penetre cada objeto, cada tecido, cada ornamento de carícias loucas, como esse incenso penetra com seu perfume todas as cortinas que nos envolvem. Nós havíamos decidido viajar, não o faremos mais; não quero fugir da impiedosa sociedade, da qual sinto aumentar o ódio por nós. É preciso lhes mostrar que somos os mais fortes, porque nos amamos...” (RACHILDE, 1889, p. 218, tradução nossa). Nas linhas de seus “Romans”, Rachilde trouxe aos leitores e leitoras do Mercure de France não apenas considerações acerca daquilo que se publicava na virada do século

XIX, mas, também, elementos que, ainda hoje, permitem-nos melhor compreender as relações que marcaram o campo literário e, por fim, a atuação de uma mulher nos movimentos do fin-de-siècle.

Considerações finais

Ao transitar nos meios decadentistas e simbolistas – que incluíam cafés, salões,

redações de revistas, entre outros espaços – Rachilde não apenas divulgou a sua produção, mais foi parte de eventos de sociabilidades que marcaram o momento em que viveu. Em seus romances, mostrou-se avessa às regras que ditavam o comportamento feminino. Em sua crítica literária, Rachilde levou ao público de sua época uma análise particular dos livros que recebia, muitas vezes mostrando-se combativa e defendendo, também, a escrita de si mesma.

Referências

 Periódico Mercure de France (Paris. 1890). 1890-1965.

BOURDIEU, Pierre. Le champ littéraire. In: Actes de la recherche en sciences sociales. Vol. 89, septembre 1991. Le champ littéraire.

GOURMONT, Remy de. Le livre des masques: portraits symbolistes, gloses et

documents sur les écrivains d'hier et d'aujourd'hui. 3 ed. Paris, Société du Mercure de France, 1896.

LECRIVAIN, Claudine. Rachilde: Monsieur Vénus. ESTUDIOS de lengua y literatura francesas. Cádiz, 1988, pp. 101-110. Disponível em: http:// rodin.uca.es/ xmlui/ handle/10498/9531. Acesso em: 15/07/2018.

PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. Tradução de Ângela M. S. Côrrea. São Paulo: Contexto, 2007.

RACHILDE. Monsieur Vénus. Préface de Maurice Barrès. Paris: Félix Brossier Éditeur, 1889.

SOLDIN, Adeline. Exploring the Ambiguities of Feminism with Rachilde. In:

ANGELO, Adrienne; FÜLÖP, Erika (Edit.). Cherchez la femme: Women and Values in the Francophone World. Cambridge Scholars Publishing.

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Beves informações sobre Rachilde

Marguerite Vallette-Eymery (Château-l’évêque, 11 de fevereiro de 1860 – Paris, 4 de abril de 1953), conhecida pelo pseudônimo de Rachilde, foi uma escritora francesa. 

Representante do decadentismo francês, criou para si mesma, além de um pseudônimo, um passado e uma genealogia fantasiosas: identificava-se, por exemplo, com lobos, dando a entender que havia sido criada entre as feras. Vestia-se com roupas masculinas, apresentando-se, inclusive, como "homem de letras". A sua obra mais conhecida, Monsieur Vénus (1884), trata da relação de uma mulher aristocrata e dominante com um florista feminizado. Publicou boa parte de suas obras no jornal Mercure de France, fundado e dirigido pelo seu marido Alfred Valette.

  • L'Oiseau Mouche, Périgueux (L'Echo de la Dordogne, 1877
  • Les Grandes Manœuvres de Thiviers, Paris, 1879
  • Monsieur de la Nouveauté, Paris, 1880
  • La Femme du 199e régiment (fantaisie militaire), Périgueux, 1881
  • Histoires bêtes pour amuser les petits enfants d'esprit, Paris, 1884
  • Monsieur Vénus, roman matérialiste, Bruxelas, 1884
  • Nono, roman de mœurs contemporaines, Paris, 1885
  • Queue de poisson, Bruxelles, 1885
  • À Mort, Paris, 1886
  • La Virginité de Diane, Paris, 1886
  • La Marquise de Sade, Paris, 1887
  • Le Tiroir de Mimi-Corail, Paris, 1887
  • Madame Adonis, Paris, 1888
  • Le Mordu, mœurs littéraires, Paris, 1889
  • Les Oubliés. L'Homme roux, Paris, 1889
  • Minette, Paris, 1889
  • La Sanglante Ironie, Paris, 1891
  • Théâtre, Paris, 1891
  • L'Animale, Paris, 1893
  • Le Démon de l'absurde, Paris, 1894
  • La Princesse des Ténèbres, Paris, 1896
  • Les Hors Nature. Mœurs contemporaines, Paris, 1897
  • L'Heure sexuelle, Paris, 1898
  • La Tour d'amour, Paris, 1899
  • Contes et nouvelles suivis du Théâtre, Paris, 1900
  • La Jongleuse, Paris, Mercure de France, 1900
  • L'Imitation de la mort, nouvelles, Paris, 1903
  • Le Dessous, Paris : Mercure de France, 1904
  • Le Meneur de louves, Paris, 1905
  • Son Printemps, Paris, 1912
  • La Terre qui rit, Paris, Éditions de la Maison du livre, 1917
  • Dans le puits ou la vie inférieure, Paris, Mercure de France, 1918
  • La Découverte de l'Amérique, Genève, 1919
  • La Maison vierge, Paris, 1920
  • La Souris japonaise, Paris, 1921
  • Les Rageac, Paris, 1921
  • Le Grand Saigneur, Paris, 1922
  • L'Hôtel du Grand Veneur, Paris, 1922
  • Le Château des deux amants, Paris, Flammarion, 1923
  • Le Parc du mystère (com F. de Homem Christo), Paris, Flammarion, 1923
  • Au Seuil de l'enfer (com F. de Homem Christo), Paris, Flammarion, 1924
  • La Haine amoureuse, Paris, Flammarion, 1924
  • Le Théâtre des bêtes (ilustrações de Roger Reboussin, Paris, Les Arts et le Livre, 1926
  • Refaire l'amour, Paris, Ferenczi, 1927
  • Alfred Jarry ou le surmâle de lettres, Paris, Grasset, 1927
  • Le Prisonnier (com A. David), Paris, éd. de France, 1928
  • Madame de Lydone, assassin, Paris, Ferenczi, 1928
  • Pourquoi je ne suis pas féministe, Paris, éd. de France, 1928
  • La Femme aux mains d'ivoire, Paris, éd. des Portiques, 1929
  • Le Val sans retour (com J.-J. Lauzach), Paris, Fayard, 1929
  • Portraits d'hommes, Paris, Mornay, 1929
  • L'Homme aux bras de feu, Paris, Ferenczi, 1930
  • Les Voluptés imprévues, Paris, Ferenczi, 1931
  • Notre-Dame des rats, Paris, Querelle, 1931
  • Jeux d'artifice, Paris, Ferenczi, 1932
  • L'Amazone rouge, Paris, Lemerre, 1932
  • La Femme Dieu, Paris, Ferenczi, 1934
  • L'Aérophage (com J.-J. Lauzach), Paris, Les écrivains associés, 1935
  • L'Autre Crime, Paris, Mercure de France, 1937
  • Les Accords perdus, Paris, Corymbes, 1937
  • La Fille inconnue, Paris, Imprimerie la technique du livre, 1938
  • L'Anneau de Saturne, Paris, Ferenczi & fils, 1938
  • Pour la lumière, Paris, Fayard, 1938
  • Face à la peur, Paris, Mercure de France, 1939,
  • Duvet-d'Ange. Confession d'une jeune homme de lettres, Paris, Messein, 1943
  • Le roman d'un homme sérieux. Alfred Vallette à Rachilde 1885-1889, Paris, Mercure de France
  • Survie, Paris, Messein, 1945
  • Mon étrange plaisir, Paris, Baudinière, 1934
  • Quand j'étais jeune, Paris, Mercure de France, 1947
  • Le Château hermétique, sl, Ver Soli Ter, 1963
  • À l'Auberge de l'aigle, Reims, À l'Écart, 1977
  • L'Homme qui raille dans les cimetières, Paris, Éditions du Fourneau, 1982
  • 14 contes de jeunesse, Paris, Éditions du Fourneau, 1983
  • Portrait de Hugues Rebell, Reims, À l'Écart, 1987
  • Auriant, Reims, À l'Écart, 1987
  • Lettre à Charles Régismanset, Reims, À l'Écart, 1991
  • Trois lettres à Alfred Jarry, Paris, Les Silènes, 1991
  • Sade toujours !, Paris, Éditions du Fourneau, 1992
  • Nu primordial, Paris, Éditions du Fourneau, 1992
  • Cynismes, Paris, Éditions du Fourneau, 1995

 

 


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