Chamar
Nísia Floresta de pensadora, e não de filósofa, é o mesmo que
elogiar um general por “ter jeito para comandar”, o que acaba
sendo um modo cortês de negar-lhe o posto que lhe cabe. É a
delicadeza sutil do rebaixamento. Há uma sensibilidade quase
burocrática nessa omissão: quando a mulher pensa, ela “reflete”;
quando o homem pensa, ele “filosofa”. Assim, a diferença não
está na produção intelectual, mas no rótulo com que se aplainam
hierarquias. Ou, talvez, por ser brasileira e ter estampado isso até
no seu pseudônimo, Nísia não aparece como filósofa. Ora, como
seria possível, para muitos, que uma filósofa tenha a coragem de
ser… brasileira?
O
eurocentrismo colonialista que até hoje permeia o campo das ciências
e centra o debate epistemológico define como pecado o fato de se
pertencer ao Sul Global. Como se ser brasileira, por exemplo, fosse,
antes de tudo, um pecado. É curioso. Portanto, seria preciso chamar
Nísia Floresta somente de “pensadora” para manter o conforto da
aparência liberal sem precisar mover o mundo real. É admitir a
inteligência feminina, claro, mas desde que ela não ouse ocupar a
cadeira dos filósofos. É assim que funciona o liberalismo,
mas, ante
omnia,
é assim que funciona a pressão do pensamento colonial e a farsa da
identidade.
Sempre
houve um silêncio aquietado nos ares de Nísia Floresta. Essa
quietude ao ocaso e ao acaso não é feita de ausências,
mas de presenças acumuladas. É um silêncio encoberto pela poeira
do tempo, adocicado pelo cheiro dos velhos engenhos que ainda sobejam
na localidade, uns em ruínas, outros, semi-intactos. Andar por essa
terra que – pasmem – ainda guarda ruínas de uma casa de pedra de
1570, é como caminhar dentro de livro antigo de história,
cujas páginas amarelecidas pelo tempo, permitem uma espécie de
descoberta arqueológica em que nos deparamos com histórias
sussurradas para quem se dispõe a escutá-las e auscutá-las.
Essa
bela tela, pintada por homens e mulheres de remoto passado, concentra
o microcosmo de um Brasil oitocentista, patriarcal e escravocrata,
onde nasceu uma das inteligências mais brilhantes do nosso país e,
paradoxalmente, renegada por alguns: Dionísia Gonçalves Pinto
Lisboa, a nossa Nísia Floresta Brasileira Augusta, filha do
português Dionísio Gonçalves Pinto Lisboa e de Dona Antônia Clara
Freire do Revoredo.
Este
ensaio – ou esta “tese” –, mais do que um mero exercício de
exegese histórica ou de crítica literária em que ouso me
enveredar, se propõe a realizar um estudo análogo àquela que
eu mesmo me dedico em minhas pesquisas sobre esta região e o seu
povo: como está escrito no cabeçalho do meu blog, um trabalho
de cunho "etnográfico, etnológico e filológico", uma
proposta de resgate e preservação da memória, atividade que faço
há mais de 30 anos.
Com
o mesmo desvelo em que me debruço sobre as lendas, os "causos"
e a linguagem regional – popular – do povo
norte-rio-grandense, dedico-me, doravante, a espanar a grossa poeira
que encobriu e sufocou muito dessa pintura, escondendo um detalhe
inédito e que agora, qual um arqueólogo adentrando câmara
piramidal esquecida há 4.000 anos, revelo e dou o nome de “A
Filósofa Nísia Floresta Brasileira Augusta”. Isso mesmo! Todos os
bons nomes foram dados a ela: indianista, escritora, feminista,
republicana, educadora, abolicionista e outros, mas omitiram a
filósofa pioneira do nosso país.
Não
se trata de buscar apenas reiterar o que já foi ofertado no
panteão dos estudos acadêmicos: que Nísia foi uma educadora
pioneira, uma protofeminista corajosa, uma escritora de raro talento,
mas, com certeza, uma filósofa. Para quem a leu e estudou
profundamente a sua obra, supostamente visualizou essa condição na
nossa Nísia, mas nunca leu algum estudo específico que reunisse
informações substanciais a ponto de passarmos a vê-la como
filósofa.
Este
estudo se dispõe a um ofício mais audaz e, talvez, mais necessário:
defender a tese, tantas vezes negligenciada, de que Nísia Floresta
foi, em sua época e a seu modo, uma filósofa. Uma pensadora
que, mais do que reagir ao seu mundo, o interrogou em seus
fundamentos, investigou a natureza da justiça, a finalidade da
educação e a essência da condição humana.
Nunca
algum pesquisador, com a devida vênia aos estudiosos que me
precederam – até porque seus objetivos eram outros e tão nobres
quanto – defendeu com o rigor necessário que Nísia Floresta foi
uma filósofas em seu tempo. Ela nunca foi citada como pessoa que
filosofou com a mesma propriedade dos mais respeitáveis filósofos.
Intitularam-na, embora que respeitosamente e merecidamente no
gabinete das “mulheres à frente de seu tempo”,
uma espécie de curiosidade histórica, uma anomalia a ser admirada,
mas não uma voz a ser integrada ao cânone do pensamento brasileiro.
Desse
modo incorro à tarefa de defender que Nísia Floresta era,
sim, uma filósofa, mas para reconhecê-la como tal é necessário
desnudar os olhos dos preconceitos epistemológicos que exigem da
filosofia uma forma inflexível, um sistema fechado, e aprender a ler
o pensamento que pulsa nas entrelinhas de seus conselhos, de seus
manifestos e de sua prosa profundamente enraizada na alma potiguar. É
um convite para nos aprofundarmos não apenas em seus escritos, mas
no próprio ato de pensar que eles revelam, um ato de coragem, de
resistência e de profunda reflexão.
Para
mergulharmos na análise sobre a dimensão filosófica de Nísia
Floresta, é fundamental que reconstruamos o cenário onde as suas
ideias foram estampadas. Ela nasceu em 1810, portanto, o século XIX
era uma construção social de alicerces rígidos, edificada sobre o
terreno da monocultura, do latifúndio e da mão de obra escravizada.
Na ponta dessa estrutura reinava o patriarca, o dono dos latifúndios,
dos engenhos, e sua autoridade não podia ser questionada.
A
própria esposa legítima desse patriarca tinha o seu universo
desenhado por esse sistema. Elas funcionavam no automático, sem
questionamentos, entendendo, desde criança, que nasceram para casar,
ter muitos filhos e cuidar muito bem dos mesmos - inclusive na
devoção religiosa - além de governar a casa e ser prendada. Como
bem registrou o adagiário popular “A mulher só saia de casa para
casar, batizar e enterrar.” A expressão que reflete o papel
restrito da mulher no ambiente doméstico e a sua exclusão da vida
pública até pouco tempo.
O
espaço público, o ambiente das ideias, da política e das ciências
era exclusividade masculina. Esses mundos lhe eram fechados por um
consenso social forte e quase inquestionável. Nesse cenário, o
simples ato de uma mulher se sentar num birô para escrever sobre
seus direitos, justiça, política e outros temas já se constitui
num gesto filosófico radical.
Em
sua essência, a filosofia brota do ato de estranhar comportamentos
que nos circundam, do ato de se espantar, de interrogar, de se negar
a concordar como o mundo onde estamos inseridos. Portanto, nos
perguntamos: E o que fez Nísia senão interrogar as verdades mais
pétreas de sua época? Sua própria atitude de inaugurar-se como
escritora, em 1832, com apenas 22 anos de idade, com a obra Direitos
das Mulheres e Injustiça dos Homens,
não apenas distribuiu ao povo panfletos permeados de reivindicações,
mas praticou a filosofia política em sua plenitude. Ela coloca na
parede a ordem social que se pauta na exclusão das mulheres. Nísia
questionou a própria natureza do conceito de “direito”,
perguntando: a quem ele se aplica? Qual a justificativa para que a
biologia seja usada como destino e justificativa para oprimir?
O
que é a própria gênese deste livro senão um ato filosófico?
Quando Nísia coloca Mary Wolltonecraft Godwin diante dos olhos do
leitor brasileiro - deixando muitos perplexos e outros super felizes
(pois havia outras pessoas que queriam ver mudanças) -, ela nutria a
sua obra com a autoridade das ideias em voga na Inglaterra, e tão
presentes no Brasil, ao mesmo tempo em que homenageava uma mulher
extremamente ousada. O gesto nisiano, pois, é uma proclamação
filosófica. Nísia está dizendo que o pensamento humano é como a
mais límpida das águas: não obedece cercas. Quando as águas vêm,
trazidas pelos invernos fortes, extrapolam qualquer limite e podem
ser ressignificadas, parodiadas, relidas, a bem de estar alagando
realidades diferentes e prontas para hidratar qualquer solo,
principalmente num país submergido na aridez machista que
inferiorizava a mulher.
Enquanto
no Brasil jogavam todos os holofotes sobre o Positismo de Augusto
Comte, uma doutrina que em grande parte justificava a ordem vigente,
Nísia Floresta, nos confins do Brasil, sem reservas ousava fazer o
socrático questionamento: “Isso é justo?”. Quais
mulheres daquele tempo, consumidas por uma vida reclusa, teriam
capacidade e ousadia para gritar: “Alto lá! Queremos os nossos
direitos”. E o que é isso senão uma profunda reflexão
filosófica?
O
clamor nisiano, longe de ser meramente um grito de “chega”, ou
uma lamúria, era uma bandeira hasteada em altíssimo mastro. Seu
flamejo era um instrumento que dissecava a realidade, farfalhando uma
nova forma de existir e estar pertencida ao mundo. A sua filosofia
não nasceu nos ambientes suntuosos da Europa, mas nas terras áridas,
hostis, estiadas, porém resistentes, chamada de Nordeste brasileiro.
Não foi à toa que Euclides da cunha, muito tempo depois diria em
sua clássica obra “O sertanejo, antes de tudo é um forte”. Por
todas essas razões, a filosofia nisiana carregou a marca da
urgência, da necessidade e da luta. É uma filosofia encarnada, que
não se dissocia da vida vivida.
Se
o formato de sua filosofia pautou-se na insurgência, a substância
do seu pensamento ergueu-se sobre pilares que se comunicavam entre
si, revelando coerência e profundidades notáveis: uma
filosofia da educação, uma ética da virtude e uma filosofia
política que se amplia da justiça de gênero para a justiça racial
e social.
Quando
Nísia joga luz sobre esses pilares, para serem vistos com clareza
pela sociedade, ela não os dissocia. Pelo contrário, deixa
explícito que eles sustentam um grande edifício, ou seja, são
partes inseparáveis e fundamentais de um grande projeto intelectual.
Por essa razão a defesa de que Nísia Floresta é uma filósofa deve
ser vista com os rigores necessários. E é essa tese que me
comprometo a defender a partir deste texto.
Quando
analisamos a obra Opúsculo
Humanitário (1853),
constatamos que o seu conteúdo vai muito além da discussão
meramente pedagógica sobre metodologias de ensino. É muito claro
que Nísia propõe uma autêntica filosofia da educação. Essa obra
é extraordinária é uma meditação profunda. Ela defendia que o
ato de educar transcendia instruir e despejar um calhamaço de
conhecimentos mesmo que úteis. O processo de educar seres humanos –
homem ou mulher – está associado à formação do caráter, o
cultivo da alma, guiando-os à sua realização plena como ser moral.
Nessa bela obra ela destrinçou um cenário histórico da situação
das mulheres desde a mais remota antiguidade, como premissas para
alegar que a evolução de um país está associada ao lugar que as
mulheres ocupam nesse país.
Para
ela, a educação entre homens e mulheres deveria ser igualitária, e
nessa defesa ela não postulava uma reparação social, Nísia
argumentava - filosoficamente - que a capacidade racional e a virtude
não perpassavam por gênero, e via como uma verdadeira mutilação
da humanidade o ato de normalizarem a reclusão da mulher, privando o
Brasil de almas capazes de pensar a civilidade e a justiça.
Na
verdade, essa proposta está intrinsecamente ligada a uma vigorosa
ética da virtude que passeia toda a sua obra, em especial no
livro Conselhos
à minha filha (1842),
escrito para presentear o aniversário da filha Lívia Augusta de
Faria Rocha em seus 12 anos. Essa obra não é meramente um manual de
conduta ou mais um produto literário moralizante, típico da época.
A obra revela um manifesto pela autonomia intelectual e moral.
Nísia
Floresta não está delegando regras de comportamento social para
meninas, mas refletindo sobre o que é, verdadeiramente, uma vida
agradável, feliz e interessante (eudaimonia). Ela entendia a
modéstia, a prudência, a fortaleza e a caridade como partes
indissociáveis da alma, bens que fortaleciam sobremaneira a mulher,
permitindo-lhe lidar com autonomia diante da sociedade machista e
patriarcal. Ao invés de parecer um ato de submissão, talvez
pretendesse um “disfarce” ou uma “armadura” para, aos poucos,
conquistar espaços melhores. Ela deixa claro para Lívia que o
estudo, longe de ser um passatempo, deve ser um ato tão comum como
se alimentar e que dessa forma permitiria o caminho para a
independência e a integridade.
Enfim,
a sua filosofia política não se encerra na questão feminina. Nísia
amplia largamente suas ideias para discutir diversas injustiças
comuns àquele tempo, por exemplo: a degradação dos povos indígenas
e a escravidão. Esses temas podem ser constatados em outras obras,
inclusive no próprio Opúsculo
Humanitário. Nele
encontramos uma Nísia Floresta que, a considerar o contexto da época
e seu amadurecimento gradual, ela tornou-se a primeira mulher
abolicionista do Brasil. Suas críticas são muito duras. Embora
alguns vejam o ponto a seguir de maneira muito equivocada, Nísia
classificava como um “péssimo exemplo” o costume das senhoras
brancas transferirem o dever sagrado da maternidade às escravas que
eram amas de leite. Ela alegava que o costume corrompia a moral das
crianças desde bebês. Nesse caso, ela não está classificado as
mulheres escravizadas como imorais (como já li num conceituado
jornal natalense), mas contra as mulheres que estavam transferindo o
nobre dever maternal para es escravizadas, dever que ela tanto
primava. Para Nísia, essa transferência corrompia as crianças.
O
seu abolicionismo é sensivelmente percebido quando analisamos obras
como “A Cabana do Pai Tomás”, de Harriet Beecher (1852), usado
por ela para espelhar os horrores da escravidão brasileira. Ainda
n’A
lágrima de um Caeté,
poema de 702 versos, escrito em 1849, ela é pioneira em jogar
holofotes sobre os povos indígenas, e em mostrar indígenas reais,
diferente daqueles que desfilavam nos diários de viagens europeus,
totalmente alegorizados. Na literatura encontrávamos um indígena
que era praticamente um herói ou uma pessoa civilizada nos moldes
dos brancos. E Nísia desnuda um indígena que assume sua derrota
causada pelo homem branco. O poema conta a saga de um Caeté,
testemunha viva da truculência da colonização, e trata também da
Revolução Praieira em que ela, ousadamente, elogia seus heróis, a
exemplo de Nunes Machado. A obra é uma profunda meditação
filosófica sobre a identidade nacional, a memória e a violência
fundadora do Brasil. Totalmente contrária à visão idealizada do
indianismo romântico. O indígena Caeté de Nísia Floresta é um
protagonista que mesmo se sentindo derrotado pela estupidez do
invasor, indaga o próprio conceito de “herói”, expondo o seu
drama. Nesses moldes, sua filosofia é revelada com clareza: uma
busca incansável por uma nação pautada de justiça, cujo projeto
de mudança só seria realidade se homens e mulheres, pretos ou
indígenas, fossem virtuosa e civilizadamente educados.

Observa-se
que há uma relutância da academia para reconhecer Nísia Floresta
como filósofa. Certamente isso ocorre devido ao estilo de sua
escrita. É quase um padrão entender a filosofia como um tratado
sistemático, regido por uma narrativa rigorosa e técnica em que o
leitor muitas vezes precisará ser evoluído para “decifrá-la”.
Algo parecido com Hegel ou Kant. Certamente por não se encontrar nos
textos nisianos um sistema dedutivo, uma construção de conceitos
abstratos, deduz-se –apressadamente – pela inexistência do
pensamento filosófico. Mas isso é um grande erro.
O
filosofar em Nísia Floresta se deu através dos gêneros literários
em voga àquela época: o manifesto, o poema, a crônica, o tratado,
o conselho moral. O seu estilo de escrita não era o do sistema, mas
da reflexão partilhada, da persuasão, da exortação. O que ela
escrevia não estava restrito a um grupo restrito de iniciados, mas a
qualquer pessoa, desde mães, jovens, governantes, intelectuais.
Nesse aspecto reconhecemos a filosofia nisiana como profundamente
socrática. Ela propunha o diálogo, a transformação do
interlocutor. O pensamento dela não se exibia como um imponente
palácio marcado por adornos em ouro, bronze e mármore, mas tal qual
uma casa de taipa tão comum ao seu torrão natal – Papary –,
funcional, segura, que se integra ao regionalismo local, portanto ao
seu propósito.
Nesse
sentido, o seu proceder é parecido, em finalidade, ao meu próprio
trabalho de resgate linguístico que intitulei "A Linguagem no
Rio Grande do Norte". Não o fiz por mero diletantismo, mas por
acreditar, como Nísia acreditava, que "não existe palavra
errada, jeito de escrever ou falar errado quando utilizamos a
linguagem do coração. Nela está a emoção e, portanto, a raiz de
um povo". Ela se serviu da linguagem da moral, da poesia, da
emoção para expressar verdades filosóficas. Com a mesma
determinação que defendo a legitimidade de palavras como
“caningado”, “peia”, “empolado” e outras – contra a
legitimidade da homogeneização da mídia –, numa época que a
imprensa atendia aos interesses do sistema, Nísia defendeu a
legitimidade do pensamento feminino e do grito indígena se
utilizando das ferramentas literárias que dominava. Ela percorreu o
universo da linguagem para obter as ferramentas que lhe seriam úteis.
Leitora
voraz, Nísia teve condições suficientes para usar uma linguagem
austera, pautada de técnicas, comum aos filósofos de sua época,
mas tinha consciência de que, sem desmerecer até mesmo os
intelectuais brasileiros de seu tempo, escrevia para todos, inclusive
homens e mulheres alfabetizados rudimentarmente. Convém lembrar que
o analfabetismo no Brasil daquele tempo era em número assustador. –
principalmente as mulheres – seu maior interesse. Portanto
precisava atingir o seu público.
Obviamente
que é necessário uma hermenêutica distinta para mergulhar na obra
de Nísia. Precisamos reconhecer que a linguagem limpa e acessível
usada por ela não significava superficialidade, mas um método
filosófico. Ela sabia que para ser compreendida em seu intento de
mudar o sistema, deveria tocar os corações, portanto se servia da
prosa elegante e combativa, instrumentos perfeitos para divagar suas
ideias. Nísia deixa evidente que o ato de filosofar não se
restringe a um padrão. Inclusive é possível encontrar mais
filosofia em sua obra Conselhos
à minha filha do
que nos inúmeros tomos de metafísica inúteis. A obra de Nísia
Floresta – como um todo – é a comprovação de que o pensamento
pode florescer na literatura, na crítica social, na polêmica, no
apelo direto à consciência do leitor.
Isso
exposto, seria ingênuo pensarmos que Nísia Floresta foi uma
pensadora isolada, uma árvore exótica que despontou por acaso no
isolado Sítio Floresta, em Papary, Rio Grande do Norte, de onde ela
saiu aos treze anos de idade e nunca mais voltou. Ela deixaria o seu
berço que nada tinha a oferecer e empreenderia uma trajetória
marcada por períodos distintos no Pernambuco, no Rio Grande do Sul,
no Rio de Janeiro e em vários países da Europa, onde passou a maior
parte da vida.
Essa
experiência revela uma intelectual cosmopolita inteirada de todos os
debates de seu tempo, seja no Brasil, seja na Europa. Diferente de
ter sido meramente uma leitora de ideias estrangeiras, ela dialogou
com diversos intelectuais europeus, sendo uma presença viva nos
círculos mais efervescentes daquela época. Como sabemos, é muito
conhecido e comentado a sua amizade com o ilustre filósofo francês
Augusto Comte, o pai do Positivismo. Ela o viu pela primeira vez
quando frequentou suas conferências em Paris, mas a amizade em si
floresceu no ano seguinte, inclusive ambos se faziam presentes em
reuniões de intelectuais na casa de ambos. O período de 1856 a 1857
foi marcado por cartas trocadas entre eles, cujas originais estão
dispostas na Casa Auguste Comte em Paris, tendo sido traduzidas e
publicadas pela professora Constância Lima Duarte (UFRN/UFMG).
Julgando
pela primeira impressão, é um verdadeiro paradoxo essa “sintonia”
entre Nísia e Comte. O que aproximaria tanto a autora de Direito das
Mulheres e Injustiça dos Homens, a intelectual que leu a polêmica
Mary Wollstonecraft, com um filósofo cujas ideias, em inúmeros
pontos, reforçava o papel feminino como “anjo do lar”? Nos
parece muito contraditório, mas não é. Essa relação traduz a
maturidade do pensamento de Nísia. Sabemos que ela não era
dogmática. Parece que ela viu no Positivismo de Comte sutilezas que
ecoavam com o seu próprio olhar, a exemplo da valorização da
mulher como educadora moral da família e da sociedade e a busca por
uma organização social baseada na ciência e na ordem. Inclusive
Comte teceu elogios ao Opúsculo Humanitário.
Na
verdade, Nísia se debruçou sobre o sistema comtiano com
criticidade. Agiu como aluna interessada, discutindo com o mestre,
dialogando fluentemente na língua dele, descortinando o seu Brasil,
inclusive impressionando-o. E no caudal desses diálogos e estudos
ela aproveitou tudo o que poderia lhe ajudar a enriquecer o seu
projeto de reforma social. Mas, diferente do que alguns dizem, ela
não foi positivista nem adotou essa doutrina como parte do seu
projeto, tampouco trouxe o Positivismo para o Brasil, conforme já li
e ouvi dizer. Ela foi uma pensadora que se engajou com consciência
critica diante de todas as correntes filosóficas mais fortes naquele
tempo, mantendo a sua própria digital no que se refere à
originalidade de sua perspectiva.
Toda
a sua vida na Europa pautou-se em cuidadosas observações e
reflexões filosóficas, a exemplo de seus livros Itinerário
de uma viagem à Alemanha (1857), Três
anos na Itália, seguidos de uma viagem à Grécia (1864)
e Le
Brésil (1871).
Nessas obras – que são relatos de viagem – passíveis de serem
julgadas como um registro de coisas pitorescas – como o próprio
Machado de Assis o fez quando se deparou com um dos seus livros e o
julgou pela capa –, Nísia não perdeu tempo com o trivial. Ela
olhava os panoramas com análise rigorosa, seja sistema político,
educacional ou os costumes dos países que visitava, refletindo e
criticando sobre a realidade do Brasil. Como uma filósofa, ela
percorreu os grandes centros europeus para aguçar seu olhar sobre a
sua própria cultura e sobre a condição humana universal. E nessa
trajetória ela conheceu Alexandre Dumas (o pai), Alexandre
Herculano, Victor Hugo, George Sand, Castilho, Azeglio, Manzoni,
Duvernoy, inserindo-se de igual para igual no absoluto direito na
república mundial das letras e das ideias.
Ao
chegarmos até aqui, visualizamos Nísia Floresta como a pensadora
viajante que dialogava com o mundo e com o seu próprio eu. Viajante
que observava a realidade da Europa para entender o Brasil e o que
tornava a Europa adiantada em relação ao Brasil, e as razões desse
avanço, sobretudo questionava o que sabiam os intelectuais europeus,
o que os faziam alçar superior intelectualidade, já que eram
escassos os filósofos até mesmo na corte brasileira. Tivemos Matias
Aires Ramos da Silva de Eça (1705-1763), nosso primeiro filósofo,
autor de “Reflexões sobre a Vaidade dos Homens”, uma das
primeiras produções de filosofia moral escritas no Brasil, embora
ele tenha passado a maior parte de sua vida na Europa, e o Frei
Francisco de Mont’Alverne (1784-1858), outro pioneiro.
Até
aqui, reunimos informações substanciais para enquadrar a nossa
Nísia no rol dos filósofos brasileiros, mas é fundamental irmos a
fundo na análise para muito adiante do que ela discorreu e
esquadrinhar a própria mecânica de seu pensamento. Quando lançamos
o olhar atento sobre isso, constatamos que Nísia não tinha
meramente uma sucessão de ideias audaciosas, mas uma incrível
capacidade de síntese, uma destreza maestra de operar com elementos
contraditórios para produzir uma nova compreensão.
O
pensamento nisiano se maquinava de uma maneira que poderíamos
batizar – permitam-me a licença poética e até mesmo o risco de
anacronismo já que incorro involuntariamente a esses adornos (e o
leitor me entende) –, de dialética. Digo isso porque constatamos
em Nísia praticamente uma Aufhebung hegeliana,
um movimento intelectual que simultaneamente nega, preserva e eleva
as ideias com as quais dialoga. Mas olhemos inicialmente, a relação
que ela tinha com o pensamento universal europeu.
Ela
nunca foi uma receptora passiva, já observamos isso a partir do
momento em que ela se depara com as ideias de Mary Wollstonecraft, e
sobre essa intelectual inglesa, em 1995, a historiadora brasileira
Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke causou impacto no meio intelectual
ao afirmar que, ao contrário do que se acreditava, o livro de Nísia
Floresta era, na verdade, uma tradução literal e integral de um
tratado ainda mais radical e anterior ao de Wollstonecraft, pois data
de 1739, ou seja, Woman
Not Inferior to Man,
escrito por alguém que, para publicar as suas ideias, recorreu a um
pseudônimo, que foi Sophia, a Person of Quality, cuja identidade
segue ignorada. Pallares-Burke considerou como uma “travessura
literária” da tradutora potiguar, inclusive chegou a interpretar a
tal “travessura” como “uma brilhante astúcia utilizada para
romper com as regras do mundo intelectual, a fim de lutar por uma
causa nobre, para cuja defesa muitos meios se justificavam”. Esse
fato é digno de ser aprofundado e interpretado – colocando ambas
as obras – no centro do debate
Mas,
óbvio que Nísia leu Wolltonecraft, e ao encontrar-se com
Wolltonecraft – ou com “Sophia” – ela passa a engrenar um
movimento dialético complexo. Ela faz uma ampla leitura (ou
releitura). Ela refuta o
emprego direto e descontextualizado do feminismo inglês a uma
realidade – a brasileira –, com os seus próprios infortúnios,
como o patriacarlismo de raízes ibéricas, o catolicismo arraigado,
a escravidão, mas ao mesmo tempo mantém o
núcleo universal da argumentação por meio da defesa da
racionalidade feminina e do direito à educação. Tudo isso alça
Nísia Floresta a uma elevação,
uma síntese: um ideário feminista que também é universal em sua
gênese e profundamente particular, brasileiro, em sua aplicação e
em suas matizes. Inclusive, exatamente neste aspecto, a pesquisadora
Constância Lima Duarte visualizou como uma “superação
dialética”.
Exatamente
este movimento se expressa em sua forma de lidar com a tradição. Na
verdade é necessário pontuar, que Nísia não é uma iconoclasta
interessada em demolir totalmente os costumes. Pelo contrário –
para surpresa de alguns – toda a sua escrita é pautada por uma
moralidade cristã e valorização das virtudes tradicionais. Essa é
a tese dela. A antítese é a sua defesa radical da emancipação
intelectual e do envolvimento das mulheres na esfera pública,
valendo ressaltar que isso consistia numa ideia profundamente ousada
e transgressora para a época. Outra pensadora inexperiente talvez se
perdesse nessa “contradição”, ou escolheria um desses polos.
Nísia, prodigiosamente, opera a síntese. E longe de anular a
moralidade, ela a sublima,
alegando que a virtude e a moralidade reais só são alcançadas por
meio da razão e da liberdade, jamais por submissão e ignorância.
Nísia manteve intacto o vocabulário da tradição, mas o alçou a
um novo patamar de significado, concebendo o ideal da “matrona
esclarecida”, ou seja, uma figura que sintetiza a autonomia
intelectual moderna com a moralidade tradicional.
A
destreza de Nísia Floresta de pensar a "identidade na
não-identidade", ou, precisamente, a ideia de que a identidade
se constitui ou se manifesta através da diferença ou do não-ser,
usando essa expressão hegeliana, joga luz nas diversas formas de
opressão no Brasil. Ela não está interessada apenas na condição
da mulher (o particular). A amplitude do seu pensamento abarca as
mazelas contra os povos originários e os escravizados, atingindo uma
compreensão mais universal da dialética da dominação. Na obra de
Nísia Floresta constatamos que a transgressão e a religião, o
Brasil e o mundo, o particular e o universal não são polos
excludentes, mas expressões de um mesmo e complexo movimento de
pensamento buscando incessantemente uma síntese mais elevada e mais
justa. Essa força sintética e sua capacidade de ver unidade na
contradição, eleva Nísia Floresta da condição de mera polemista
à de uma autêntica e original filósofa, sem sombra de dúvida.
Finalizando,
como escrevi no início, há muitos anos sou instigado a escrever
essa “tese”, defendendo, sem receio algum, que Nísia Floresta é
uma filósofa. Ao longo de 33 anos estudando a obra e a história
dessa intelectual, anotando tópicos que para mim são essenciais,
construí essas páginas por um sentimento de urgência e de justiça
histórica. E esse meu sentimento de justiça é exatamente igual
quando registro uma história colhida de uma pessoa idosa, ou uma
expressão popular com risco de desaparecer se não for
documentada.
E
quando faço uma viagem imaginária à silenciosa Papary de remotos
tempos – que foi presenteada com o nome de sua filha mais ilustre
–, reconheço que esse silêncio não significa esquecimento, mas
de espera. O extraordinário legado de Nísia Floresta aguarda por
leituras, estudos, pesquisas, divulgação, permitindo ser libertado
do rótulo que a reduz a uma “precursora”. É importante o ato de
vanguarda, de pioneirismo. Claro. Mas ser precursora implica que a
importância da sua obra está meramente no que ela antecipou, e não
no que ela foi,
em sua própria plenitude. Costumamos enaltecer com orgulho o ato do
pioneirismo, mas precisamos dissecá-la para entendê-la por dentro.
Colocar Nísia Floresta no rol dos filósofos brasileiros do século
XIX, além de a admitirmos como a primeira mulher filósofa do
Brasil, não é um ato de anacronismo ou de bairrismo intelectual. Na
verdade é um gesto de rigor histórico e de ampliação do próprio
conceito de filosofia. Nísia é a nossa filósofa brasileira.
Defender
essa ideia é admitir que o pensamento crítico, a investigação
sobre os fundamentos da existência da sociedade, não prediz um
padrão, mas que pode acontecer de diversas formas. É compreender
que a resistência à opressão, quando defendida por intermédio da
razão e da argumentação – seja num manifesto, num poema épico
ou num livro de conselhos -, é uma das mais louváveis formas de
filosofar.
Excluir
Nísia Floresta da galeria de curiosidades das “grandes mulheres”
e alçá-la ao panteão dos grandes pensadores brasileiros, muito
mais que um ato de reparação, muito mais que fazer justiça, é
estar sendo justo com nós brasileiros. É fortalecer nossa tradição
intelectual, reconhecendo em Nísia Floresta uma voz poderosa e
corajosa que, há quase dois séculos, elaborava as questões que até
hoje assombram: sua luta por um país mais justo, a necessidade de
uma educação libertadora e o desafio de edificar uma identidade
nacional que não aconteça sob as mazelas da exclusão e do
silenciamento da mulher, dos pretos, dos indígenas e de qualquer
pessoa que habite o Brasil. E que as águas da lagoa Papary, onde
Nísia banhava-se acompanhada por Pepé, lavem o silenciamento feito
à nossa filósofa brasileira.
Que
a brisa sopre dos coqueirais, leve essa mensagem: que a partir de
agora, todos possam entender e dizer que no Sítio Floresta nasceu a
primeira filósofa do Brasil. Uma mulher cuja voz, uma vez auscultada
com o devido cuidado, segue nos educando sobre o Brasil e a e sobre a
nossa própria condição humana. Seu pensamento não é uma ruína
parcialmente ignorada – como a casa de pedra de Piranji –, mas
uma semente que, mesmo tendo passado tanto tempo e ainda estar
atualizada em muitos aspectos, embora que tardiamente, ainda pode
germinar e despontar as mais viçosas vergônteas.
Obs.
O presente ensaio é apenas, digamos, um capítulo, diante de
diversas considerações que necessitam serem feitas. Muitos livros
ainda devem ser lidos, muito deve ser comparado, estudado, analisado;
muitos pensadores precisam ser consumidos, mas este estudo pontua
cirurgicamente as considerações que extraem da obra de Nísia
Floresta o gabarito necessário para que a classifiquemos como a
"primeira filósofa do Brasil do séc. XIX.
Luís
Carlos Freire - Sócio Efetivo do Instituto Histórico e Geográfico
do Rio Grande do Norte - Estudioso da obra de Nísia Floresta,
bisneto da bisneta de Francisca Clara Freire do Revoredo (irmã de
Antônia Clara Freire do Revoredo, mãe de Nísia Floresta).
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