Aproveitando a simbólica data de 13 de maio, marco da assinatura da Lei Áurea em 1888, convido à reflexão sobre duas figuras femininas notáveis da história brasileira: Nísia Floresta Brasileira Augusta e a Princesa Isabel. Ambas mulheres de seu tempo, ambas inseridas em contextos sociais distintos, mas que, de modos diferentes, dialogaram com a questão da escravidão no Brasil. Contudo, é fundamental destacar que, muito antes de a Princesa Isabel ter se tornado conhecida como a "Redentora", Nísia Floresta já erguia, de forma solitária e corajosa, sua voz em prol da liberdade.
Nísia Floresta nasceu em 12 de outubro de 1810, falecendo em 24 de abril de 1885. Princesa Isabel veio ao mundo bem depois, em 29 de julho de 1846, e morreu em 14 de novembro de 1921. Antes mesmo de Isabel nascer, Nísia já havia firmado seu nome como autora, educadora, feminista e — como nos interessa aqui — precursora do pensamento abolicionista no Brasil.
Apenas três anos após o nascimento de Isabel, Nísia, em uma de suas obras, questionava com lucidez:
“Que uma raça não fez para sobre as outras ter revoltante primazia, ilimitado poder?”
E, quando a futura princesa contava sete anos, Nísia dirigia palavras contundentes às autoridades brasileiras:
“Senhores do Brasil, esse solo abençoado em que respirais, mostrai-vos dignos dele, fazendo desaparecer do meio de vós a maior vergonha dos povos cristãos! Vergonha que macula ainda os vossos altivos vizinhos do Norte, apesar dos admiráveis progressos do seu gênio empreendedor e dinâmico. Cessai uma horrível profanação da natureza humana: ela deve ter, cedo ou tarde, como resultado, terríveis represálias.”
Tais declarações não se resumem a episódios isolados. Ao longo de sua trajetória, Nísia Floresta reiterou suas críticas ao regime escravocrata, ainda em um Brasil profundamente imerso no conservadorismo colonial. Suas ideias precederam em décadas o florescimento do Movimento Abolicionista organizado, que só ganharia corpo e capilaridade a partir da década de 1870, com nomes como José do Patrocínio, Joaquim Nabuco, André Rebouças, Luís Gama e Castro Alves, entre outros — incluindo, é claro, muitos abolicionistas negros cujas contribuições ainda carecem de pleno reconhecimento.
O pioneirismo de Nísia Floresta é indiscutível. Em uma sociedade patriarcal e escravocrata, ela ousou denunciar as mazelas sociais por meio de livros e artigos publicados na imprensa, num esforço que exigia sutileza e firmeza. Seu abolicionismo não foi instantâneo, mas sim construído a partir de uma consciência crítica em desenvolvimento, enfrentando o ambiente hostil do Brasil oitocentista — marcado por um ethos escravocrata profundamente enraizado. Nesse processo, ela enfrentou preconceitos múltiplos: por ser mulher, intelectual e insurgente.
Não se trata de atribuir superioridade moral a Nísia em relação a Isabel, mas de compreender os diferentes papéis que ambas desempenharam no curso da história. A princesa, filha do imperador Dom Pedro II, agiu num momento politicamente decisivo — mas sua assinatura na Lei Áurea, em 13 de maio de 1888, embora simbólica, foi resultado de intensa pressão popular e política. Àquela altura, a abolição já era inevitável. Havia motins, fugas em massa, quilombos se rearticulando, e uma sociedade civil mobilizada por meio da imprensa, das artes e dos clubes abolicionistas.
A narrativa de que a abolição foi fruto da “bondade” de uma princesa carece de profundidade histórica. A Lei Áurea foi, de fato, um desfecho tardio e sem medidas compensatórias aos libertos, que foram lançados à própria sorte, sem acesso à terra, à educação ou a quaisquer políticas públicas de inclusão. Era, em última instância, uma tentativa do Estado imperial de evitar o que chamavam de “perigo social”: a reforma agrária. Soltar os cativos sem lhes oferecer alternativas reais era manter as estruturas de exclusão sob nova roupagem. Foi como abrir a gaiola de um pássaro que jamais aprendeu a voar.
A abolição, portanto, não significou liberdade plena. Seguiu-se a ela um longo período de marginalização. Sem acesso a direitos, os ex-escravizados foram relegados às periferias urbanas, dando origem às primeiras favelas. Muitos continuaram servindo às elites, agora sob o disfarce da "liberdade contratual", em condições de subalternidade. As consequências sociais, políticas e econômicas desse abandono ainda se fazem sentir nas estatísticas de criminalidade, no racismo estrutural e na desigualdade persistente.
Dizer que apenas pessoas negras cometem crimes é uma falácia perversa. A criminalidade está diretamente ligada à exclusão, à falta de acesso a oportunidades dignas e ao abandono histórico de parcelas inteiras da população por parte de sucessivos governos. E essa negligência começa exatamente ali: no dia seguinte à abolição.
O 13 de maio, por isso, deve ser lembrado não como um gesto de compaixão monárquica, mas como um marco de luta social. Um ponto de chegada (tardio) de uma causa que já mobilizava intelectuais como Nísia Floresta desde os primeiros anos do século XIX. A comparação entre Nísia e Isabel é reveladora: enquanto uma antecipava o futuro por meio da razão e da escrita, enfrentando solidão e silenciamento, a outra se tornou símbolo de um gesto oficial, tardio e sem desdobramentos efetivos para os libertos.
Importa, ainda, refletir sobre o contraste entre o pensamento de Nísia — mulher, crítica, progressista — e certas posturas contemporâneas de mulheres que, em pleno século XXI, apoiam ideologias retrógradas, autoritárias, misóginas e racistas. O que aconteceu com o legado daquelas que, como Nísia, ousaram pensar o mundo de maneira mais justa? Onde estão as que hoje se calam diante da barbárie?
Em suma, reconhecer Nísia Floresta como precursora do abolicionismo no Brasil — e, mais amplamente, na América Latina — é resgatar a memória de uma mulher que foi, sem dúvida, muito além de seu tempo. Conhecer sua biografia e confrontá-la com a de figuras mais celebradas, como a Princesa Isabel, nos permite reavaliar o passado com mais honestidade histórica e sensibilidade crítica. Fica, assim, o convite à leitura e à reflexão.
L.C.F. 1998
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