Não raro ver-se nessas escolas o bárbaro uso de estender o menino, que não havia bem cumprido os seus deveres escolares, em um banco, e aplicarem-lhe o vergonhoso castigo do açoite!!
Se as meninas, que em muitos desses repugnantes estabelecimentos eram admitidas em comum com o outro sexo, ficavam isentas dessa sorte de barbaria, não deixavam entretanto de presenciá-la por vezes, e de receber uma impressão desfavorável, que muito concorria para enervar-lhes a delicadeza e a modéstia, que de outra sorte dirigidas tanto realce dão às qualidades naturais da mulher.
A palmatória era o castigo menos afrontoso reservado às meninas por mulheres, em grande parte, grosseiras, que faziam uso de palavras indecorosas, lançando-as ao rosto das discípulas, onde ousavam imprimir alguma vez a mão, sem nenhum respeito para com a decência, nem o menor acatamento ao importante magistério, que sem compreender exerciam.
O sistema inquisitorial das torturas infligidas nas vítimas do Santo Ofício, que sob outra forma e com diverso fim transpusera o Atlântico, presidia ao ensino da mocidade brasileira, ministrado por severos jesuítas ou por mestres charlatães, cujo mérito consistia em saber soletrar alguns clássicos portugueses, e assassinar pacificamente Salústio, Tito Ivo, Virgílio e Horácio!
Esta inaudita e brutal severidade era sancionada por grande número de pais, cuja educação tinha sido assim feita, e cujo rigor doméstico não era menos cruel.
Com algumas modificações continuou infelizmente este regimem muito tempo depois. Pais e filhos estavam ainda por educar, como se vê desta observação do Conde dos Arcos a um mestre da escola da Bahia, que se lamentava do pouco resultado de seus grandes esforços para bem dirigir a educação de seus discípulos: “será preciso primeiramente educar os pais, para que se possa conseguir a boa educação dos filhos.”
Não deixaremos entretanto passar esta observação, posto que justa, sem que acrescentemos outra: e vem a ser, que não era um filho do país, a quem o Brasil deve todos os seus erros e prejuízos, que cabia censurar uma falta dele procedente, e tão geralmente nele cometida.
Demais o célebre introdutor das primeiras comissões militares no Brasil, digno sectário da doutrina de Hobbes, que pretende – ser o despotismo ordenado pela religião, não devia censurar a falta de uma educação esclarecida sem a qual facilmente os homens se submetem ao absolutismo de seus governantes.”
.....................................
Breves comentários meus:
Um recorte do livro “Opúsculo Humanitário”, de Nísia Floresta, publicado em 1853 chama a nossa atenção. Refiro-me ao CAPÍTULO XXV, onde ela trata sobre a palmatória, o tipo de professores e pais da época. Na verdade, esse capítulo não pede comentários, pois fala por si. Mas um detalhe me impressiona e me convida a levar o leitor ao pensar.
O conjunto da obra dessa intelectual é tão vasto que permite extrair detalhes dos detalhes. Essa crônica me chama a atenção sobre o quanto, de fato, Nísia Floresta foi visionária em algumas propostas, e essa visão a frente do tempo permanece atual em alguns pontos. Vejam só, a palmatória, tão bem explicada por ela nesse capítulo tão breve e robusto, é comparada às torturas do Santo Ofício. E o era!
A palmatória teve o seu uso extinto a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, data em que oficialmente também foi abolida a prática de reguadas. A propósito da “reguada”, quando eu cursava a “terceira série primária”, hoje “2º ano”, uma professora quebrou a régua grande na minha cabeça porque errei uma conta de divisão. Foi uma experiência traumatizante, pois, se eu estava aprendendo, por que ser obrigado a saber no próprio processo de estar aprendendo?
Esses métodos não diferem de tortura. E o pior é que podem traumatizar uma criança. Lembro-me que eu não era o único a levar reguadas. Quem errava, levava reguada, portanto a sala de aula era um lugar de medo. Todos éramos cúmplices uns dos outros porque estávamos em situação de igualdade no aspecto de tortura. O medo reinava. Enfim, a mesma Constituição de 1988, promulgada por Ulisses Guimarães, proibiu também que os professores obrigassem os alunos a ajoelhar em caroço de milho (ou em tampas de garrafa), proibia o famoso nariz de cera etc. Ou seja, o Santo Ofício tornou-se proibido (está lá, bem escrito!).
Pois bem, se em 1853, Nísia Floresta ataca a palmatória com asco e mesmo assim ela só a extinguiram em 1988, significa que passaram-se 135 anos de terror feito às crianças. E o tempo anterior a 1853? Foi muito tempo de tortura.
Fico imaginando a contradição da pedagogia antiga, se assim podemos chamá-la. Vejam que irônico e absurdo. O professor tortura justamente as mãozinhas miúdas, em formação, cuja coordenação motora está em desenvolvimento e precisa de cuidados para se desenvolver. Essas mãozinhas, naquele momento, necessitam de treino, jamais de pauladas. Como ficava a desenvoltura de uma mão escrevendo e ao mesmo tempo torturada por palmatória? É horroroso demais!
Sabemos que quando algo é extinto, a extinção não é um passe de mágica, ou seja, não acaba num piscar de olhos. Quem garante que nas regiões mais precárias do Brasil a palmatória não continuou vigorando clandestinamente ou por ignorância dos pais desconhecedores do que rezava a Carta Magna?
Esse capítulo dá um livro. Nísia Floresta ao falar sobre as professoras que usavam a palmatória, refere-se a elas como “mulheres em grande parte grosseiras, que faziam uso de palavras indecorosas, lançando-as ao rosto das discípulas, onde ousavam imprimir alguma vez a mão, sem nenhum respeito para com a decência, nem o menor acatamento ao importante magistério, que sem compreender exerciam.” Ou seja, eram professoras sem qualificação alguma, num tempo rudimentar, onde não tinham a quem recorrer, pois nem mesmo as professoras podiam contar com uma educação civilizada. Mas, por sorte, pelo menos Nísia Floresta estava ali, jogando os holofotes sobre o horror e pedindo socorro. Observem quão monstruoso era o sistema. E quão tarde o grito nisiano foi ouvido...
Ela também diz que a mocidade brasileira recebia ensino de “severos jesuítas ou mestres charlatães” que, em outras palavras, assassinavam a gramática e Língua Portuguesa. Critica a educação brutal como os pais educavam os filhos e cuja estupidez se estendia às escolas, onde eles endossavam a crueldade dos professores.
Essa pequena crônica de Nísia Floresta permanece atual, pois dentre outras reflexões – ditas com muita propriedade – plenas de citações (revelando o seu alto grau de ilustração quando, por exemplo, cita Hobbes, dentre outros), ao se referir a falta de educação dos pais, ela acaba mencionando a frase dita pelo Conde dos Arcos a um mestre escola da Bahia “será preciso primeiramente educar os pais, para que se possa conseguir a boa educação dos filhos.”
Essa frase, ou melhor, citação é tão atual que assusta. E com ela encerro esta reflexão, deixando o leitor livre para pensar.