Contrito, raspado pelas margens da vida,
Singrando sem ondas de razão.
Outrora me vejo riscado de sol,
Borbulhado das enseadas sinuosas.
Quando em vez, rebento, elétrico,
Singrando energias...
Numa velocidade despida de realidade.
Sou rebojo,
Sou silêncio...
Sou rio sem réguas,
Descomprometido com fronteiras,
Atento às minúcias.
Levado pela correnteza
Nunca sou o mesmo...
DESLINGUAJAR FILOSÓFICO...
Entre o mundo e a linguagem mora o penso,
Num limbo de pêndulos, orando frases como pesasse…
Limitar a linguagem é limitar o mundo, petrificando-o,
É deixar o mundo penso,
Pesado, descompensado…
Daí a necessidade de pensar os fins da filosofia.
Só assim a linguagem pega disfunção…
E funciona para acertos.
Filosofia é uma doença que estraga o cérebro…
Bota tento no mundo penso,
Desparafusa a imaginação,
Enche o mundo de deslinguajar.
Um mundo pensante, despensa os cérebros que não adoeceram.
Os imbecis não adoeceram,
Pensam em milímetros,
Com ponteiros parados, atrasados…
Os filósofos se desmedem em cosmos.
Os filósofos se limitaram a interpretar o desmundo.
Chegaram a esse despropósito de propósito.
Cabe agora, modificá-lo...
Creio que se eles vissem uma árvore apassarada,
Se vissem cigarras gritando vidros no mato,
Mudariam o mundo para infância.
A melhor linguagem é predicada na infância,
É quando ela se santifica de emoções,
A melhor poesia é preterida nas sobras invisíveis...
Na filosofia dos bichos,
Na filosofia das árvores,
Absorta em sentidos todos.
Língua é uma desculpa para silenciar poesia...
Poesia são emoções filosofando,
Disfarçadas em figurinos de palavras…
SALVADOR...
Dali derretia relógios a pincéis.
Vivia coisentortando,
Fantasticando telas...
O mundo surrealizava-se com o seu despintar.
Ele desintegrava a concretude,
Traduzia sonhos na linguagem dos pigmentos,
Tintava fantasias,
Interpretava irrealidades...
Suas cores oníricas
Funcionavam emoção às obras de arte.
Embora Dali não teve coloração,
Ensinou que é possível derreter palavras…
Amolecer gramáticas…
Pintá-las ao feitio surreal
Escorrê-las escorreitas a lápis,
Garatujar semânticas…
Divagar neologismos...
Colorir sentimentos...
As obras enlouquecidas de Dali
Estão para as telas
Como as sintaxes tortas estão para a poesia,
Mesmo se descompreendendo
Enlouquecem as emoções.
Os relógios desmanchados de Dali
São as sintaxes oblíquas Daqui.
Desintegram verbos para desvocabulizar,
Confabular imaginações...
Dali teve o prodígio de espremer o arco-íris,
Espirrou sonhos lexicais
Sobre quiméricas pranchetas...
Dali ensinou a pintar despintando,
Portanto, escrevo desescrevendo…
Botando loucura nas palavras...
Salvador dali, daqui, dacolá
Salvemos o mundo poesiando...
PSICOGRAFITE...
Parece que havia setembro naquela temporada… Sei que era época pertinente a flores. O passario comandava a copa das árvores, Entonces escorriam palavras dos meus grafites, E tudo se acomodava àquelas linhas... Centos de animais alados bichavam as frutas, Cigarras trincavam seus vidros na imensidão das matas… O borbulhar da sinfonia ecoava nas águas pardas do sinuoso Paraguai. Cumplicidade absoluta de bichos e águas, de árvores e bichos, Tudo arquitetava poesia naqueles ermos… E lá estava o grafite incorporando palavras, Dialogando o idioma dos seres mateiros, Psicografitando os espíritos do Pantanal, Disfarçando-se a poemas… É assim a alma escorrida naqueles rincões, Elas só incorporam quem tem parte com palavras… Quem não tem, parte… E deixa as linhas vazias de poemas, Orfãs escorreitas em meio a tanta maternidade… (L.C.Freire 6.1.18)
VER E OUVIR
Um velho contou-me que se alimentava pelos ouvidos e olhos.
Entendi literalmente e requisitei explicações, afinal era criança,
Eu o teria sentenciado louco não fosse o testemunho.
Ele era poeta, disse que sua declaração funcionava só para poesia.
Argumentou que a rua é material poético,
A feira é material poético,
O vagão do trem é material poético...
Poesias estão em constante aflição,
Voando, cantando, falando...
Então o poeta deve aguçar o olhar e as oiças,
Tem que sentir as coisas como quem investiga um crime...
Quanto mais simplicidade, mais poesias.
Elas têm parte com coisas que nem todos valorizam,
Por isso pegam valor quando caem no ouvido e olho do poeta...
Bêbados, loucos, caipiras, crianças e natureza usinam as melhores poesias.
Ele contou que sempre funcionou de ouvir e ver,
Depois colocava inquietação nas palavras, raspando papel com lápis,
Como quem faz um bolo de fubá.
Exaltou que poeta é efeito de fragmentos de pessoas,
O segredo está no escutar e ver,
Alertou que poesias voam e podem se dissipar
Acaso não colhidas na hora,
Como passarinho que se assusta no galho,
Então fica difícil rever e reouvir...
Mas as mais belas pérolas poéticas são gratuitas
E divagam em todos os impensáveis,
Aparecidas aqui e acolá...
O velho então reforçou:
Tem que ver,
Tem que ouvir
E depois sangrar.
Escrever sangra...
Sábias Xananas...
Elas honram lugares desprezados,
Embelezam cenários desvalidos;
Parecem dizer “pobres merecem beleza”.
Então, brotam em lugares feios e impensados...
Frinchas de calçadas,
Beiras de rodovias,
Nos torrões secos de vida…
Transformam paisagens toscas em prados graciosos de buquês.
Ramalhetes aparecidos do céu.
Impõem os seus encantos sem exigir pagas.
Sábias… sábias… sábias...
Ensinam humildade e resiliência.
Desinteressadas de ofertas, só amor oferecem.
Descomprometidas com elogios,
Surdas às hostilidades dos idiotas...
Praticam o amor,
Dão o que têm.
Quando cismado,
Me inverno nas minhas matas interiores,
E me aconteço nas estações da natureza,
Plenificado de uma glória de bicho.
Vivo um renascer constante,
Instigado pela força silvestre que me gerou...
Emano magnetismos involuntários,
Reveladores da minh’alma bugre...
É quando sinto paz em pelo,
Vagueando em corixos,
Mimetizado de floresta,
Pateando os tapetes bordados de folhas,
Deslizando em silêncios de onça.
Os meus bosques florescem plenificados de fauna e flora,
E banhado de jacarés, me aconteço na imensidão das águas.
Agora em espírito da mata,
Um ser divagante, vagando,
Leve, levado em eflúvios...
Na absoluta solidão do silêncio.
Um rio de felicidade...
Quem conquista essa fidúcia, não se apetece mais do mundo irreal...
Os gregos diziam que enquanto o sonho comum é curto, a loucura é um sonho longo...
Portanto apraz-me adoecer desses delírios que só os insanos têm o poder de experimentar.
Em estado de natureza, vestido em seus barulhos silenciosos, estou no meu eu...
Basto-me... L.C.F.
Imagem: https://pixnio.com/.../estrada-da-floresta-caminho-da...
Cais
Ontem contemplei o cais
Uma embarcação singrava o Potengi em silêncio de oração.
Vieram-me lembranças das chalanas do rio Paraguai.
Eventualmente me insiro nesse cenário onde Natal acomodou
suas aparências antigas...
Já desfrutei tardes inteiras aprendendo o vocabulário do mar,
Prosas deliciosas com pescadores,
Mestres que só vendo para crer.
Impossível traduzi-los em palavras.
A relação desses homens com o mar é indescritível.
Passam o dia vestidos de sal.
Num traje fixo de sol.
As águas salgadas escorreram raízes em seus poros,
Fincando suas vidas no mar...
É casamento por amor.
Ouvi-los palpitava-me Hemingway.
Senti o cheiro d’O Velho e o Mar.
Relação abnegada, paixão desmedida pela marina.
O marlin foi mera desculpa para encantar-nos de mar.
Li naquelas letras de água, naqueles homens marinhos,
histórias dos trabalhadores do mar:
São pais, avós, tios, irmãos, cunhados, genros, amigos... homens...
Homens do mar...
Como é mágica e gigante a vida dos pescadores do Porto da Ribeira!
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Outubro/2018
NOVELOS DE AREIA...
Qual semente voejante em redemoinhos e arremessada ao chão,
A cidade germinou em planície vermelha,
Despontando morosa, sob o lençol da terra,
E as casas foram se acomodando aos quarteirões vazios.
O lugarejo, como colcha de retalho, costurou-se lentamente...
Remansosa, a cidade pincelou-se de residências de madeira.
As únicas calçadas estavam deitadas na única praça de único busto.
Eram passeios geométricos de cimento e pedra, separados com
ripas de madeira, emoldurados de Coroa de Cristo.
Ninguém se arriscava a mudar de aleia, pois os espinhos picavam.
Tempo em tempo as chuvas cavavam as ruas da cidade.
Os temporais retorciam as marquises do posto de gasolina,
Voando-as longe,
Enquanto os meninos amavam as enxurradas.
Éramos ribeirinhos,
Tínhamos um rio particular adiante da casa.
Rio que caia do céu e escorregava em nós...
Nossa infância embalou laços afetivos com a lama,
Brinquedos de águas cor de café com leite.
No cemitério gritava um ancho túmulo de madeira, guarnecido de balaústres.
Pedra fundamental: inaugurou o campo santo!
O morto chegou ali por obra de um açougueiro da cidade.
As máquinas Caterpilar davam retidão às ruas vermelhas,
Rasgavam a terra, nivelando avenidas largas, nossos parques infantis.
Um perfume saltava das raízes velhas,
Restos de mata das fazendas Formosa e Limeira.
Na beira das ruas amontoavam-se pequenos morros.
Inventamos brincar “guerra de torrões”.
Nossos brinquedos eram criados na hora,
Conforme acontecia a infância.
Um dia enfiaram imensos lápis de cor na avenida Campo Grande.
Depois pregaram bolas de vidro, chamando-os de postes.
Anoiteceu e descobrimos que os equipamentos esticavam o dia.
Cada lápis tinha um sol amarelo.
Aqueles homens fabricaram o dia dentro noite.
Para a nossa felicidade, nos tornamos notívagos,
Até que o chamado paternal fosse berrado do portão.
Amanhecia, o sol instigava um lençol de areia fina nas ruas.
Agosto enlouquecia os ventos, desenhando novelos de areia iguais tornados.
Os redemoinhos rodopiavam a metros,
Irrompendo em lufadas de poeira,
Perpassando os nossos corpos como fantasmas,
Pinicavam a pele,
Sacudiam os varais e árvores,
Invadiam os quintais, traquinando tudo,
Os velhos diziam ser o saci buscando fumo.
Não sei bem.
Bem sei que a cidade era infinita em areias...
Onde desfilaram onças e sucuris
Que, agora, escondidas nas matas, olhavam a cidade,
Assistiam aos moradores com seus olhos de fogo.
Essa infância teve parte com a verdade e dou fé.
CEREBRAR A POESIA
Cativa-me a palavra despida de regras.
Nua a estigmas inventados nos engenhos do preconceito linguístico.
Língua é invenção a ser sempre reinventada.
É criação do homem-deus.
Falo-me da língua da linguagem,
Falo-te da comunicação do comunicante.
Desimporta se nascida do homem-mato,
Despreocupa se nascida do homem-cidade...
Urge que a poesia seja cerebrada na legislação da liberdade,
Perpassada pela máquina dos sentidos,
E não hibernada.
Precisa saltar do chão, dos lugares, das imagens, das coisas…
Cerebrar as visões do mundo,
Transitar o cérebro e ser processada à emoção.
Cerebrar… cerebrar é palavra-luz.
Desimportam sintaxes tortas, se o que vale é criar.
É lei que poesia deve causar...
Poema sem emoção é lugar comum,
É porta, é pedra.
No meu constante escrever
Careço alçar estado de pássaro
Para funcionar-me em poesia,
Só assim voo no universo das visões,
E transcendo, possuído de invenção.
É quando tudo escorre do lápis,
Num verdadeiro transe de grafite.
A escrita me flana nos deslugares de não saber,
Toda vez que chego a lugar algum
Descubro poesias,
E me perco num formidável compor,
E creio que assim me acho,
Divagando num céu de palavras,
Ocupado com o que não sei...
Não vou nem voo a lugares versados de saber,
Eles impedem de flanar minhas asas,
São ambientes demais sérios a um lápis tosco,
Cheiram a café, biscoito e óleo de peroba
Anulam a fabulação literária,
Absorta em confabulações de egos...
Incomodam-me reuniões de sabidos,
Por isso, reivindico o deslugar e o desencontro,
Onde voejo num dessaber desmedido,
Na casinha de pau a pique insignificantemente insigne,
Colhendo sabedoria da boca do menino indígena,
Onde a palavra está grudada nas árvores
E precisam ser colhidas maduras
Para presentear os poetas,
Onde os meus sintos sentem pertencidos a emoção.
Desaprender é o compromisso desse voo,
Requer silêncio de pedra,
Digressão constante...
Escrever é um eterno desaprender.
É desescrevendo que cavamos poesia.
Tem parte com a inocência,
É onde reside jazida bruta de infância poética,
Nela se escondem linguagens sujas de emoção,
Desprovidas de lapidação acadêmica,
Garatujadas de meninice,
Fluindo mais poesia que os poetas versados...
Porque eles esqueceram das crianças,
Escreveram sem voar,
Escreveram sem ver,
Seus poemas não funcionam para emocionar.
É nesse exercício que divago,
Por isso preciso incorporar outros...
Careço-me voar outros...
Na realidade, não sei escrever
Creio saber me escrever,
Por isso gosto dos vocábulos desprezados.
Rebolados no lixo de algum erudito.
Vivo desses sobejos,
Por isso sou mais feliz que um caramujo
Roendo caroço de abacate depois da chuva...
PANTANAL
O dia envelhece
A chalana preguiçosa risca o Paraguai,
Desregulando os seus contornos;
Lontras e ariranhas vestem seus furos na barranca;
As águas douradas rolam em curso largo,
Pintadas pelo por do céu.
Logo, os reflexos de púrpura dissipam a tarde;
Os jaburus foram os últimos a encher as árvores,
Já não se vê o sulco da embarcação;
A noite tem espessura de piche
E a água foi aplainada pelo silêncio.
É hora dos jacarés acenderem seus olhos na lâmina do rio;
Os vaga-lumes furam o lençol da noite.
Há um perfumamento de lírio borrifando a escuridão.
Amanhã tudo amanhece Pantanal.
DESESCREVER
Com licença da palavra,
Mas falando com pouco ensino
Quero lhe dizer umas letras...
Ao atravessar a pré-adolescência
Passei a ter parte com palavras.
Amava mais palavras aos livros.
Literalmente, as caçava.
Livros que não diziam, não serviam.
Livros têm de contar…
Poesia tem de dizer.
Dizer emocionando,
Dizer tocando,
Dizer graciliando...
Poesia tem que provocar...
Assim sentenciava.
Poemas bons funcionam a emoção.
Poesia é plenitude disso,
Carecem desregular...
Desiguais à crônica, ao romance, ao conto...
Que, longos, não exercem poesia a cântaros,
Senão se perdem… se desenredam.
Quando eu caçava palavras
Não praticava lógica alguma...
Imagine um menino preocupado com palavras…
Doido!
Um dia minha mãe disse: “leve essa comida para “Zé Boneco”!
Era um doido literalmente de pedras…
Execrava a todos ao modo rebolo.
Não sei por qual desatino, nos respeitava.
Perguntei “por que o seu nome é Zé Boneco”?
A resposta foi quase uma pedrada.
Eu estava embevecido com a palavra boneco.
Só queria escrever alguma coisa usando boneco...
Não é necessário saber escrever para escrever,
Por isso busco a desescrita.
Desescrever é divinizar a palavra...
Se você consegue pregar a palavra, está a meio léxico,
O resto é estampar emoção...
Muitos escrevem sem dizer.
É necessário dizer,
Ser escutado pelas palavras.
Elas exigem lugar certo,
Como tijolo na mão do mestre.
Por enquanto só sei escrever…
Exercito o meu desaprender a cada dia.
(O paraguaio Benitez Louzada Argaña
participou-me ser necessário comer
um saco com sessenta quilos de sal
- sozinho -
para divinizar a escrita).
Estarei pronto quando desescrever,
Pois busco a infância da palavra
Esquadrinho o desnacer das palavras...
Quero encontrá-la ao seu estado de pepita.
Só assim saberei nascê-la.
Por enquanto, só sei escrever…
Cá me estou, seu criado...
PITANGUEIRA EM FLOR Março tem predicado a pitangueiras, Quando um véu de abelhas Zumbe as flores orvalhadas. Os pecíolos se desgarram das bainhas, Quais majestosas cerejeiras em buquês Perfiladas a contemplar o Monte Fuji... Seus pistilos sexuais parem brincos de pérola Enquanto as hastes saltam do mesmo nó Elevando-se iguais espinhas de um guarda-chuva. Então as flores enramarão desenhos de pipocas, Esfarinhando chuviscos, Bordando tapetes encanecidos no barro vermelho, Metamorfoseando os estames macios em plumas... As pitangueiras despem seu figurino verdejante, Trajarão temporariamente um manto de santificada beleza, Debruarão um visual de adjetivos intraduzíveis. A galhada se bordará emperolada, Explodindo um predomínio de flores, Atraindo abelhas dos confins dos pertos. O zumzumzum ziguizagueia A renda branca de néctar, Qual labirinto de bilros Entremeando sobre o pique Desenhado por Apolo... Venta um abelheiro açucarado, E logo amanhecerão pitangas Verdes, vermelhas, amarelas, alaranjadas... Árvore nutrida pelo astro-rei, Frutinholas rubras de fina pele, Delicadas e vulneráveis. A polpa trava um travo doce-amargo, A língua rola a amêndoa, Lixando-a, cavoucando Sua carne veludosa, Salivando o paladar... Fruta silvestremente exótica, Breve o passarinheiro passará. Colméias longínquas se encherão do mel Nascido na pitangueira do meu quintal... Restou-me meia dúzia de pitangas na mão E esses serenos poéticos Vistos às quatro e meia da manhã... Louvadas sejam as pitangueiras...
Seu colo tinha o calor de um forno quente.
Pois que seu cheiro e seus bichos me seduziam.
ESCREVER
Escrever é palavra de raiz latinha
Vem de ‘escre’, que significa ‘escrita’
E ‘'ver', que significa ‘esparramar olhar nos invisíveis’
É por esse estado de coisa que existe o ditado
"Tem que ver para crer",
Penso mais poético dizer
"Tem que ver para escrever".
Algumas poesias jorram sons
Guinchos de macacos
Murmúrios de rios
Rajadas de vento...
Os alfarrábios revelam que predominam poesias silenciosas.
Poesia é olhamento.
São visões...
Quando digo que as joaninhas viveram estágio de crocodilos
Não falo surrealismo,
Falo verdadeirismo.
Testemunhei as larvas saindo dos ovinhos
Foi no córrego Guaçu:
Um pingo d’água que escorre no Mato Grosso do Sul...
Depois de algumas horas descrocodilizaram,
Metamorfosearam-se em joaninhas...
Vi o escaravelho carregando carniça para aninhar seus ovos
Encontrei zigue-zigues descapsulando-se iguais pernilongos
Deparei-me com o ninho de serpentes:
Iguaizinhas minhocas eram-las
Por isso proclamo:
"Tem que ver para escrever"
Quando escrevo
Transcrevo meus olhares
Minhas visões
O papel é receptáculo de poesia
Vítima dos loucos...
Inspiração é acréscimo...
Assessório...
Escrita é funcionária da visão.
Poesia é visão escrita
Pede olhos apurados...
Às vezes traduzem imagens guardadas em nossas memórias afetivas...
Mas foram vistas lá no rabo da vida...
Gaviões têm estigmatismo comparados aos poetas.
Certo dia um doutor falava a uma gigantesca plateia atenta,
Exceto um poeta...
Ele escrevia sobre a aranha que tecia rede na cortina do auditório...
Rabiscava o que via
Desescutava o palestrante entretido com poesia em tecimento.
Não é todo dia que se se vê poesia,
Pois quando aparece, tem que grafitá-la...
Não é regra entendimento por escutação
Nem por ascultação
E sim por visão.
Resumindo:
Para o poeta a sonoridade é relativa
Uma pedra pode falar mais que mil gralhas,
Mil gralhas podem guardar mais silêncios que todas as pedras...
Dependerá da visagem do poeta
Dependerá da loucura do poeta
Dependerá dos olhos do poeta
Escrever é ver
Ver com os olhos
Ver com a alma
Ver os invisíveis
AMOLECEDOR DE VIDRO
Havia nobreza naquela árvore:
Escorria vidro!
Vidro mole igual aos meles
Depois vitrificava
Não igual ao que Trimálquio conta em Satiricon,
Mas ao ponto pedra.
Uns homens sabidos chegados de Ponta Porã
Inventaram apelidos:
"Resina, âmbar, pez"...
Era muito cientificoso o palavreado.
Eu preferia acreditar na vizinha alemã:
Aquilo é choro de árvore, guri!
Como sempre fui descobridor,
Descobri que mergulhando o vidro na água
Magicava verniz
Magicava cola
Tudo eu colava com vidro mole
Tudo eu envernizava com vidro mole
Tornei-me amolecedor de vidros na temporada das pipas
Como disse Lavoisier:
"Na natureza, tudo que é mole, endurece,
só não se deve endurecer o coração".
SEM TÍTULO
Ociocidade é condição deplorável.
Pois metrópoles me desertam.
Torres de concreto não florescem poesia,
Por isso vivo em estado de sítio.
É quando me visto de bichos, e de arvoredos me enobreço,
E de poeta me aconteço.
E de paz me verbalizo…
Se quero me linguajar de verbos,
exerço o idioma da mata.
Pois criatividade não é insight,
É rio sinuoso arranhando suas margens,
Escorrendo palavras sinuosas...
São sucuris no braço de ingazeira, tocaiando túneis de capivaras...
Quanto mais desapareço a cidade,
Mais me aparece poesia...
Assim acomodo palavras em asas de tuiuiús,
Ninhos de juritis,
Copas de Quixabeiras...
Onde o penso alcançar...
Poesia é ócio mental em moldura de natureza.
É necessária sua plenitude para sangrar copiosamente
dos lápis efeitos de árvores.
Ociosítio é apetecível para poesia,
Pois nos tornam infância.
Ociocidade, não!
Costurou a noite inteira rosando o chão.
Tecendo lentamente o lençol de jambeiro...
A relva alinhavou os retalhos em flor,
Unindo os estames,
Cerzindo pompons macios a plumas...
Bordando pistilos delicados a agulha de relva
Acomodando sagradamente a tessitura.
A manhã alvoreceu aveludada,
Abençoada para olhos que enxergam o invisível...
Sudário natural forrando a terra...
Manto divino de beleza...
Propício para descanso de bichos de canto de muro,
Os jambeiros nos viajam ao colo da avó bordadeira,
Costureira de cachecóis e casacos de lã,
Macios iguais ao calor de sua bondade…
Macios iguais aos lençóis de jambo...
Louvado seja o seu sacratíssimo jambo...
Eles ministram praticar Deus...
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Hoje cedinho, aqui na Deodoro, em Natal/RN, acordei essa paisagem logo cedo. E como ela está para o Nordeste, como os ipês para o Centro Oeste, nada mais louvável que externar em postagem a sua cor maravilha. Enquanto os ipês são espetaculosos à copa, os jambeiros são espetaculosos a chão.
JAMBEIROS
Os jambeiros humanizam o chão com tapetes madrugados de orvalho.
Sudário sagrado, serenado de hastes macias, cumprindo a sina das flores.
O orvalho funciona de vermelho para os jambeiros, assim como novembro se presta a anunciar as frutas vindoiras.
Quanto mais o bordado assume o chão, desenrolando carpetes despreocupados com réguas, mais exaltam a prosperidade da safra.
Os jambeiros têm parte com meninos.
O seu espetaculoso tapete traduz um convite de flores, salivando as infâncias… avisando…
Preparem as bocarras menineiras... Vem jambo aí!
NOVELOS DE AREIA...
Qual semente voejante em redemoinhos e arremessada ao chão,
A cidade germinou em planície vermelha,
Despontando morosa, sob o lençol da terra,
E as casas foram se acomodando aos quarteirões vazios.
O lugarejo, como colcha de retalho, costurou-se lentamente...
Remansosa, a cidade pincelou-se de residências de madeira.
As únicas calçadas estavam deitadas na única praça de único busto.
Eram passeios geométricos de cimento e pedra, separados com ripas de madeira, emoldurados de Coroa de Cristo.
Ninguém se arriscava a mudar de aleia, pois os espinhos picavam.
Tempo em tempo as chuvas cavavam as ruas da cidade.
Os temporais retorciam as marquises do posto de gasolina,
Voando-as longe,
Enquanto os meninos amavam as enxurradas.
Éramos ribeirinhos,
Tínhamos um rio particular adiante da casa.
Rio que caia do céu e escorregava em nós...
Nossa infância embalou laços afetivos com a lama,
Brinquedos de águas cor de café com leite.
No cemitério gritava um ancho túmulo de madeira, guarnecido de balaústres.
Pedra fundamental: inaugurou o campo santo!
O morto chegou ali por obra de um açougueiro da cidade.
As máquinas Caterpilar davam retidão às ruas vermelhas,
Rasgavam a terra, nivelando avenidas largas, nossos parques infantis.
Um perfume saltava das raízes velhas,
Restos de mata das fazendas Formosa e Limeira.
Na beira das ruas amontoavam-se pequenos morros.
Inventamos brincar “guerra de torrões”.
Nossos brinquedos eram criados na hora,
Conforme acontecia a infância.
Um dia enfiaram imensos lápis de cor na avenida Campo Grande.
Depois pregaram bolas de vidro, chamando-os de postes.
Anoiteceu e descobrimos que os equipamentos esticavam o dia.
Cada lápis tinha um sol amarelo.
Aqueles homens fabricaram o dia dentro noite.
Para a nossa felicidade, nos tornamos notívagos,
Até que o chamado paternal fosse berrado do portão.
Amanhecia, o sol instigava um lençol de areia fina nas ruas.
Agosto enlouquecia os ventos, desenhando novelos de areia iguais tornados.
Os redemoinhos rodopiavam a metros,
Perpassando os nossos corpos como fantasmas,
Pinicavam a pele,
Sacudiam os varais e árvores,
Invadiam os quintais, traquinando tudo,
Os velhos diziam ser o saci buscando fumo.
Não sei bem.
Bem sei que a cidade era infinita em areias...
Onde desfilaram onças e sucuris
Que, agora, escondidas nas matas, olhavam a cidade,
Assistiam aos moradores com seus olhos de fogo.
Essa infância teve parte com a verdade e dou fé. 7.7. 2022
Letras de águas…
Palavras deságuam de mim aos borbotões
Então insano algum escrito…
Elas irrompem como águas,
Reivindicando cachoeiras para transbordo,
Necessitadas de acontecer,
Almejando poesia...
Palavras quais enxurradas,
Descomprometidas com obstáculos,
Descompromissadas com divisas.
Cresci tendo as orelhas treinadas para torto poeta,
Aprendi a amar os léxicos como crias lambidas,
Uso o verbo para desaguar esses líquidos poéticos,
Enquanto as frases me negam para Cristo...
O dia em que eu enlouquecer,
Terá sido a data mais importante para a poesia,
Pois enlouquecer de palavras
É plenitude poética.
Sentimento poético descompromete razões,
São nacos de demência,
Loucuras letradas,
Funcionando as emoções...
Amo as palavras comprometidas com os loucos,
Fabricadas nos discursos de coretos.
Cativa-me os pregões dos feirantes,
Apalavra-me a conversa dos pedintes…
Enfeitiça-me a fala gorda dos bêbados...
Busco as palavras divinizadas pelas crianças,
Autoras inatas de fantasias.
Desamo palavra-porta,
Frases geladas do lugar comum.
Meu escrito não cabe em réguas,
É deslimite emocional,
Dança de lápis divagando devagar ou à pressa...
Medir a poesia como?
Ela é líquida!
BUGRE PESCANTE O bugre Kadiweu amarrou a noite numa pedra. Esticou, esticou até o ponto de tarde. Assim podia abarrotar o cesto de peixes. Linha, tirava do horizonte, Anzol, tirava das cascas de camarão, Taquara, tirava das touceiras, A pesca acontecia como água. A natureza no Pantanal santifica tudo, São pedaços de Éden a cada pisada. Mais tarde o bugre amarrará a noite num lírio, Ao ponto de ocaso. "Assim poder pescar mais". É o que ele sussurra, mastigando o beiço, A voz dos bugres tem idioma no céu.
Contou que fazia poesia ao modo de
Bêbados, loucos, caipiras e crianças davam matéria prima de primeira qualidade.
São tecidos gratuitos
Arranjados aqui e ali.
O segredo está em ver, ouvir e sangrar as palavras.
DOCE OCASO
Ontem o céu arrastou cocadas ao ocaso,
Sombreou-me com a imagem de minha mãe:
Doceira primorosa...
Nuvem doce, surgida ao ocaso,
quais seus nacos deliciosos ao ponto queimado.
Nacos vagantes, cheirando lembranças.
Eu recebia ordens para mexer o tacho
Sobre imenso fogão a lenha.
Raspava a colher de pau,
Desenhando geometrias gulosas
No fundo do cobre ardente.
O tacho ainda resiste,
Empoeirado, empoleirado, desusado pelos 88 anos de minha mãe,
Nada lembra seu calor
Intermediando o crepitar da lenha,
Transformando goiabas, mamões, leite, abóboras, coalhada, queijos...
Em doces inesquecíveis,
Quais as cocadas que hoje viajam ao céu.
FLORZINHAS VIVAS
Como a imensidão do belo tem síntese?
Como cabe tanta vida num pingo?
Beija-flores são flores voantes,
Beijando outras flores de beleza...
Vidinhas miúdas,
Graciosas,
Voejando cores,
Polinizando o amor.
Deus não criou os beija-flores.
Foi assim:
Num desses degradês de Deus,
Ele teve uma síncope de aurora boreal...
As cores saltaram da paleta
Num descuido do Criador-Artista...
Então as vidinhas aladas
Se divinizaram em matizes sarapintadas...
Ganharam o mundo,
Colorindo as florestas,
Respingando poesias...
Santificando os jardins…
Encantando poemas onde passaram…
Pássaros feitos em flor,
Florzinhas vivas,
Invisíveis visíveis pintalgados…
Praticam o ósculo de Deus…
Beijam… beijam… beijam…
Amam… amam… amam...
Tingem felicidade aos olhos mais tristes...
Não podiam ser diferentes
Sendo deslize da Arte Divina
BONITO
As crianças faziam piruetas na ponte… tibum!
Embrulhadas no rio, iguaizinhas jacarés,
Gastavam infância o dia inteiro...
Contemplavam os ziguezigues sobrevoando a lâmina d'água.
Os pezinhos ticavam o leito, só a pontinha,
Assim eles dançavam nos líquidos da infância
Assistidos pelos grossos cardumes.
Gritos, risadas, urros…
Passavam horas exercitando fantasia,
A felicidade é um rio bonito!
Elas não se cansavam de saltar da velha ponte,
Boiavam sobre as aningas,
Mergulhavam de uma margem a outra,
Plantavam bananeira...
Suas mães assavam peixes catados à mão.
Outras cozinhavam-nos,
Preparando deliciosas iguarias.
Às onze horas, engelhadas, deixavam as águas.
Em segundos as barrigas se enchiam.
- Cuidado, menino! Espera um pouco,
Pular n’água com comida quente faz mal!
Ô, mãe, deixa eu fazer bonito!
O magote de crianças deitava na grama fria,
Aguardando ordens para recomeçar a felicidade
Outras trepavam nas árvores que sobraçavam o rio...
Queriam pular dali mesmo
No bonito rio da felicidade.
___________________
Imagem: http://amabilices.com.br/balneario-municipal-de-bonito/
LAGARTAS VERDES
Tinta verde é privilégio de lagartas verdes.
Enverdeci anos nessa descoberta,
O verde vem de seus dedentros.
Não sei se elas desaparecem as folhas
Ou as folhas desaparecem elas,
Mas há conivência com árvores...
Lagartas verdes são brotinhos passeando
Num eterno mimetismo verde.
Lagarta verde tem cago verde...
São grãos verdes atapetando o chão verde.
Há uma máquina em seus fatos.
Elas escolhem as vergônteas novinhas,
Passeiam o dia verdejantemente comendo...
Ondeando o corpo sinuoso de gula,
Então a refeição lhes passa.
Rastejamento...
Escorjando...
Enpanzinando...
O cago é árduo.
O processo é contorcido.
Um pedaço do corpo sobe, o outro desce lentamente,
A boca come e o rabo descome...
O chão fica esperançado de verde.
São grãozinhos miúdos, secos e fornidos.
Na mão do artista,
Diluídos n’água,
Dão bela aquarela.
Basta pincelar verniz de vidro mole sobre a tela
E o verde se eterniza.
Eram mais de ver e pegar que de pensar.
Ou melhor, no cocoruto.
Do perambular por sua casa, conheci seu dicionário:
O que mercê qué?
Sou seu Aparício, seu criado!
- Tem que ponhá juízo na cabeça dessas minina.
o passarinho martelava
ESTRADA BOIADEIRA
A cidade se divide por uma serpente preta
Vez em quando engole uma criança.
Quando ia-se a Campo Grande,
Um risco de estrada antiga acompanhava a viagem,
Margeando a serpente de piche.
O contorno datava das minas de Cuiabá
Dava dó do caminho órfão
Sem pedras,
Sem tropas,
Sem viajantes…
Felizmente os bichos a honravam...
Talvez solidários a seu abandono.
Nem andarilhos viajavam.
Às vezes desaparecia de mato
Ressurgindo adiante
Igual que contorno de lápis,
Depois se desprezava a rio...
Mas possuía uma curiosa característica:
Impunha-se,
Mesmo escondida de árvores, resistia,
Parecia dizer:
“Sou pioneira!”
Enquanto meu corpo viajava de carro
Meus olhos viajavam de Boiadeira,
Percorrendo-a
Num verdadeiro esconde-esconde.
Por que minha curiosidade?
Contou meu pai que era a antiga Estrada Boiadeira,
Trajeto dos desbravadores do Mato Grosso no século XVIII,
Caminho das comitivas de peões de boiadeiros...
As telas de Hercules Florence registraram o episódio,
Caminho de gado viajado a berrante para São Paulo e Paraná, Maracajú, Aquidauana, Rio Brilhante, Pedro Juan...
Trajeto de carros-de-boi lesmando pessoas e víveres
Rumo a Campo Grande, Cuiabá, Corumbá...
Nela viajou a Carmelita
Do Paraguai ao Porto XV...
O fiapo tinha modos de desprezo
Por isso me fascinava.
Sentia pena de seu abandono.
Estradas boiadeiras são como veias no corpo do Mato Grosso do Sul,
São bondosas,
Saudosistas,
Nunca mataram animais silvestres.
Muitas voltaram a ser veredas,
Noutras despejaram piche.
E assim sobrevive a estrada Boiadeira…
Risco solitário a lápis...
Exemplo de resiliência
Faz sozinha a sua história...
Creio que muitas pessoas têm a alma dessas estradas...
(Objeto femininamente caro!)
Igual que Mestrel descobriu-se do velcro.
Acasualmente...
Foi-se assim :
De repente o mundo se exibiu de azul...
Cintilações de Céu...
Um panapaná em estado de procriação descortinou-se,
Azuis voejavam o todo,
Abraçavam o jequitibá,
Deixei acontecer o meu silêncio de azul,
Descobri sombrazul!!!
Encantado, disparei num túnel de capivaras...
Corri até minhas irmãs
Que azularam os olhos de felicidade...
Todas as meninas do lugar se impressionaram.
Colhida aos quilos nas aroeiras.
"Inventoras de sombra azul cintilante para olhos"!
Talvez vindo nos mandarins.
E abóbora com coelho do mato.
Ou as árvores lhes desaparecem
Sem lonjura do tronco
Bem verdinhas
Trabalho árduo
Um pedaço do corpo sobe
Outro desce
(Não precisa apertar como pasta de dente)
Eles caem naturalmente
Reluz mais que o sol
SOSSEGO
Ela caminhava lenta
Era lesmática e desprovida de fala
Conhecida por todos como "Sossego"
Preta azeviche
Gorda roliça
Cabelo avolumados
Dedos das mãos e pés grossos como linguiças
(Tais quais os pretos de Portinari)
Lábios grossos em destaque
Nariz amplo
Bunda ao estilo da tribo Khoisa
Pernas batatudas
Das baianas subideiras da ladeira do Pelô.
Mostrava-se abortada de reflexos.
Olhava como não enxergasse
Havia desprezo em seu olhar
(Serenidade estranha).
Sua lentidão arrastava uma sensação irritante;
Morava num pequeno casebre de madeira.
Alguns meninos faziam-lhe troça,
Atiçados por sua indiferença.
Talvez quisessem ouvir a voz que ela transformou em silêncio,
Ou queriam ouvir xingamentos.
Ela nunca revidou,
Não fazia mal a uma formiga
Por isso irritasse a tantos;
Era dessas que nascem com os parafusos mentais afrouxados.
Não fosse pelo exotismo
Seria invisível,
Embora enxergada apenas para pilhérias.
Sossego morreu igual as lesmas.
Sua vida escorreu a visgo numa cama tisnada de fuligem;
Partiu como nada parte;
Guardaram-na a sete palmos de sossego eterno.
Quase sem testemunhas.
Sossegou-se...
Fascinavam-me as frutas, as flores estranhas,
E os cheiros inéditos.
A mata tem de realezas.
Os coelhos saltitantes...
Mato explode barulhos inóspitos como alarme.
Muitas vezes não identificava quem viajava em mim...
Depois as cercas de aroeira.
Ao compasso dos passos ligeiros
Sofre de desmetaforaxia.
BRINCAMENTOS DE FRIO
Fascinava-me a cidade gelada.
Dormir acasulado em camadas de cobertores é lembrança que me habita aquecida.
Amanhecíamos lesmáticos, acordando ao modo bicho-preguiça.
Entrar no tempo gelado era difícil.
Disputávamos riscos de sol,
Encerrado o café com pão caseiro,
Caíamos nos brincamentos de frio, cumprindo infância.
Eram dez brincamentos:
1) bater violentamente um cipó no varal de arame, para ver a capa de gelo se desgrudar...
3) furar a lâmina de gelo que se formava nos baldes de roupas de molho no quintal...
4) desenhar com o dedo sobre a poeira de gelo nos vidros dos carros...
5) grudar a língua em latarias (carecia caneca de água morna para a língua desgrudar)...
6) colher lágrimas de sereno congeladas na ponta das flores...
8) soltar ar quente da boca para fazer nevoeiros...
9) unhar lâminas de gelo, acumulada sobre metais, para sentir a massa entre as unhas...
Minha infância teve muitas estações
Seus acordes inda Debussyam músicas em mi.
Auscuto orquestras crepitando lenha de fogão...
Éramos tempos traquinos
Inquietos
Naquele tempo, só o tempo era frio,
Nossos despropósitos
Aqueciam tudo com fósforos riscados na infância.
Desempenhávamos mestrado em astúcias
Com fortes tendências a doutorados em noites com febre...
Soltando trilos desesperados.
- Íamos no velho caminhão "Stúdio Back" do meu pai.
- Minha mãe pegava a manivela na boleia e metia no focinho do bicho,
- Rodopiava até o motor roncar.
- Após algumas aceleradas pinotávamos na carroceria com baldes, latas vazias de "Querosene Jacaré", bacias e vizinhos.
- Para trás ficavam cúmulus-nimbos de poeira vermelha tingindo a mata.
- Ao chegarmos ao paraíso goiviral,
- Sonho de crianças e passarinhos,
- Nos empanturrávamos.
- Depois, abastecíamos os vasilhames.
- "Tomem cuidado com cobra!"
- Era a voz paterna.
- Voz sentenciante.
- Abastecidos, viajávamos de volta.
- Uma vez precisou-se parar o caminhão
- Alguém despejaria esterco na mata.
- Tenho muitas lembranças desses episódios silvestres.
- Catar goiviras era colher felicidade.
- Objeto de desejo dos nativos.
- Há palavras de consertar e desconsertar.
- Com minhas ferramentas de ossos,
- Reformo, restauro, desmonto, derreto, crio e recrio;
- É profissão mais brincadeira que existe.
- Na mecanoficinografotécnica
- Afrouxo e aperto parafusos de palavras.
- Depende do meu estado de desconserto
- (Coisa de gentes desparafusada).
- Encanta-me o ranger metálico
- Orquestrando felicidade disfarçada de trabalho.
- Já aprimorei centenas de palavras;
- "Criançamor" é uma delas!
- Bem soldada, não poderão mudá-la.
- A palavra é toda de besouro
- (Significa ter valor incalculável).
- Desses dias, desmontei as palavras
- Ódio, maldade e preconceito
- E das letras sobrantes
- Montei adjetivos, sinônimos e verbos
- Que despertam bondade.
- Muitas vezes em meio às letras-sucatas,
- Há enganchamentos sem conta
- Umas grudam-se às outras.
- Desses dias, encontrei um monturo desses.
- Puxei a letra A veio "amoração".
- Estava tudo grudado.
- Creio ser mistura de "amor" com "oração",
- Ou "amor" com "ação".
- Não pensei nem, soldei.
- Ontem, inventei a palavra jatobacidade.
- É como me sinto quando aprecio o fruto do jatobazeiro.
- Embora hoje estou pequiseiro.
- (Para Fídias)
- Todos nós tivemos o nosso lado Tom Sawyer.
- Durante a minha infância
- Possuía uma lata grande de leite Ninho.
- Dentro ficavam encarcerados:
- Uma coleção de 'cards' da Seleção Brasileira de Futebol,
- A cara de um boneco quebrado,
- Um pedaço de vidro de fundo de garrafa azul royal
- (servia para olhar o sol)
- Uma coleção de calendários,
- Tampinhas de garrafas com figuras de Walt Disney
- (uma promoção da Coca Cola).
- Tinha uma moeda antiga,
- Tudo muito bem guardado.
- Só eu sabia o local do esconderijo.
- Era o meu tesouro.
- Igual a alguns poetas que transgridem as normas da gramática e constroem escritos excepcionais, Gaudi foi um desses desertores e produziu uma arquitetura ousada e surpreendente.
- Suas obras são esculturas instigantes que parecem saídas de um naco insignificante de argila e transformado em edificações inacreditáveis. Não há como vê-las sem contemplação.
- As cores, formas e os materiais... tudo nos convida a perquirir cada detalhe.
- Como não bastasse a excepcionalidade do Palácio Guell – sua primeira obra – ele produziu móveis singulares. Há um tocador que parece bicho estranho. Cadeiras lembram animais em movimento (creio ser tênue a linha que separa pintura, arquitetura, literatura, engenharia, anatomia - se é que ela existe).
- Suas inconfundíveis chaminés transmitem alegria e infância. As torres percorrem os telhados, oferecendo um aspecto similar ao de um pequeno bosque de cipestres.
- Esse palácio nos reporta a uma escultura surrealista. Não há cantos, há curvas. Há côncavos e convexos.
- A leveza do formato orgânico dos metais desafia o entendimento.
- Ele conseguiu levar luz natural a ambientes nunca antes conseguido pelos mais respeitáveis engenheiros.
- Criou nesse monumento espaços diáfanos, que enganam os sentidos. Até um firmamento se faz presente.
- A singularidade de tudo o que se vê não ofusca a presença da natureza, denotando o quanto ele a valorizava.
- Não é de se estranhar que durante a sua construção a imprensa divulgou-a de forma incomum.
- Os ziguezagues do Colégio Teresiano. Alguém viu algo igual? Seus belíssimos arcos parabólicos. Foi ali que ao ser lembrado para gastar menos, respondeu ao padre que o encomendou: "Com todo respeito, padre Enric, mas o senhor entende de missas, eu entendo de fazer prédios".
- A Casa Calvet, ou a casa da fantasia, a mais convencional de suas obras. Suas famosas cruzes, as belas esculturas no telhado. Os móveis, iguais aos seus edifícios, são a expressão de um equilibrado jogo harmônico entre sobriedade e barroquismo.
- A Cripta da Colônia Guell é pura genialidade e uma de suas obras mestras. Seus arcos parabólicos.
- A aparência externa, dinossáurica, às vezes lembrando um animal estranho, contradiz o seu interior. Nota-se quão cuidadoso foi esse gênio com a pressão sobre os pilares em conformidade com as escalas.
- Essa obra é um hino, uma poesia disfarçada de arquitetura. Cada coluna sustenta a composição de uma árvore. Sua modernidade incomoda.
- Aliás, suas obras são assim: depende de onde se olha se vê o dórico e ao mesmo tempo o gótico, o neogótico, o árabe, o persa, o ultramoderno... logo se volta ao medieval como se rendesse homenagem ao passado glorioso da Catalunha. Há cuidado em prestar culto ao nacionalismo e a religiosidade.
- A Casa Bellesguard é um castelo medieval em miniatura. Sua magnífica porta e a influência do neogótico em suas janelas causam admiração.
- A fachada recorda a Idade Media.
- Nessa obra de arte, Gaudi teve o cuidado de respeitar as ruínas da casa de campo do último rei de Aragón. A brancura interior, a luz vazada de coloridos vitrais, em harmonia com azulejos coloridos contrastam com as pedras escuras que revestem as paredes externas.
- O incrível Parque Guell de pura arquitetura orgânica é simplesmente um encanto escultural.
- O banco sinuoso e contínuo de mosaico com diferentes fragmentos cerâmicos lembra as gigantescas sucuris pantaneiras. Teria ele pensado em grupos de reuniões a céu aberto? São fascinantes os motivos ornamentais que serpenteiam ao longo de seu corpo.
- Essa obra revela um artista com uma extraordinária intuição para a forma e a cor: verdadeiro escultor.
- Esse inigualável conjunto arquitetônico é um estranho corpo de pedra, cimento, ferro, azulejos e ladrilhos espraiados engenhosamente por um terreno acidentado, surpreendendo a cada centímetro.
- As casas parecem saídas dos contos de fadas. Suas pedras sempre em tom ocre com telhados revestidos de azulejos multicoloridos transmitem felicidade aos céus.
- O dragão com escamas a base de azulejos multicolores faz-se de guarda, mas encanta mais que assusta. Sua figura representa Pithon, guardiã das águas subterrâneas.
- Num dado momento um pórtico com colunas de estilo dórico se levanta como um imponente templo grego: uma reverência a Guell, admirador da arte antiga e seu mecenas.
- As colunas lembram palmeiras. O belo anfiteatro. Suas cavernas com ventilação perfeita. Na aridez do terreno houve o cuidado de canalizar as águas da chuva para reaproveitá-las, combinando arte com funcionalidade.
- A Casa Batló, construída no ponto culminante de sua carreira é pura profusão e riqueza. Chama a atenção as poderosas colunas parecidas com as patas de um elefante. O telhado recorda a espinha dorsal de um dinossauro.
- Os balcões retorcidos parecem máscaras gigantes. A casa tem pele, é de peixe!
- Os cantos e as formas que, pela arquitetura convencional seriam quadradas, desaparecem, se ondulam oferecendo o mesmo aspecto de pele escorregadia de uma serpente aquática.
- Os muros externos são como pele, suaves e moldáveis. Esse sonho de naturalismo e flexibilidade se estende também no seu interior.
- Nenhum outro edifício de Gaudi mostra tanta modernidade. Sua arquitetura vanguardista é das mais chocantes. A construção nos leva ao mundo da fantasia, assim como a Casa Calvet.
- O prédio parece mole, algo feito de barro recém-modelado como as mãos de oleiros alisando seus potes.
- Tudo é curvo, roliço, arredondado. Até o teto. A casa nos transmite o quadro "A Persistência da Memória", de Dali, com seus relógios derretidos. A casa também parece se derreter.
- Balcões semelhantes a gotas de mel... quem já viu isso?
- A Casa Batló é verdadeira casinha de alfinin. Nada lembra as pedras duras, frias que modelam o seu corpo arquitetônico.
- Na sala onde se encontra a lareira, tudo parece rechonchudo, macio, ondulado.
- A Casa Milá, apelidada de 'a pedreira' provocou estupefação nos contemporâneos de Gaudi, sendo incompreendida durante muito tempo.
- Não faltou quem fizesse caricaturas, paródias e deboches, desacreditando em cada metro que se erguia… Estariam assustados?
- Mas com certeza tanta ironia não era mais que uma prova de fascinação que ela exerceu sobre seus contemporâneos.
- Essa construção constitui uma síntese de todos os elementos que definem a época tardia do estilo gaudiano.
- A casa é paisagem em movimento. Sua fachada é obra primorosa… fantástica.
- Os numerosos ventiladores e chaminés configuram uma estranha paisagem de esculturas surrealistas, cujas formas se repetirão muito mas tarde na história da escultura.
- Este atrativo residia desgraçadamente em detalhes externos, duvidando por completo que Gaudi havia baseado em reflexões práticas. Havia uma antecipação do futuro, como o prelúdio da garagem subterrânea dos porões.
- Suas obras são marcadas por inúmeros chaminés: características puramente gaudiana.
- A Igreja da Sagrada família, de inspiração gótica, parece saída dos contos fantásticos. Não há nada que se possa comparar em toda a história da arte.
- Quando falamos de um gênio como esse, o mais comum é apontarmos uma obra de culminação. Mas em Gaudi isto é impossível, pois com a Sagrada Família, sua obra mestra, ele ocupou toda a sua vida.
- Quando compunha se encantava com a própria obra. Era tanto que não admitia vê-la lenta ou parada. Durante a primeira Guerra Mundial ia de porta em porta pedindo donativos para que os trabalhos não parassem, mas infelizmente só chegou a concluir uma torre.
- Por falar nelas, lembram as mitras episcopais.
- A Igreja da Sagrada Família é uma oração de pedra. Lugar onde as rochas exalam Deus.
- As doze torres que coroam a fachada fazem referência a toda a cristandade, representadas através dos doze apóstolos.
- Gaudi tinha repugnância pela monocromia. Dizia que a natureza é multicolorida e desconforme, portanto sua obra seria sempre cheia de vida e de formas diversas.
- Outro detalhe também interessante e que o faz poeta da arquitetura: ele gostava de introduzir em suas obras letras e palavras sob forma de anagramas.
- É impossível encontrar em suas obras algum elemento igual.
- A escultura de um caracol, uma tartaruga serve de base a uma coluna situada ao lado do portal do amor, ao lado aparecem animais domésticos.
- Às vezes até nós mesmos não entendemos como alguns de seus edifícios se sustentam em pé. Algumas obras refletem frágil aspecto, mas se caracterizam por assombrosa firmeza.
- Tudo é permeado por mosaicos, ladrilhos, cristais, azulejos, madeira, ferro, pedra, vidro, fragmentos de vidros, vitrais, cerâmicas... dominava o ladrilho como nunca.
- Gaudi antecipou as técnicas de colagem dadaísta, os métodos cubistas de Picasso e Miró, e as próprias pinturas de Miró.
- As instituições públicas de sua época o ignoraram, mas ele teve sorte com os canais privados, assim como o industrial Guell, seu maior fã e mecenas.
- O conjunto de sua obra revela ousadia e criatividade insuperável.
- Sua abnegação, sua religiosidade o tornam santo, tal qual a santidade de sua arquitetura.
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