ANTES DE LER É BOM SABER...

CONTATO: (Whatsapp) 84.99903.6081 - e-mail: luiscarlosfreire.freire@yahoo.com. Este blog - criado em 2008 - não é jornalístico. Fruto de um hobby, é uma compilação de escritos diversos, um trabalho intelectual de cunho etnográfico, etnológico e filológico, estudos lexicográficos e históricos de propriedade exclusiva do autor Luís Carlos Freire. Os conteúdos são protegidos. Não autorizo a veiculação desses conteúdos sem o contato prévio, sem a devida concordância. Desautorizo a transcrição literal e parcial, exceto breves trechos isolados, desde que mencionada a fonte, pois pretendo transformar tais estudos em publicações físicas. A quebra da segurança e plágio de conteúdos implicarão penalidade referentes às leis de Direitos Autorais. Luís Carlos Freire descende do mesmo tronco genealógico da escritora Nísia Floresta. O parentesco ocorre pelas raízes de sua mãe, Maria José Gomes Peixoto Freire, neta de Maria Clara de Magalhães Fontoura, trineta de Maria Jucunda de Magalhães Fontoura, descendente do Capitão-Mor Bento Freire do Revoredo e Mônica da Rocha Bezerra, dos quais descende a mãe de Nísia Floresta, Antonia Clara Freire. Fonte: "Os Troncos de Goianinha", de Ormuz Barbalho, diretor do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, um dos maiores genealogistas potiguares. O livro pode ser pesquisado no Museu Nísia Floresta, no centro da cidade de nome homônimo. Luís Carlos Freire é estudioso da obra de Nísia Floresta, membro da Comissão Norte-Riograndense de Folclore, sócio da Sociedade Científica de Estudos da Arte e da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Possui trabalhos científicos sobre a intelectual Nísia Floresta Brasileira Augusta, publicados nos anais da SBPC, Semana de Humanidade, Congressos etc. 'A linguagem Regionalista no Rio Grande do Norte', publicados neste blog, dentre inúmeros trabalhos na área de história, lendas, costumes, tradições etc. Uma pequena parte das referidas obras ainda não está concluída, inclusive várias são inéditas, mas o autor entendeu ser útil disponibilizá-las, visando contribuir com o conhecimento, pois certos assuntos não são encontrados em livros ou na internet. Algumas pesquisas são fruto de longos estudos, alguns até extensos e aprofundados, arquivos de Natal, Recife, Salvador e na Biblioteca Nacional no RJ, bem como o A Linguagem Regional no Rio Grande do Norte, fruto de 20 anos de estudos em muitas cidades do RN, predominantemente em Nísia Floresta. O autor estuda a história e a cultura popular da Região Metropolitana do Natal. Há muita informação sobre a intelectual Nísia Floresta Brasileira Augusta, o município homônimo, situado na Região Metropolitana de Natal/RN, lendas, crônicas, artigos, fotos, poesias, etc. OBS. Só publico e respondo comentários que contenham nome completo, e-mail e telefone.

sexta-feira, 8 de abril de 2022

O que Raquel de Queiroz escreveu sobre Nísia Floresta

 
O QUE RAQUEL DE QUEIROZ ESCREVEU SOBRE  NÍSIA FLORESTA
 
Tenho uma história curiosa com Raquel de Queiroz, contada no final deste estudo, em primeira mão. A primeira vez que li esse colosso da Literatura Brasileira, foi na sétima série do ensino fundamental, Ainda no Mato Grosso do Sul. Viajei n’O Quinze, depois contemplei A Beata Maria do Egito (peça teatral, que, inclusive interpretamos), Dôra Doralina e, instigado pela série transmitida pela Rede Globo, corri para o colo do Memorial de Maria Moura (tão criticado pela autora, tendo alegado que a licença poética mexeu muito na história, mudando algumas coisas).

O Quinze - também criticado por ela, que já declarou que o teria lapidado mais, se o tivesse escrito em outra fase de sua vida – mais amadurecida – é a obra que me marcou mais que as outras. É muito forte. Essa postura de criticar a própria obra, pela impossibilidade de a lapidá-la depois que vai para sucessivas edições, é típica de quem escreve. Acho “O Quinze” maravilhoso. Só ela sabia o que pretendia lapidar!


Raquel de Queiroz nasceu no dia 17 de novembro de 1910, em Fortaleza, no Ceará. Era membro da Academia Brasileira de Letras. Ela não acreditava em Deus, como já a vi declarando em algumas entrevistas em vídeo, e era extremamente politizada. Era trotskista. Morou a maior parte de sua vida no Rio de Janeiro. A nordestinidade nunca saiu dela. Raquel visitava sempre a sua fazenda de nome lírico: “Não Me Deixes”, em Quixadá, no Ceará. Gente simples, não habituada a livros, que residia nos arredores da propriedade, adorava Raquel. De fato percebemos nela uma mulher simples e doce. Das escritoras brasileiras, Raquel é um nome vivo, fluente, imprescindível.

Bem, Raquel de Queiroz todo mundo conhece. A internet traz maravilhas sobre ela... O objetivo aqui é ler o que ela escreveu sobre Nísia Floresta. Raquel deixou três textos escritos sobre Nísia. Hoje conheceremos um. Os demais ficarão para outro momento. O texto segue abaixo, respeitado o vocabulário da época. Em seguida estão comentários meus:
 
Nísia Floresta

Raquel de Queiroz

O Centro Norte-Rio-Grandense do Rio de Janeiro vai mandar à Europa, ou mais precisamente à cidade francesa de Rouen, o seu dedicado presidente, Dr. Marciano Freire, numa missão de carinho e piedade: trazer ao Brasil e os devolver à terra nativa do Papari (hoje município de Nísia Floresta) os restos mortais daquela que se batizou por Dionísia Pinto Lisboa mas que o mundo conheceu e celebrou sob o nome singular de Nísia Floresta Brasileira Augusta.

Dela dizia Oliveira Lima que foi “a mais notável mulher de letras do Brasil”. O fato é que essa rio-grandense-do-norte, nascida às margens da Lagoa Papari no ano de 1810, foi realmente uma personalidade excepcional. Numa época em que rara era a dona brasileira que sabia ler - Nísia Floresta falava e escrevia em latim, italiano e francês.Nascendo e vivendo no século do cativeiro (morreu três anos antes do dia 13 de Maio) era abolicionista. Num tempo em que as sinhás nacionais, segundo o velho ditado português só deviam sair de casa três vezes: a batizar, a casar e a enterrar - e se afundavam, de cabeção e chinelas, na intimidade do serralho das mucamas, a engordar e a fazer renda - nesse tempo, nesse mesmo tempo, Nísia Floresta era feminista” Aliás, falando no no feminismo de Nísia Floresta, parece que são os ares do Potengi propícios a êsses adiantamentos de Eva. pois é o Estado do Rio Grande do Norte o precursor dos mais importantes movimentos femininos do Brasil. Da pena da norte-rio-grandense Nísia Floresta saia, há 122 anos, em 1832 - a tradução de um livro de Mrs. Godwin (a famosa Mary Woolstonecraft), sogra de Shelley, quase sogra de Byron, e avó de Frankestein, pois o monstro é criação de sua filha, Mary Shelley): chama-se êsse livro “Vindications of the rights of Woman”, e Nísia lhe deu, em português, o título mais saboroso de “Direito das mulheres e injustiça dos homens”. Mais tarde, aquêle grande filho do Rio Grande do Norte que, menina ainda, tive a alegria de conhecer embora já desiludido, velho e enfêrmo, mas tão fino, tão tolerante e sabedor! - Henrique Castriciano - trouxe da Suíça para a sua terra a idéia que se concretizou na Escola Doméstica de Natal, espécie de Academia Feminina, justamente famosa em todo o País. E em 1927, tantos anos antes de se permitir no resto do Brasil o sufrágio feminino, o Rio Grande do Norte franqueou direitos políticos às suas mulheres, que imediatamente começaram a votar, a ser votadas e, o que é mais importante, a ser eleitas. O falecido escritor, Adauto da Câmara, na sua excelente biografia de Nísia Floresta, nos conta a história secreta da instituição do voto feminino no Rio Grande do Norte. Preparava-se a lei eleitoral; era presidente do Estado José Augusto e líder da Assembléia  o próprio Adauto da Câmara. Daqui do Rio, Juvenal Lamartine lançou a idéia, que os outros dois, meio por convicção, meio por galanteria, acabaram aceitando; o fato é que nas Disposições Gerais da Lei Eleitoral do Rio Grande do Norte surgiu como bomba a revolução, no artigo 77: “no Estado do Rio Grande do Norte poderão votar e ser votados sem distinção de sexos, todos os cidadãos que reunirem as condições exigidas por esta lei”.

Verdade que o Rio Grande do Norte, mais que nenhuma outra província, tem razão para homenagear suas mulheres. Não é êle a pátria da transcontinental Nísia Floresta? E não é a terra natal da doce, triste e canora Auta de Souza?

                                                       * * *
Acusou-se de insincero o nativismo tão apregoado por Nísia Floresta nos seus escritos, uma vez que ela, sem nenhum motivo aparente, acabou vivendo na Europa a maior parte da sua vida. No entanto, era bem compreensível que a sociedade nacional da segunda metade do século XIX, sufocasse um pouco aquela mulher ousada e inteligente, que sentia em si força para ultrapassar de longe a modesta posição de mestra-escola - a mais alta que aqui poderia pretender. Acusaram-na também de esnobe. Imagine, tinha a mania de escrever em francês e italiano, até para a família fazia cartas em francês! Sim, talvez fosse um pouco esnobe ou “blas-bleu” (Mulher pedante com fumos de literata.). Mas razões de sobra teria ela para adorar a França, onde convivia com literatos da melhor importância, visitava Lamartine e Manzoni, e recebia na sua intimidade Augusto Comte, com quem mantinha cerrada correspondência. No Brasil que vida seria a sua, naquele Rio beato e mal arejado, onde todos os seus passos deviam ser espiados e mal interpretados, os seus anseios literários levados a ridículo, suas ambições consideradas fora de propósito, e até mesmo fora da decência. No Rio, onde os seus esforços para incutir nas iaiás contemporâneas um pouco de gramática e ortografia eram assim comentados por uma “Correspondência” de jornal: “No Colégio… trabalhos de língua não faltaram: os de agulha ficaram no escuro. Os maridos precisam de mulheres que trabalhem mais e falem menos”. Seria, pois, de admirar que Nísia Floresta, entretanto, ao que parece, nos dinheiros de uma herança, fechasse o Colégio Augusto onde desasnava as sinhazinhas com tão pouco agradecimento, tomasse um navio e se fôsse a viver na Europa, a passear pela Itália, pela Alemanha e pela Grécia, a morar em Paris, e a trocar bilhetes com o pai do Positivismo?

Assim, portanto, foi, lá brilhou e lá morreu. E agora tornará a dormir na sua terra, às margens da lagoa nativa, que nunca na verdade esqueceu, e que foi a fonte constante da sua inspiração.
 
Raquel de Queiroz “Nísia Floresta”, Rio de Janeiro, O Cruzeiro, 15 de maio de 1954.

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Oliveira Lima (1867-1928)
 
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BREVES COMENTÁRIOS SOBRE O TEXTO DE RAQUEL DE QUEIROZ (L.C.FREIRE - 2013)
 
Marciano Freire concedendo entrevista à ocasião do traslado dos despojos de Nísia Floresta
 
 Inicialmente, Raquel informa que “... O Centro Norte-Rio-Grandense do Rio de Janeiro vai mandar à Europa, ou mais precisamente à cidade francesa de Rouen, o seu dedicado presidente, Dr. Marciano Freire, numa missão de carinho e piedade: trazer ao Brasil e os devolver à terra nativa do Papari (hoje município de Nísia Floresta) os restos mortais daquela que se batizou por Dionísia Pinto Lisboa mas que o mundo conheceu e celebrou sob o nome singular de Nísia Floresta Brasileira Augusta”, fato que nos permite supor que, dentre tantas figuras notáveis, Raquel pode ter prestigiado a bela exposição em homenagem à Nísia Floresta, que ocorreria na galeria do Centro Norte-Rio-Grandense, no Rio de Janeiro à ocasião da chegada dos despojos. Marciano Freire era natural de São José de Mipibu. Raquel era fortemente liga ao Rio Grande do Norte e conhecia várias figuras potiguares de escol daquela época.


No mesmo parágrafo, Raquel apresenta um dos supostos nomes de batismo de Nísia Floresta: “Dionísia Pinto Lisboa”. Sobre esse detalhe, no período de 1992 a 1994, esquadrinhei todos os documentos antigos existentes no acervo da Igreja Matriz de Nossa Senhora do Ó, na Arquidiocese de Natal e Cartório de Nísia Floresta pertinentes ao município de Nísia Floresta (batizados, casamentos, inventários, atas etc). Nada encontrei.
 
 
Vista aérea do centro de Nísia Floresta - 1996, vendo na parte superior a Igreja Matriz de Nísia Floresta (1735-1755), única construção contemporânea a Nísia Floresta. Ali está instalada a escultura de uma criança indígena em sua sacristia, obra de Dionísio, pai de Nísia Floresta.
 
Não existe nada sobre a intelectual Nísia Floresta. Fiz o mesmo trabalho nos acervos do município de São José de Mipibu/RN, tendo em vista que a área onde se configurava a antiga vila de Papary - hoje município de Nísia Floresta - pertencia geograficamente à São José de Mipibu até 1852. Nada encontrei. O nome de batismo de Nísia Floresta até hoje não foi esclarecido justamente pela falta de documentos originais, deixando aos pesquisadores o direito de supô-los, inclusive o nome de batismo dela varia em alguns textos antigos. O fato de Nísia Floresta ter adotado esse pseudônimo muito cedo, e de o ter usado em detrimento do nome de batismo - até em documentos -, dificulta conhecermos o seu nome de batismo verdadeiro. E, a propósito, além de usar outros pseudônimos, como Telesila, por exemplo, até o seu pseudônimo clássico, ela variava a utilização. 
Diário do Rio de Janeiro, 1849, onde se lê o nome "Nísia Floresta Brasileira Augusta" como uma das pessoas que embarcaram.

 “... Dela dizia Oliveira Lima que foi “a mais notável mulher de letras do Brasil”. O fato é que essa rio-grandense-do-norte, nascida às margens da Lagoa Papari no ano de 1810, foi realmente uma personalidade excepcional. Numa época em que rara era a dona brasileira que sabia ler - Nísia Floresta falava e escrevia em latim, italiano e francês”. O pernambucano Oliveira Lima foi um intelectual ímpar, digno de ser lido por todos, e quando ele coloca Nísia Floresta nesse panteão, reforça ainda mais a ilustração que tanto conhecemos nela.

Embora Oliveira Lima tenha pertencido a um tempo patriarcal e machista, em que a maioria dos homens viam as mulheres como seres inferiores e propensas à submissão masculina – e até mesmo as próprias mulheres assim o pensavam, com as devidas exceções –, ele não se inibe em exaltar a ilustração de Nísia Floresta. Essa iniciativa o destaca como um intelectual moderno em meio a tanto atraso e machismo. Creio que suas impressões sobre Nísia Floresta, em especial a sua frase célebre, pode não ter agradado algumas pessoas.


 “... Nascendo e vivendo no século do cativeiro (morreu três anos antes do dia 13 de Maio) era abolicionista. Num tempo em que as sinhás nacionais, segundo o velho ditado português só deviam sair de casa três vezes: a batizar, a casar e a enterrar - e se afundavam, de cabeção e chinelas, na intimidade do serralho das mucamas, a engordar e a fazer renda - nesse tempo, nesse mesmo tempo, Nísia Floresta era feminista”. Servindo-se do adágio lusitano, por sua vez herdado dos mouros e bem adaptado ao Brasil –, Raquel ilustra com perfeição a realidade das mulheres no tempo de Nísia Floresta e o quanto o seu brado emancipador foi providencial. Não pensemos que Nísia Floresta foi a única a vislumbrar um mundo igualitário para as mulheres. A diferença é que, enquanto as demais se silenciaram, cedendo às pressões machistas, ela desafiou tudo e se expôs. Fato audacioso demais para uma mulher. Alguém tinha que começar. Nísia começou, e com uma grande vantagem: enquanto as demais mulheres que sonharam em silêncio a sua emancipação eram limitadas donas de casa, ao estilo do que mostra o adágio lusitano, Nísia Floresta era uma intelectual devoradora de livros.
 

“... Aliás, falando no feminismo de Nísia Floresta, parece que são os ares do Potengi propícios a êsses adiantamentos de Eva. pois é o Estado do Rio Grande do Norte o precursor dos mais importantes movimentos femininos do Brasil...” Raquel citou o rio Potengi numa referência a Natal, capital do Rio Grande do Norte e algumas cidades por onde passam suas águas, cidades que foram berço do nascimento de mulheres pioneiras como prefeita, eleitora e vereadora já no início do século XX. Vale destacar que  a norte-rio-grandense Alzira Teixeira Soriano, de Jardim de Angicos,  foi a primeira mulher a ser eleita prefeita de um município da América Latina.

Um detalhe interessante é quando Raquel revela que conhecia Henrique Castriciano: “... Mais tarde, aquêle grande filho do Rio Grande do Norte que, menina ainda, tive a alegria de conhecer embora já desiludido, velho e enfêrmo, mas tão fino, tão tolerante e sabedor! - Henrique Castriciano - trouxe da Suíça para a sua terra a idéia que se concretizou na Escola Doméstica de Natal, espécie de Academia Feminina, justamente famosa em todo o País”. Constatamos uma amizade entre Raquel e Henrique Castriciano, embora ele era idoso quando ela o conheceu. A proximidade entre o Ceará e o Rio Grande do Norte, e o imã natural do mundo intelectual os aproximaram.
 

Castriciano foi vice-governador, deputado e escritor, tendo assumido algumas pastas públicas no estado. Percebemos o quanto ela era bem informada sobre Castriciano. Como sabemos, ele era um grande admirador de Nísia Floresta, tendo feito ampla pesquisa sobre a conterrânea com o objetivo de publicar um livro, mas muito adoecido, findou presenteando Adauto da Câmara com tudo o que compilou. Assim Adauto escreveu o livro que Raquel menciona.


 “... E em 1927, tantos anos antes de se permitir no resto do Brasil o sufrágio feminino, o Rio Grande do Norte franqueou direitos políticos às suas mulheres, que imediatamente começaram a votar, a ser votadas e, o que é mais importante, a ser eleitas. O falecido escritor, Adauto da Câmara, na sua excelente biografia de Nísia Floresta, nos conta a história secreta da instituição do voto feminino no Rio Grande do Norte. Preparava-se a lei eleitoral; era presidente do Estado José Augusto e líder da Assembléia  o próprio Adauto da Câmara. Daqui do Rio, Juvenal Lamartine lançou a idéia, que os outros dois, meio por convicção, meio por galanteria, acabaram aceitando; o fato é que nas Disposições Gerais da Lei Eleitoral do Rio Grande do Norte surgiu como bomba a revolução, no artigo 77: “no Estado do Rio Grande do Norte poderão votar e ser votados sem distinção de sexos, todos os cidadãos que reunirem as condições exigidas por esta lei”.
 

Berta Lutz, Juvenal Lamartine e o piloto do avião Latécoère 26, na cidade de Natal, antes do regresso da feminista ao Rio de Janeiro, 1928 - Brasiliana.

No trecho acima, Raquel sintetiza num parágrafo, anos de história e bastidores. Ela deixa claro a vanguarda norte-rio-grandense no que concerne à conquista dos direitos políticos femininos.  A cearense cita o escritor Adauto da Câmara - que também exerceu a função de deputado estadual -, e deixa evidente conhecer a sua obra sobre Nísia Floresta, publicada, pela primeira vez, em 1941, escrito treze anos antes do texto dela, à época a mais importante e substancial biografia nisiana.

Governador José Augusto Bezerra de Medeiros (1884-1928)

O governador José Augusto, citado por Raquel, era um intelectual. Ele só não foi vereador. Exerceu todos os demais cargos políticos eletivos. Foi um político extremamente preocupado com a educação; também era escritor, portanto constatamos que vários homens públicos naquele momento estavam no lugar certo e na hora certa, quando abraçaram ideias em prol da emancipação política feminina no Rio Grande do Norte. Eram intelectuais exercendo mandatos. Isso ajudou muito. Se fossem políticos com mentes retrógradas e machistas -, com certeza o desfecho teria sido outro. Mas sobre ele há uma página bastante curiosa em sua relação com Nísia Floresta.  José Augusto de Medeiros era grande admirador das obras de Nísia Floresta. Em 1925, governando o Rio Grande do Norte e tendo viajado ao Rio de Janeiro, ele esquadrinhou várias livrarias em busca de raridades bibliográficas, tentando encontrar algo sobre Nísia. O dono da livraria informou-lhe que, um dia antes, ele vendera por 200$ um volume  de Itineraire d’un voyage en Allemagne a um tal Pedro Gomes, oficial do Exército. José Augusto ficou profundamente desapontado, e isso sensibilizou o livreiro, a ponto dele entrar em contato com o major e expor o episódio. Com certeza o livro não significava tanto para o militar, pois ele não fez questão, devolvendo-o. Dizem que José Augusto ficou muito emocionado, sem acreditar que estava adquirindo um livro raro, que dava como impossível a localização. O melhor de tudo é que essa obra encontra-se guardada a sete chaves no Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte.
 
Juvenal Lamartine de Faria, governador do Estado do Rio Grande do Norte, com feministas e autoridades em Macaíba, Rio Grande do Norte - 1928 - Brasiliana.

Havia um homem forte na dianteira dessa história lá no Rio de Janeiro. Era Juvenal Lamartine de Faria, outro intelectual exercendo o mandato de deputado federal. Ele também era escritor e exerceu diversos cargos políticos no Rio Grande do Norte. A capital federal era o caldeirão fervilhante em que se amontoavam pessoas notáveis, cuja modernidade vinda dos países de primeiro mundo tinha ali a sua porta de entrada. Em suas memórias, Juvenal Lamartine escreveria “... Foi o Rio Grande do Norte, e por iniciativa minha, o primeiro Estado da raça latina onde as mulheres tiveram os seus direitos políticos reconhecidos e os exerceram livremente”.

Mas se havia um homem forte na dianteira desse projeto lá no Rio de Janeiro, havia uma mulher forte também no Rio de Janeiro. E na dianteira dessa inovação. Ela não é mencionada por Raquel de Queiroz, mas tem uma importância tão forte que seria injusto deixá-la guardada nos livros não lidos. Trata-se da intelectual Bertha Lutz, fundadora da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, em 1922, iniciativa vinculada ao movimento sufragista internacional, principal tendência do feminismo no início do século XX. Ela era cientista, política, filha do famoso cientista Adolfo Lutz. 

Berta Lutz (1894 – 1976) chegando a Natal - BN.

Berta Lutz se tornou amiga pessoal de Juvenal Lamartine, inclusive esteve no Rio Grande do Norte a convite dele. Não há como dispensar o entendimento de que ela exerceu poderosa influência em Lamartine, sugerindo-lhe que levasse a ideia de emancipação política feminina para o Rio Grande do Norte. Não que ele fosse um homem sem visão, pelo contrário, como um político disposto a avanços, disposto a mostrar serviço, que com certeza lia sobre emancipação feminina em outros países, se permitiu ouvir a voz legítima e uma mulher. Pelo menos penso assim, e isso é óbvio demais. O seu encontro com essa feminista foi providencial. Ele era um político com capacidade de criar leis, era muito respeitado pelos demais políticos que estavam lá na capital potiguar.

Berta Lutz - Brasiliana

Com certeza Berta Lutz enxergou um terreno fértil, despertando em Lamartine o interesse de também ser parte da História. E assim o pequeno e provinciano Rio Grande do Norte deu de capote na capital federal e mesmo em metrópoles como São Paulo e Minas Gerais, e até mesmo de muitos países, colocando as mulheres  brasileiras na vanguarda da emancipação política.

E como bem escreveu Raquel de Queiroz: “...Verdade que o Rio Grande do Norte, mais que nenhuma outra província, tem razão para homenagear suas mulheres. Não é êle a pátria da transcontinental Nísia Floresta? E não é a terra natal da doce, triste e canora Auta de Souza”? Ao citar a genial poetisa Auta de Souza, reforça o entendimento de o quanto Raquel era enfronhada nas coisas do Rio Grande do Norte, pois, na poesia, ninguém foi maior que a filha ilustre de Macaíba, irmã de Henrique Castriciano e Elóy de Souza, outra sumidade.
 
Auta de Souza - 1876-1901, viveu apenas 25 anos incompletos. Era irmã de Henrique Castriciano e Eloy de Souza.
* * *
Nesse segundo momento de seu ensaio, Raquel comenta um detalhe interessante na história de Nísia Floresta, já abordado no primeiro texto dessas homenagens de abril, sobre Escragnolle Doria: “... Acusou-se de insincero o nativismo tão apregoado por Nísia Floresta nos seus escritos, uma vez que ela, sem nenhum motivo aparente, acabou vivendo na Europa a maior parte da sua vida. No entanto, era bem compreensível que a sociedade nacional da segunda metade do século XIX, sufocasse um pouco aquela mulher ousada e inteligente, que sentia em si força para ultrapassar de longe a modesta posição de mestra-escola - a mais alta que aqui poderia pretender”. Não me lembro no momento sobre a autoria, mas já houve quem  opinasse que o nativismo em Nísia Floresta foi para inglês ver, tendo como parâmetro ela ter escolhido a Europa para morar.
 
Como já expus em outros escritos sobre Nísia Floresta, todos os que escreveram sobre ela acabam deixando as suas impressões pessoais. Muitas informações escritas por alguns estudiosos são hipóteses, já que ainda há muitas lacunas na biografia nisiana. Suposições são normais quando feitas dentro de uma lógica, dentro de um contexto. Mas também existem intelectuais que privilegiam algum ponto pescado aqui e ali e jogam na mídia apenas para polemizar, como é o caso da divulgação equivocada de que Nísia Floresta teve um relacionamento amoroso com Comte e uma meia dúzia de equívocos proclamados com tal mister. Se isso fosse verdadeiro, qual o problema? Nenhum. Mas o estranho da questão é que esse "caso amoroso" nunca existiu. Veremos sobre isso mais adiante.


Entendo que Nísia Floresta amava verdadeiramente o Brasil, e queria ver avanços diversos. Isso está implícito em muitos de seus escritos. O próprio fato de – na Europa – ela publicar uma obra que desmanchava a imagem preconceituosa e distorcida construída por alguns europeus em seus diários de viagem, fala por si. O que aconteceu a Nísia Floresta é muito simples: "Aí se implumara a grande ave de arribação, cujas asas não cabiam nos limites do ninho", nas palavras de Câmara Cascudo. Podemos pensar melhor sobre esse detalhe nas próprias palavras de Raquel de Queiroz: “... No Brasil que vida seria a sua, naquele Rio beato e mal arejado, onde todos os seus passos deviam ser espiados e mal interpretados, os seus anseios literários levados a ridículo, suas ambições consideradas fora de propósito, e até mesmo fora da decência”. De fato, o Brasil não servia para uma mente tão visionária.

Raquel traz um detalhe nem tão conhecido pelo grande público: “... Acusaram-na também de esnobe. Imagine, tinha a mania de escrever em francês e italiano, até para a família fazia cartas em francês! Sim, talvez fosse um pouco esnobe ou “blas-bleu”. Sobre as expressões “esnobe” e “blas-bleu, há determinadas informações importantes na história de Nísia Floresta que não sabemos e nunca saberemos, imagine esse detalhe.Mas nada nos impede de analisá-lo.

Goianinha, Rio Grande do Norte, onde nasceu Antonia Freire, mãe de Nísia Floresta - Prefeitura Municipal de Goianinha.

Para entendermos com certa lógica essas colocações de Raquel, é importante considerarmos alguns detalhes. Minha mãe sempre nos contou que ouvia os mais velhos dizerem que alguns familiares contemporâneos de Nísia Floresta, em Goianinha e Santo Antonio do Salto da Onça, a reprovaram e a criticaram muito quando ela se separou do primeiro marido. Naquele tempo – na maioria das famílias – a separação conjugal era uma desonra para todos os demais familiares. Houve uma parte da família que a condenou e outra foi indiferente.

Nísia Floresta era humana. Quem sabe ela escreveu essas cartas em francês e italiano – se realmente é fato – como forma elegante de mostrar aos familiares hostis a ela, que a província potiguar de fato lhe era muito pequena. Sua ilustração não cabia ali. Foi uma maneira de ela ser “transcontinental", no dizer dizer de Raquel. Convém lembrar que Antonia Freire, mãe de Nísia Floresta, era de Goianinha. Toda a sua parentela residia num raio que compreendia Papary (Nísia Floresta), Goianinha, e Santo Antonio do Salto da Onça (pertencia a Goianinha à época). Quando Nísia Floresta deixou o Rio Grande do Norte, o fez com sua mãe, irmãs, irmão e o pai. Todos os demais familiares ficaram no Rio Grande do Norte.

Precisamos considerar a normalidade da língua francesa no Brasil daquele tempo; era um idioma transcontinental, assim como o inglês atualmente. E até mais forte, pois no bojo da linguagem estavam incluídos modismos diversos: na literatura açucarada chegada de Paris para as yayá de engenho, na arquitetura, na moda masculina e feminina, enfim. Desse modo, escrever cartas em francês não é de todo pedante. Mas também precisamos pensar sobre a realidade da família de dona Antonia Freire, mãe de Nísia Floresta. Eram pessoas razoavelmente bem financeiramente, mas as mulheres eram donas de casa, e os homens, senhores das fazendas e engenhos. Creio que não eram familiarizados com a língua francesa. Mas no que se refere à expressão “blas-bleu”, por tudo o que sabemos sobre Nísia Floresta, ela passou longe disso.

Lamartine - 1790-1869.

“... Mas razões de sobra teria ela para adorar a França, onde convivia com literatos da melhor importância, visitava Lamartine e Manzoni, e recebia na sua intimidade Augusto Comte, com quem mantinha cerrada correspondência”. Sem dúvida alguma, Nísia Floresta precisou sair do Rio Grande do Norte. Do contrário sua ilustração morreria. O próprio fato de ser mulher já consistia num obstáculo natural, aumentado diante da impossibilidade de estar junto aos homens ilustrados do Brasil. O machismo construía muros. Não é à toa a parlenda antiquíssima: "Homem com homem, mulher com mulher, faca sem ponta, galinha sem pé" Mas na França foi diferente. Ali homens e mulheres intelectuais se irmanavam. Eles construíam pontes.

Ao dizer que Nísia Floresta “...recebia na sua intimidade Augusto Comte...”, não sei se há em Raquel uma pitada de malícia – como já falamos anteriormente – ou por “intimidade” ela se refira ao simples fato de Nísia Floresta receber pessoas em sua casa, de maneira mais informal. Creio que Raquel se refira ao salão que ela mantinha em sua residência em Paris. Ali ela recebeu não apenas Comte, mas diversos amigos intelectuais para reuniões, possíveis conferências e o que podemos entender como saraus. Quem sabe Raquel tenha se servido de uma expressão de época. Não creio que tenha se somado aos que equivocadamente alimentam os comentários que já tratamos anteriormente, até porque ela reconhece o quanto Nísia Floresta era culta e visionária. Mas se Raquel assim o fez, era humana!
 
Manzoni - 1785-1873

São vários autores brasileiros e estrangeiros que retratam o Rio de Janeiro do tempo de Nísia Floresta como um local ainda muito atrasado – comparado a Paris, por exemplo –, apesar de a família imperial residir ali e se servir dos recursos da época para modernizá-lo. Somava-se a essa precariedade, a hostilidade da parte de pessoas anônimas, supostamente diretores e diretoras de escolas, incomodados com a pedagogia do Colégio Augusto, autores de cartas anônimas, recados maldosos estampados em jornais com insinuações desagradáveis. Também havia a suspeita de que o primeira marido de Nísia Floresta a rondava pelas ruas cariocas – sabe-se lá com quais intenções – num tempo em que matar a mulher tinha amparo nas leis; era “defesa da honra”, a falta de outras mulheres com propósitos iguais aos dela, a solidão intelectual, a possível censura aos seus livros e outros fatores expulsaram Nísia Floresta do Brasil. Pois como disse Raquel “...suas ambições consideradas fora de propósito, e até mesmo fora da decência”. Era muita pressão para uma migrante nordestina, sobretudo viúva. Uma soma terrivelmente negativa.

O trecho seguinte esclarece um pouco essas energias ruins vividas por ela: “... No Rio, onde os seus esforços para incutir nas iaiás contemporâneas um pouco de gramática e ortografia eram assim comentados por uma “Correspondência” de jornal: “No Colégio… trabalhos de língua não faltaram: os de agulha ficaram no escuro. Os maridos precisam de mulheres que trabalhem mais e falem menos”.

O Colégio Augusto tinha exatamente esse modelo, mas a fotografia retrata outro imóvel. Não é o citado colégio.

Aqui, Raquel se convence de que o destino de Nísia Floresta, de fato, era a Europa: “... Seria, pois, de admirar que Nísia Floresta, entretanto, ao que parece, nos dinheiros de uma herança, fechasse o Colégio Augusto onde desasnava as sinhazinhas com tão pouco agradecimento, tomasse um navio e se fôsse a viver na Europa, a passear pela Itália, pela Alemanha e pela Grécia, a morar em Paris, e a trocar bilhetes com o pai do Positivismo?" Mas há outros detalhes embutidos no bojo desse parágrafo, quando ela diz: “... nos dinheiros de uma herança”. Isso nos transporta para o texto de Escragnolle Doria, e também à opinião de Adauto da Câmara, na questão pertinente a tão suposta riqueza em que Nísia Floresta vivia. Vamos discuti-la novamente no âmbito de suposições bastante prováveis.

Navio Ville de Paris, em que Nísia Floresta embarcou em sua primeira viagem à Europa, ao lado dos filhos - The_Royal_Dockyard_at_Chatham.


Antes de entrarmos no assunto, convém refletirmos sobre o ponto em que Raquel, enfeixando uma porção de entraves encontrados por Nísia Floresta na corte do Rio de Janeiro, julga sensato que ela “... tomasse um navio e se fôsse a viver na Europa, a passear pela Itália, pela Alemanha e pela Grécia, a morar em Paris…”. Mas é pertinente objetar que a palavra “passear” vai muito além do que Raquel supostamente julgou, e que os olhos atuais podem julgar. De fato Nísia Floresta escreveu que passear era a melhor forma de arejar a mente, mas, profundamente amadurecida, esse "passeio" gerou uma obra com dois volumes fascinantes: Itinerário de Uma Viagem a Itália Seguido de Uma Viagem à Grécia. de uma riqueza e substancialidade incríveis.

Ela se comportava nesses “passeios” como uma filósofa, uma socióloga, uma jornalista, uma historiadora. Era uma observadora perspicaz. Suas impressões revelam uma vastidão de conhecimentos. Nísia conhecia os lugares antes de estar neles. Conhecia com profundidade através das leituras. Desse modo citava fatos, comparava, citava personagens da História Universal, das mitologias, da Bíblia fazendo analogias que somente uma pessoa muito culta é capaz. Tudo isso num tempo sem Google e sem smatphone. É impressionante o quanto ela era atualizada com os fatos contemporâneos e do passado. É assunto para outra oportunidade. Falo melhor sobe Uma Viagem a Itália Seguido de Uma Viagem à Grécia no texto de Polansky Silva, que virá ainda nessa temporada de abril.

Ao expor que Nísia Floresta, na Europa, iria “... trocar bilhetes com o pai do Positivismo…”, referindo-se a Augusto Comte, é uma observação providencial da escritora cearense, pois, ao contrário do que alguns afirmam, sobre Nísia Floresta ter aderido à doutrina do Positivismo e ter se servido dela em sua escrita e em seu pensar, isso não procede. Ter sido admiradora do positivista Comte - por sua sabedoria - não é o mesmo que ter sido admiradora, adepta ou praticante da doutrina positivista. Inclusive, encantado com a sabedoria da brasileira, Comte declarou que ela seria uma grande discípula se não fosse tão metafísica e tinha esperança de sua filha Lívia corresponder a tais propósitos. Ainda há quem defenda - equivocadamente também - que o Positivismo de Comte chegou ao Brasil por iniciativa de Nísia Floresta.


Mas, retomando a reflexão sobre as finanças de Nísia Floresta, muitos questionam a fonte das finanças dela, supondo que ela vivia na opulência, a julgar por suas constantes viagens, as publicações de livros e sua eventual instalação em alguns países. Como já discutimos no texto de Escragnolle, houve momentos difíceis na vida de Nísia Floresta, intensificados quando o seu pai foi assassinado e ela, recém-casada, se viu como arrimo de família, ajudada pelo marido. Suas finanças aparentam ter melhorado aos poucos quando ela se estabilizou no Rio de Janeiro. Mas há muitos detalhes nessa estabilidade financeira. Não foi num passe de mágica.

No início o Colégio Augusto sofreu críticas ferrenhas, mas a resiliência de sua proprietária se impôs e sobrepujou. Nísia era tão altruíssta que nunca respondeu tais críticas. Ela respondia com sa ua dignidade, com o seu trabalho. A instituição se firmou e se tornou uma escola estabilizada e próspera quanto às demais, em termos de número de alunas. É o que todos supõem tendo como parâmetro a divulgação que Nísia Floresta fazia sobre o Colégio Augusto nos jornais. 

Leis educacionáis à época de Nísia Floresta - Jornal do Comércio

O Rio de Janeiro foi o local, no Brasil, onde ela mais publicou e reeditou suas obras. Seu colégio, que inicialmente não se localizava em local tão central, mudou-se para o centro da capital da província. Ela própria residia no colégio com a sua família. Tudo isso prediz que as finanças prosperaram, embora ela fosse a única professora da escola. Além disso, havia muitas alunas bolsistas, revelando que sua proprietária também se preocupava com a formação das meninas pobres, inclusive muitas delas se tornariam professoras de colégios públicos.

É nesse clima de certa prosperidade que ela vai à Paris para cuidar da saúde da filha, depois retorna ao Brasil e faz mais duas viagens à Europa e resolve morar ali definitivamente. Adauto da Câmara, em sua biografia citada por Raquel de Queiroz, supõe que Nísia Floresta tenha recebido herança considerável dos pais de Manuel Augusto, o marido falecido e pai de seus dois filhos. Pouco tempo depois, em 1853, sua mãe venderia a propriedade no Sítio Floresta, quando até na Europa Nísia Floresta já havia ido. Com certeza a renda do Colégio Augusto era considerável. A propriedade de Papary (hoje Nísia Floresta) está numa região de terras prósperas, de paul, áreas de arisco e muita água. Suas rendas eram um somatório de coisas.
 
Endereço exato onde o Colégio Augusto funcionou. O prédio acima é uma construção centenária e está intacta. Por ser um prédio centenário, supomos que o Colégio Augusto foi demolido para que esse imóvel (que ainda existe) foi construído.

O Colégio Augusto existiu ativamente durante dezessete anos. É possível que, desde os tempos das dificuldades financeiras enfrentadas à ocasião do assassinato do seu pai, no Pernambuco, algum tio materno, de Goianinha, os tenha ajudado financeiramente. Somos levados a pensar que as dificuldades financeiras existiram num determinado momento, mas não foram caóticas, pois já que não queriam mais viver no Rio Grande do Norte, poderiam ter vendido a propriedade no Sítio Floresta, e não fizeram num momento de dificuldades.
 
E assim Raquel encerra o seu texto: “... Assim, portanto, foi, lá brilhou e lá morreu. E agora tornará a dormir na sua terra, às margens da lagoa nativa, que nunca na verdade esqueceu, e que foi a fonte constante da sua inspiração”.

***
UM EPISÓDIO CURIOSO

Em 1997 tive um insight, desses de gente doida em plenos trinta anos de idade. Localizei o número do telefone da casa dela e telefonei. Conheci a sua empregada doméstica - pelo telefone - postulando um contato com a grande Raquel. Quando contei que morava no Rio Grande do Norte, a empregada - que no início da conversa havia agido com mais formalidade –, mudou da água para o vinho, como se eu tivesse me transformado num amigo às custas daquela informação.

No mesmo instante ela disse que era de Goianinha (cidade situada a 70 km de Natal). Então começamos a conversar. Perguntou se eu conhecia o município dela, ressalvando que conhecia a cidade de Nísia Floresta, onde havia ido uma vez, mas morava no Rio de Janeiro - com Raquel de Queiroz - há muitos anos. Perguntei se ela gostava de morar naquela metrópole. Ela disse que gostava, mas pretendia retornar ao seu ninho de nascimento assim que se aposentasse. Colocou Raquel de Queiroz no céu. Fiquei impressionado com a experiência, e senti coragem de me abrir, já que quase inventava uma desculpa para encerrar aquilo. Falei que queria conversar com Raquel de Queiroz, que não iria demorar; era só para dizer-lhe algumas palavras elogiosas, falar que eu a admirava muito, elogiar os livros dela que havia lido, enfim.
Estátua de Raquel de Queiroz em bronze, tamanho natural - Praça dos Leões, Rio de Janeiro.

A empregada, com delicadeza cativante, me disse que iria passar a informação para ela, e que eu telefonasse na semana seguinte, quando saberia a resposta de Raquel. Perguntei “você acha que ela me atenderia? Sou um estranho!?”. Ela respondeu que ia dar certo, e que eu tivesse fé. Tive a impressão que aquela certeza era uma intercessão. Explicou, inclusive, que Raquel de Queiroz gostava muito de conversar com pessoas da sua região (eu nem contei para ela que era sul-mato-grossense). Desnecessário.

Pois bem, na sexta-feira da semana seguinte liguei e nem acreditei. Raquel de Queiroz havia concordado. A empregada me contou que havia falado sobre mim, que eu era de Nísia Floresta, e Raquel achou curioso, tendo dito que Nísia Floresta havia sido uma personagem da história muito importante. A empregada ressalvou que eu ligasse na semana seguinte, então ela me colocaria para falar com ela. Chegou a ocasião. Liguei. A moça disse que ela estava dormindo, que eu ligasse naquele mesmo dia, mas às 17 horas. Liguei. Ela atendeu e disse que estava passando o telefone para ela em segundos. Desliguei. Meu coração saltava como se eu tivesse cometido um crime. 
 
Tenho certeza que a empregada de Raquel, se um dia ler isso, se lembrará do fato.

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Cadernos de Literatura Brasileira - Raquel de Queiroz

Em 2009 ganhei da minha tia Lourdes Freire, que reside em São José de Mipibu, uma luxuosa revista chamada “Cadernos de Literatura Brasileira - Raquel de Queiroz”. Cada fascículo é dedicado a uma figura ilustre da escrita. É uma revista maravilhosa. Há uma boa síntese sobre as personagens contempladas, seguidas de uma ampla entrevista com os mesmos. Li num fôlego só. De vez em quando pego para reler. Então, relendo esse texto de Raquel tal episódio se avivou na minha mente. Toda vez que vejo a imagem de Raquel, ou quando alguém a cita, me vem essa memória.

 

CURIOSIDADE: Raquel de Queiroz disse no ensaio acima que a Europa foi um fator contribuinte para que Nísia Floresta “... fechasse o Colégio Augusto onde desasnava as sinhazinhas…”. A expressão “desarnar” é muito comum em Nísia Floresta até hoje. É uma corruptela de “desasnar”. Vem de “asno”, “burro”. Isso posto, “desarnar” ou “desasnar” quer dizer “desemburrecer”, “deixar de ser asno”. Óbvio que a expressão é usada com normalidade sem que os falantes saibam desses detalhes todos. A palavra é usada para denotar que a criança prosperou na alfabetização. Também serve para dizer que a criança evoluiu em outros aprendizados, inclusive da própria vida. Raquel, como escritora e com o seu domínio da palavra, a emprega em seu formato erudito, mas como dito, em Nísia Floresta falam desarnar: “Fulano ‘desarnou’ demais depois de foi morar em Natal”.

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