Eu devia ter treze anos. Eventualmente passávamos finais de semana ou feriado na fazenda do meu cunhado. Era muito distante, diferente da distância da fazenda contada ontem no episódio das pamonhas, já mais próxima. A propriedade dista quase cem quilômetros da cidade, de maneira que percorríamos longa distância sem ver uma única casa ou pessoa. Quando em vez passávamos por um carro. É mato dos dois lados da estrada de terra.
Alguns trechos formavam túnel de árvores nativas quilômetros a fio, de maneira que era comum nos depararmos eventualmente com manadas de pacas, antas, capivaras, Caititu (porco do mato), veados, seriemas, tamanduás, jaguatirica, anta, cutia e todo tipo de fauna menos hostil daquela região aninhada no Mato Grosso do Sul.
Obviamente havia onças-pintadas, mas essas não percorriam locais com barulho, de maneira que só se viam os seus rastros pela estrada ao amanhecer, acaso descesse do carro. Nas praias dos rios percebia-se ter havido sossegados passeios de adultos e filhotes pelo marchetado na areia fofa das margens.
A fazenda era cortada pelo imenso e caudaloso rio Pardo, que fazia uma curva sinuosa a uns trezentos metros dali, desenhando uma sutil enseada que atraia bichos e gente. Justamente nessa curva havia a ponta de um objeto de ferro de algo submergido no Pardo. Diziam os mais velhos ser uma embarcação que afundou durante a guerra do Paraguai. Raros homens adultos empreendiam atravessar esse manancial a nado.
A sede da fazenda guardava um silêncio que nunca mais experimentei. Os únicos sons eram proporcionados por pássaros e a bicharada. E vez em quando um rosnado rasgava a quietude da mata. Durante a noite as matas, campinas e pastos eram pinceladas de luzinhas vagantes que não eram vaga-lumes. Eram olhos. Olhos que andavam macio.
Como a própria cidade onde morávamos era emoldurada de matas e rios, não nos daríamos ao luxo de estranhar o aspecto bucólico daquele recôndito, mas vivíamos a experiência interessante do silêncio absoluto, cuja terra se emendava com o céu num misto de olhos e estrelas como pinguinhos de ouro na vastidão tisnada. A luz da casa se dava por lampiões. Lamparinas eram usadas na necessidade de se deslocar ao terreiro. Tudo era breu. Ficávamos sentados nos bancos da varanda do casarão, conversando e olhando para a placa do horizonte preto, rompido pela escuridão do céu, furado de pontinhos reluzentes. Nunca vi céu mais lindo.
Durante o dia, eu e minha irmã costumávamos percorrer a fazenda, apreciando tudo. A começar por um pequeno rio que ficava atrás do casarão. Rasinho e com cardumes de lambaris, ligeiros. Pareciam sombras se locomovendo. Andávamos no mato à cata de marolo, goivira, ingá e outras frutas silvestres, deliciosas e inesquecíveis.
Nesses passeios silvestres gostávamos de correr dentro dos túneis feitos por capivaras e antas. Elas tricotavam tanto essasestradas que pareciam canos dentro da mata. São caminhos redondos, esculpidos naturalmente pelo vai e vem desses bichos. Quase um labirinto. Andar por essas tocas era diferente de rasgar o mato à mão para avançá-lo, portanto sentíamos a desenvoltura dos bichos, como se o fôssemos. Assim percorríamos as matas com maestria, incorporados de antas pacas.
Recordo-me de uma experiência com uma onça, certa vez, quando passeava sozinho nesses labirintos misteriosos, mas atraentes. Assim que deixei o túnel, dei-me com as margens do assustador rio Pardo. As águas caudalosas emitem um som único e indescritível. As copas gigantes das árvores parecem seres fantásticos quando sombreiam as águas, despertando nossos sensores de fantasias. É uma presença indescritível de algo que só se sente estando ali.
Na outra margem do rio uma multidão de ariranhas entrava e saia de suas tocas no barranco ribeirinho. Mais adiante, numa pequena enseada, dezenas de capivaras tomavam sol na prainha de areias alvas. Pareciam contemplar o silêncio daquele paraíso. São impressionantes as delícias da natureza. Elas proporcionam um misto de medo e envolvimento irresponsável naquelas peles, naqueles couros, seduzindo-nos.
Eis que nesse estado de natureza olho para a mata ribeirinha e dou-me com a visão de uma onça pintada sobre o braço de imensa ingazeira. Deitada despreocupada e elegantemente. Um portentoso exemplar. Tal e qual essa bela espécie da fotografia aqui postada. Logicamente que não era essa, mas exatamente igual. Havia entre nós a distância da largura de duas BR, de maneira que ela poderia ter-me tornado sua refeição num disparo de segundos. Se eu entrasse na água, elas são excelentes nadadoras. Se eu subisse numa árvore, elas são exímias escaladoras. Correr seria em vão, mas me era alternativa instintiva, pois havia uma casa há uns trezentos metros.
Fiquei como um toco, fincado ali sem movimento. Logo aquele ser imponente, de beleza extraordinária saltou na água e deu na outra margem, num nado impressionante, indiferente à força da água. As capivaras irromperam dali, desaparecendo como se entrassem nas árvores. As ariranhas não se importaram, mas ficaram tesas. Onça sabe bem quem são as ariranhas. Fiquei observando, almejando vê-la novamente, mas a mata era muito fechada. Todo esse enredo foi-me coisa de segundos. Então disparei para a sede da fazenda. Coração ameaçando rebentar boca afora.
À noite, durante as conversas de lampião, meu cunhado disse que ela estava alimentada, e jamais me faria mal. Ou talvez estivesse interessada na manada de capivaras do outro lado do rio. Talvez ela dormisse naquele momento e minha presença a despertou.
Onças sentem cheiro à longa distância. São iguais aos Guarani-Kaiowá e Guató que adivinham alguém chegando a quilômetos. Ele orientou que jamais eu fosse ali sem companhia e evitasse andar à tardinha próximo ao rio ou nos túneis. A peonada dali só anda de faca e arma de fogo. As onças se afastam ao menor barulho. Jamais se aproximam de lugar com ronco de motores ou converseiros e risadas. Assim também são as sucuris.
Animais silvestres pertencem às matas, devem ser louvados e nada mais. Eles estão no espaço deles. Sempre tive aversão a quem fere qualquer animal. Mas, por falar em onça, as pegadas da onça-pintada assustam. São grandes e carimbam pesadamente o chão. A pata dianteira é bem maior que a traseira. A dianteira tem uns 12 cm de comprimento e uns 13 cm de largura. A pata da pegada traseira tem uns 11 cm de comprimento a 10 cm de largura, com almofada grande e arredondada. Os dedos são arredondados e sem marcas das unhas.
Pois bem, essa é a história de uma onça que estava em paz em seu habitat, eu a perturbei, e ela, por alguma razão, me poupou. Seguem outras imagens. Elas, no caso, são imagens reais do rio Pardo contornando a cidade em que nasci. Essas matas tiveram parte comigo. Esse rio conheceu a minha infância. Quantas vezes saltei de sua velha ponte de madeira e nadei até a margem como quem acabara de experimentar o feito de um heroi… 7.8.2020.
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