Há uma história muito antiga contada no Sul que diz que quando o alemão Herr Blumenau chegou da Europa para dar início ao Sul do Brasil, onde existiam apenas matas, ocas e indígenas, ele fez, digamos, amizade com o cacique dali, o qual deu uma aula sobre tudo dali, e no calor das conversas lhe disse "essas terras não são nossas". E Herr perguntou "são de quem?" Ele respondeu "são das águas".
Nos meus 56 anos de idade, nunca imaginei uma tragédia como a que se deu no Rio Grande do Sul. As imagens lembram um tsunami ou uma guerra. Casas em cima de árvores, carros trepados em telhados, bairros gigantescos raspados pelos alicerces, levados pelas correntezas como feitos de isopor; uma cidade submersa, a capital tomada pela água, comunidades que sumiram, ficou apenas o solo; pessoas e animais levados pelas águas como folhas secas, muitos mortos... terrível... O mundo se compadece.
Viram quanta terra (lama) acumulou nas cidades inteiras? Há lugares que o barro ultrapassou o primeiro andar dos prédios. O mar e os rios vomitaram tudo o que estava acumulado há décadas em seus leitos: lixo industrializado e terra das lavouras que os assoreia há décadas e, pior, depois de destruir as cidades, tudo retornou para os rios, mares, lagoas e mangues numa dimensão imensurável.
Se colocarmos meio copo de areia num copo cheio de água, a outra metade vai transbordar. Assim estão os rios e lagoas, receptores de terra da vasta agricultura gaúcha. O próprio senso comum explica muito, mas cientistas já tinham estudos há mais de dez anos. Vacilaram.
Desde que o mundo é mundo, ocorre enchente em todo o planeta. Dentre inúmeras serventias da chuva, uma serve para renovar os biomas e ecossistemas, nutrindo-os. Mas vem o homem e constrói nas áreas que alagam por excelência (beira de rios, mangues e lagoas). Acrescente a isso o lixo industrializado e as terras das colossais fazendas agricultáveis, onde antes eram florestas (e hoje nem mata ciliar sobrou). Acrescente também os efeitos do aquecimento global engolindo principalmente a urbanidade litorânea.
A natureza não está louca. Não é Deus castigando ninguém. Não são as religiões de matrizes africanas que motivam a ira de Deus. Deus está irado com outras coisas. Também não é a ira da natureza. É a natureza em seus ciclos, é a natureza acontecendo e se esbarrando nos obstáculos construídos pelo homem. São cidades em lugares errados.
Os morros despencando, os rios se rasgando, as pontes levadas como isopor são consequências das mutilações que o homem faz na natureza. Tudo o que o homem mutila, vira arma contra ele. O homem rasga morros, aterra mangues e estuários, desmata, cava buracos para represas, tapa rios, tapa lagoas, muda cursos dos rios, tapa nascentes, faz o diabo com a natureza, mas subestima que ela tem a sua anatomia própria no solo, e mesmo modificada na flor da terra, a sua essência não se modifica.
Quase toda a área que foi urbanizada no Rio Grande do Sul, em especial Porto Alegre e área metropolitana, originalmente é mangue, estuário, áreas cujas águas se renovam em harmonia com o habitat que a circunda. As águas extravasam naturalmente nessas áreas, mas o homem aterra e constrói cidades sobre ecossistemas emoldurados de águas.
Não é à toa que Porto Alegre é toda murada (vamos dizer assim). Esse “muro” é o que eles chamam de dique. São portas gigantescas de ferro que se fecham na eminência de enchentes. Esses mecanismos possuem estruturas emborrachadas que, sob pressão, impedem a vazão da água. É uma engenharia associada a diversas casas de bombas movidas a energia elétrica, cujo objetivo é evitar que a parte urbana se alague. Mas como estavam sem manutenção há anos, não serviu de nada. Estava tudo estragado, mesmo que há mais de dez anos os especialistas alertavam as autoridades sobre possíveis catástrofes.
De nada adiantava lembrar isso durante o auge da tragédia – como muitos fizeram nas redes sociais, até debochando –, afinal não resolveria nada. Só traria estresse. É o famoso chorar pelo leite derramado. Mas, agora que as coisas estão melhorando, os gaúchos precisam tirar lições. O governo tem adiante uma obra colossal – caríssima – para estar pronta para ontem. Isso é uma lição para todos os estados do Brasil, cujas ruas viram piscinas quando chove.
Se compararmos os gastos com a manutenção desses diques e outros procedimentos orientados pelos especialistas antes da catástrofe, é um valor irrisório comparado ao volume colossal de gastos que o governo estadual e federal terão de agora em diante. Não teria sido melhor cuidar da manutenção?
A natureza quer o seu espaço. Nada mais. Mas já que o homem invadiu a área que a ela pertencia, ele deve adaptar essa invasão à urbanidade (o dique servia para isso). O impacto das enchentes poderia ter sido amenizado se, há mais de dez anos os governadores do Governo do Rio Grande do Sul tivessem executando as obras propostas pelos engenheiros e especialistas. Na verdade, essa precaução e as melhorias já eram cogitadas – de boca – há 20 anos. Houve tempo de sobra.
Em 2012, com o PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), criado pela ex-presidente Dilma Rousseff, o Rio Grande do Sul teve como dar início às obras. Não é uma obra de 1 ano. É uma obra de vários anos, feita em diversas etapas e perpassa por gestões de vários governadores, inclusive o atual. Houve dinheiro para isso, mas certamente usaram em outra coisa (não estou dizendo que houve corrupção), me refiro a utilização dos recursos em outros projetos que o povo vê de longe. Políticos toscos – como são a maioria Brasil afora – não gostam de construir obras debaixo da terra porque ninguém vê. Agora vejam as consequências. Se gaúcho eu fosse, faria uma campanha de sensibilização sobre o assunto, e pedia para que eles nunca mais votassem em quem esteve no poder nos últimos 15 anos no RS (governadores, senadores, deputados e vereadores) nem em seus parentes. Grande parte da culpa é deles.
Parece que as coisas foram empurradas com a barriga. Ninguém fez porque o eleitor não vê o que está debaixo da terra. Políticos brasileiros tem mania de construir obras grandes, que chamam atenção de longe. Dá votos. Mas eles constroem e não fazem manutenção. A verdade deve ser dita, doa ao partido que doer. Houve a aprovação do Governo Federal. Houve dinheiro. Mas não houve obra. É irresponsabilidade imperdoável. Governadores (governadores no plural) deixaram de fazer a manutenção de um equipamento que teria evitado a tragédia em Porto Alegre e cidades metropolitanas e deixaram de construir os 40 km que faltavam. Não diria o mesmo para as periferias e áreas rurais, onde os gaúchos destruíram as matas ciliares (que é crime) e construíram casas quase dentro dos rios, e que foram varridas, não sobrou nem alicerce. A força incontrolável das águas arrastou até as sobras de matas em solos mexidos pelos homens. O povo do Rio Grande do Sul deve dar mais valor às palavras do cacique que recebeu Herr Blumenau quando ele chegou para dar início ao Sul do Brasil, onde existiam apenas matas, ocas e indígenas. Ele disse "essas terras não são nossas". E Herr perguntou "são de quem?" Ele respondeu "são das águas".
Há outro detalhe escabroso. Vivemos, hoje, uma coisa doentia, a polaridade na política. Vocês viram a cara feia do governador quando o presidente Lula assinou a liberação dos 5 bilhões para as obras de recuperação do Rio Grande do Sul? Ele foi o único que não aplaudiu, pois o governo é de esquerda. Fosse de que lado fosse, é obrigação do governo. Não é favor. Até Bolsonaro (que não quero vê-lo nem de longe) mereceria aplauso no exercício dessa obrigação, se ele estivesse no poder. Mas o governador fez cara de mau porque era Lula.
Pois é, se tivessem construído os 40 km de diques e casas de bombas para conter as enchentes dos rios Gravataí, Arroio Feijó e Guaíba, a tragédia teria sido evitada. Se tivessem feito a manutenção das partes dos diques e das bombas já existentes, tudo teria sido evitado. O projeto aprovado em 2012 estava na escala de 226 milhões, inclusive incluía desapropriações de casas nas beiras dos rios, reflorestamentos, reposição de mata ciliar, desassoreamentos (dragagens de rios e da lagoa) e previa a recuperação urbano ambiental da área e uma infinidade de ações. Não fizeram. E HOJE ATÉ MESMO 226 TRILHÕES SÃO POUCOS PARA DEVOLVER RECONSTRUIR O RIO GRANDE DO SUL. ESSES GOVERNADORES DEVERIAM SER PRESOS.
Listo abaixo o período de gestão de cada governador e presidentes da república com responsabilidades pertinentes a se situarem do problema, o planejamento e a execução das obras, mas que nada fizeram. Lembrando que há 20 anos a conversa de boca em boca era sobre precauções, mas os governadores acharam melhor se preocupar com coisas visíveis. Quem precisa constatar e planejar, em primeiro lugar, são os governadores e prefeitos. GOVERNADORES: Yeda Crusius, (PSDB), governou 4 anos, de janeiro de 2007 a janeiro de 2011; Tarso Genro (PT) governou 4 anos, entre janeiro de 2015 a janeiro de 2019; Ivo Sartori (PMDB), governou 4 anos, janeiro de 2015 a janeiro de 2019; Eduardo Leite (PSDB, depois PL), governou 4 anos, entre janeiro de 2019 a março de 2022; Ranolfo Vieira Júnior (PSDB), governou entre março de 2022 a janeiro de 2023. Eduardo Leite (PSDB), assumiu em janeiro 2023 e encontra-se na gestão. PRESIDENTES DA REPÚBLICA: Dilma Rousseff (PT), janeiro de 2011 a agosto de 2016 (governou 5 anos e 243 dias); Michel Temer (PMDB), governou entre 2016 a 2019, somando 2 anos e 123 dias; Bolsonaro (PL) governou no período de janeiro de 2019 a janeiro de 2023, durante 4 anos). Lula assumiu em janeiro de 2023 e conta com 1 ano e 5 meses de governo). Não listei os prefeitos das cidades destroçadas para não me alongar, mas eles têm culpa no cartório e deveriam ser descartados por todo eleitor.
Nós, brasileiros, temos o dever de fiscalizar, cobrar, protestar, denunciar, agradecer e parabenizar em seus devidos contextos. Mas, embora a verdade deve ser dita, ESSE MOMENTO É DE AJUDAR O RIO GRANDE DO SUL. EMPATIA É IMPORTANTE SEMPRE. Natal, 22.5.2024.
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