Nísia Floresta e o Abolicionismo:
Reflexões sobre um Brasil Escravocrata
Imaginemos, ainda que com dificuldade, a
perspectiva de um indivíduo branco nascido em um contexto profundamente marcado
pela instituição da escravidão. Um tempo no qual os serviços mais básicos —
como a preparação das refeições, a higiene pessoal ou mesmo o simples ato de
afugentar o calor com um leque — eram desempenhados por pessoas escravizadas,
geralmente negras, que compunham a estrutura doméstica e econômica das famílias
das elites brasileiras. Crianças brancas, ao crescerem nesse ambiente,
testemunhavam adultos comandando, humilhando e, muitas vezes, torturando física
e psicologicamente os cativos. Trata-se de uma cena semelhante àquela
presenciada por Sigmund Freud em sua visita ao Brasil, que o marcou
profundamente.
Foi nesse ambiente que nasceu Nísia Floresta
Brasileira Augusta (1810–1885), uma das primeiras vozes femininas da
intelectualidade brasileira a emergir com autoridade crítica sobre as
estruturas de poder e exclusão do século XIX. Sua família fazia parte da elite
nordestina, proprietária de terras e de numerosos escravizados. Seus
ascendentes diretos — como o Capitão Leonardo Pinheiro Teixeira e Mônica Borges
da Rocha Bezerra, seus bisavós; e o Capitão-mor Bento Freire do Revoredo e
Mônica da Rocha Bezerra, seus avós — estiveram intimamente ligados à economia
escravista e possuíam cativos em suas propriedades. A própria Nísia foi criada
sob os cuidados de Pepé, uma jovem negra possivelmente adquirida como ama ou
dama de companhia, cuja presença é registrada com afeto em seus escritos,
embora sem muitos detalhes sobre sua trajetória pessoal.
A escravidão, portanto, não era um fenômeno
distante ou apenas rural; era um componente central da vida familiar e social
da elite brasileira, inclusive na região da Vila Imperial de Papary, atual
Nísia Floresta (RN). Ali, os engenhos de açúcar proliferavam e mantinham o
sistema escravista em pleno funcionamento. Nísia, ainda jovem, presenciava o
comércio de seres humanos próximo ao Engenho São Roque, sob a sombra de um
velho pé de Oiti — local de compra e venda de escravizados, conforme relatos
orais preservados por descendentes das famílias locais.
Neste contexto, a naturalização da escravidão era
esperada. Crianças brancas aprendiam, desde cedo, a associar a diferença de cor
ao status de servidão, internalizando as hierarquias raciais impostas pela
sociedade colonial e imperial. Assim como os animais de carga — bois e burros —
eram açoitados ao não suportarem o peso das carroças, o mesmo destino era
reservado aos escravizados, que muitas vezes morriam de exaustão nos canaviais
e engenhos.
No entanto, Nísia Floresta apresenta um percurso de
consciência singular. Ainda jovem, demonstra incômodo diante da forma desumana
como os negros eram tratados. Embora suas primeiras manifestações não
demandassem diretamente o fim da escravidão — talvez por não conceber ainda
essa possibilidade em um país onde a escravidão era legal e amplamente
legitimada —, ela já propunha melhorias nas condições de vida dos escravizados.
É fundamental compreender que, em sua trajetória, o pensamento abolicionista
foi amadurecendo gradualmente, refletindo um processo interior de transformação
ética e intelectual.
Certa vez, uma publicação no Diário de Natal, cuja autoria não me recordo no momento, acusou Nísia de apoiar a escravidão, baseando-se na interpretação isolada de um
trecho de sua obra no qual criticava mulheres brancas por entregarem seus
filhos para serem amamentados por escravas “sujas”. No entanto, essa acusação
ignora o contexto e a intenção da autora. Nísia não depreciava as mulheres
negras, mas sim denunciava as péssimas condições de higiene e salubridade das
senzalas, e condenava a prática das elites de terceirizar um ato tão íntimo e
afetivo quanto a amamentação por motivos de vaidade ou comodismo.
Mais tarde, já na Europa, ela ampliaria essa
crítica ao constatar práticas semelhantes na França — onde bebês eram enviados
às aldeias para serem cuidados por amas de leite em condições precárias — e as
denunciaria em seus escritos, como no livro A Mulher.
Esse olhar humanista atravessa sua obra, ainda que muitas vezes de forma sutil
ou marginal ao tema central. Mesmo quando não tratava diretamente da
escravidão, Nísia incorporava o questionamento das relações sociais baseadas na
desigualdade, lançando as sementes de uma consciência abolicionista em
formação.
Obras como A Lágrima de um Caeté (1847) são
exemplos marcantes dessa postura crítica. Embora não dedicada exclusivamente à
denúncia da escravidão, a narrativa aproveita-se da figura do indígena como
símbolo da opressão colonial para também questionar a desumanização do negro
escravizado. Tal posicionamento levou inclusive à censura da obra pelo Império
— um sinal claro de que sua mensagem causava incômodo aos defensores da ordem
vigente.
Nísia Floresta, portanto, não apenas foi uma
precursora do feminismo no Brasil, mas também uma pensadora que desenvolveu, ao
longo da vida, um discurso sofisticado e progressivamente incisivo contra a
escravidão. Inicialmente dissimulado, talvez como estratégia de sobrevivência
intelectual em um ambiente hostil à dissidência, seu pensamento evoluiu para um
abolicionismo mais explícito, especialmente em suas obras posteriores.
A compreensão da trajetória de Nísia exige, por
isso, a devida contextualização histórica. O Brasil oitocentista era um país
profundamente escravocrata, onde mesmo as instituições religiosas — como
demonstra a separação física dos espaços de culto entre brancos e negros nas
igrejas — reforçavam a desumanização da população negra. Nísia não foi isenta
desse ambiente, mas soube, com o tempo, elaborar uma crítica ética e política a
ele, contribuindo de maneira singular para o pensamento social brasileiro.
Por fim, reconhecer esse percurso é também
reconhecer a complexidade das consciências formadas em contextos de opressão. A
crítica à escravidão que brota nos escritos de Nísia Floresta não nasce do
radicalismo, mas da observação empática e do amadurecimento moral. Sua
contribuição, por isso mesmo, é valiosa: não como um grito isolado, mas como
uma voz que, ao emergir de dentro do sistema, soube desestabilizá-lo com
lucidez e coragem crescentes. L.C.F. 2023.
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