Nos últimos tempos, algumas políticas federais abriram novos caminhos para esses povos. No entanto, aquilo que deveria ser benéfico por vezes se torna nocivo. Embora muitos indígenas tenham conquistado dignidade em suas comunidades ou nos grandes centros — atuando nas mais diversas profissões — outros ainda sofrem as piores mazelas. O que me revolta profundamente é ver pessoas sem qualquer vínculo social ou histórico com etnias indígenas, que sequer possuem características físicas que sustentem tal identidade, usarem grafismos no rosto, cortarem os cabelos em franja, colocarem um cocar imponente e, com cara de pau, roubarem nomes indígenas, associando-os a etnias específicas. Assim, arrancam dos verdadeiros indígenas o que lhes pertence: espaço, memória e identidade.
Escrevo estas linhas tomado por tristeza e perplexidade. Nos últimos anos, encontrei em reportagens e estudos relatos consistentes de fraudes envolvendo identidade indígena — muitas delas ligadas a documentação, registros oficiais e até à conivência de agentes públicos. Esquemas de criação de “indígenas falsos” para obtenção de benefícios previdenciários ou regularização documental foram investigados pela polícia e pela imprensa. Em um desses casos, centenas de identidades falsas teriam sido criadas para fins de aposentadoria, gerando prejuízo aos cofres públicos e evidente lesão ao direito dos indígenas reais.
Também há registros de lideranças que, segundo investigações e denúncias, teriam apresentado documentos suspeitos ou obtido registros de modo irregular. Não se trata de condenar de antemão, mas esses episódios revelam a existência de brechas burocráticas que permitem a manipulação de identidades. A Funai e outras instituições têm reconhecido a necessidade de reforçar critérios de reconhecimento, justamente diante do risco concreto de mau uso da autodeclaração. Basta imaginar: a qualquer hora alguém pode se declarar indígena apenas mostrando uma foto antiga, de franja, com um papagaio no dedo e um gato no colo (tenho uma fotografia assim quando tinha 12 anos). Parece fácil ser indígena quando surge o cifrão na história.
No meio desses absurdos, surgem situações ainda mais perversas: fraudes voltadas a vencer concursos, obter prêmios e garantir visibilidade em nome de uma identidade usurpada. Minha irmã, que vive no Mato Grosso do Sul e mantém contato freuqnte com uma comunidade Guarani-Kaiowá, relata injustiças enfrentadas por eles. Daí a minha revolta ao ver falsos indígenas roubando o que pertence aos verdadeiros. É roubo de identidade, um estelionato étnico.
Diante disso, vários editais e prêmios destinados a povos indígenas passaram a exigir comprovação de vínculo comunitário, declarações de lideranças ou produção conjunta com coletivos indígenas. Essas exigências não são barreiras arbitrárias, mas respostas preventivas: buscam proteger espaços legítimos da apropriação e da fraude.
A minha perplexidade cresce ao pensar nos efeitos simbólicos e práticos dessas apropriações: aquele que pinta o rosto, veste cocar e assume nomes e narrativas que não lhe pertencem não apenas furta recursos ou prêmios - ele dilui a credibilidade de algo que, para povos inteiros, é sobrevivência cultural e política. Quando o Estado ou as instituições passam a desconfiar, cria-se uma burocracia que acaba penalizando justamente quem sempre foi invisibilizado: indígenas que, por falta de documentação robusta ou por deslocamentos históricos, não conseguem provar de imediato o vínculo com sua comunidade. Eis a contradição: a proteção contra a fraude pode se tornar instrumento de exclusão. Pobres indígenas! Já não lhes bastaram quinhentos anos de espoliação?
Não é exagero chamar esse comportamento de “estelionato étnico”. Há fraude documental, representação indevida, usurpação de espaços de luta - e tudo isso traz consequências reais. Se um prêmio destinado a valorizar uma tradição é tomado por quem não a vive, o resultado é duplo: perde-se autenticidade e os legítimos herdeiros perdem a vez. Ainda pior: a identidade milenar transforma-se em fantasia para consumo midiático, vaidade pessoal e vantagens materiais. Isso é violência. É roubo simbólico somado ao roubo material. Tenho nojo disso.
O que proponho, com a angústia de quem cresceu entre povos indígenas, é que a visibilidade conquistada seja acompanhada de responsabilidade: editais com critérios transparentes e participativos; comissões formadas por representantes indígenas; validação comunitária; fotografias de antepassados, documentos; investigação séria e célere de denúncias; e, sobretudo, políticas públicas que não transformem pertencimento em mercadoria. Também defendo sanções rigorosas para fraudes, mas sem criar obstáculos adicionais para indígenas deslocados ou sem documentação formal.
Sei que este texto não esgota o tema. Mas é evidente que há riscos, fragilidades documentais e episódios de fraude em diversos campos que justificam cautela e medidas protetivas. Minha perplexidade, portanto, permanece: celebrar a presença indígena na cultura é urgente e necessária, mas celebrar não pode significar abrir espaço para que impostores se beneficiem do que pertence, por direito e história, às comunidades originárias.
Saudações! E viva os indígenas reais! Viva, sobretudo, meus irmãos Guarani-Kaiowá do meu amado Mato Grosso do Sul! jun.2024
OBS. Quando achar a fotografia do meu-eu indígena, postarei aqui
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