ANTES DE LER É BOM SABER...

CONTATO COMIGO: (Whatsapp) 84.99903.6081 - e-mail: luiscarlosfreire.freire@yahoo.com. O pelo formulário no próprio blog. Este blog - criado em 2008 - não é jornalístico. Fruto de um hobby, é uma compilação de escritos diversos, um trabalho intelectual de cunho etnográfico, etnológico e filológico, estudos lexicográficos e históricos de propriedade exclusiva do autor Luís Carlos Freire. O título NISIAFLORESTAPORLUISCARLOSFREIRE foi escolhido pelo fato de ao autor estudar a vida e a obra de Nísia Floresta desde 1992 e usar esse equipamento para escrever sobre a referida personagem. Os conteúdos são protegidos. Não autorizo a veiculação desses conteúdos sem o contato prévio. Desautorizo a transcrição literal e parcial, exceto trechos com menção da fonte, pois pretendo transformar tais estudos em publicações físicas. A quebra da segurança e plágio de conteúdos implicarão penalidade referentes às leis de Direitos Autorais. Luís Carlos Freire descende do mesmo tronco genealógico da escritora Nísia Floresta. O parentesco ocorre pelas raízes de sua mãe, Maria José Gomes Peixoto Freire, neta de Maria Clara de Magalhães Fontoura, trineta de Maria Jucunda de Magalhães Fontoura, descendente do Capitão-Mor Bento Freire do Revoredo e Mônica da Rocha Bezerra, dos quais descende a mãe de Nísia Floresta, Antonia Clara Freire. Fonte: "Os Troncos de Goianinha", de Ormuz Barbalho, diretor do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, um dos maiores genealogistas potiguares. O livro pode ser pesquisado no Museu Nísia Floresta, no centro da cidade de nome homônimo. Luís Carlos Freire é estudioso da obra de Nísia Floresta, membro da Comissão Norte-Riograndense de Folclore, sócio da Sociedade Científica de Estudos da Arte e da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Possui trabalhos científicos sobre a intelectual Nísia Floresta Brasileira Augusta, publicados nos anais da SBPC, Semana de Humanidade, Congressos etc. 'A linguagem Regionalista no Rio Grande do Norte', publicados neste blog, dentre inúmeros trabalhos na área de história, lendas, costumes, tradições etc. Uma pequena parte das referidas obras ainda não está concluída, inclusive várias são inéditas, mas o autor entendeu ser útil disponibilizá-las, visando contribuir com o conhecimento, pois certos assuntos não são encontrados em livros ou na internet. Algumas pesquisas são fruto de longos estudos, alguns até extensos e aprofundados, arquivos de Natal, Recife, Salvador e na Biblioteca Nacional no RJ, bem como o A Linguagem Regional no Rio Grande do Norte, fruto de 20 anos de estudos em muitas cidades do RN, predominantemente em Nísia Floresta. O autor estuda a história e a cultura popular da Região Metropolitana do Natal. Há muita informação sobre a intelectual Nísia Floresta Brasileira Augusta, o município homônimo, situado na Região Metropolitana de Natal/RN, lendas, crônicas, artigos, fotos, poesias, etc. OBS. Só publico e respondo comentários que contenham nome completo, e-mail e telefone.

sexta-feira, 9 de março de 2018

Alguns poemas


As poesias abaixo foram escritas por esse que vos escreve, entre 13 a 30 anos. Crônicas e mensagens também se espremem entre. Pois pois. Um naco delas nasceu nos ares sul-matogrossenses, onde emanei-me. Esses escritos auscultaram os sons de araras, papagaios, periquitos, tuiuiús e pássaros sem fim que nublavam os céus da minha terra, num barulho delicioso que inda transborda. Lá embaixo, escondido num imenso quarto emoldurado de livros, ebuliam  dessa mente-criança águas cheias de palavras, respingando em escritos que esse. Muitos deles se escorreram de mim depois d'eu ter sido traspassado pelas palavras doces e estimulosas do meu conterrâneo Manoel de Barros, quando o conheci pessoalmente em Campo Grande, Mato Grosso do Sul. 
 


Às vezes sou rio aplainando emoções,
Contrito, raspado pelas margens da vida,
Singrando sem ondas de razão.
Outrora me vejo riscado de sol,
Borbulhado das enseadas sinuosas.
Quando em vez, rebento, elétrico,
Singrando energias...
Numa velocidade despida de realidade.
Sou rebojo,
Sou silêncio...
Sou rio sem réguas,
Descomprometido com fronteiras,
Atento às minúcias.
Levado pela correnteza
Nunca sou o mesmo...
    

DESLINGUAJAR FILOSÓFICO...


Entre o mundo e a linguagem mora o penso,

Num limbo de pêndulos, orando frases como pesasse…

Limitar a linguagem é limitar o mundo, petrificando-o,

É deixar o mundo penso,

Pesado, descompensado…

Daí a necessidade de pensar os fins da filosofia.

Só assim a linguagem pega disfunção…

E funciona para acertos.

Filosofia é uma doença que estraga o cérebro…

Bota tento no mundo penso,

Desparafusa a imaginação,

Enche o mundo de deslinguajar.

Um mundo pensante, despensa os cérebros que não adoeceram.

Os imbecis não adoeceram,

Pensam em milímetros,

Com ponteiros parados, atrasados…

Os filósofos se desmedem em cosmos.

Os filósofos se limitaram a interpretar o desmundo.

Chegaram a esse despropósito de propósito.

Cabe agora, modificá-lo...

Creio que se eles vissem uma árvore apassarada,

Se vissem cigarras gritando vidros no mato,

Mudariam o mundo para infância.

A melhor linguagem é predicada na infância,

É quando ela se santifica de emoções,

A melhor poesia é preterida nas sobras invisíveis...

Na filosofia dos bichos,

Na filosofia das árvores,

Absorta em sentidos todos.

Língua é uma desculpa para silenciar poesia...

Poesia são emoções filosofando,

Disfarçadas em figurinos de palavras…

Sonho...
 
Queria que a minha existência se significasse em asas. Que eu pudesse voar desaparecendo em sonhos, divagando em horizontes abençoados de infância. Queria a consistência da fantasia funcionando para Céu, de maneira que eu flutuasse como figuras de Chagall. Queria que todos os meus compromissos estivessem acima das árvores, permitindo-me trespassar o verde, dentro dos meus deslimites, dentro dos deslimites do espaço, de maneira que tudo evolasse imaginação, tudo evolasse delírio. Queria dançar no ritmo das pinceladas de Van Gogh,.. Presumo que o moto de viajar esses desconformes é se inquietar da normalidade do lugar comum. É necessário curar-se da normalidade e adoecer o pensar. Doente, molestaria o escrever e tudo se obteria nessa aparente loucura, inclusive os infinitos do mundo real e do mundo verbal. Creio que devo começar esse encanto me transcendendo em natureza; primeiro em árvores, pois elas são poesias que rebentaram do ventre do chão, saíram dos alfarrábios de Deus e se plantaram em alguns de mim. Muitas vezes alucino-me de árvore, divago de bicho silvestre, divinizo-me de águas, molhado de ventos, esturrado de floresta. Pretendo seguir tinguijando as normalidades ameaçadoras dessa doença. Ser uma viagem infinita de natureza, por isso tenho parte com a terra. Já avisei que quando me chegar o final não me guardassem numa caixa. Não quero sujar o solo. Quero desaparecer aparecendo no formato de tudo o que me significou...
 

SALVADOR...


Dali derretia relógios a pincéis.

Vivia coisentortando,

Fantasticando telas...

O mundo surrealizava-se com o seu despintar.

Ele desintegrava a concretude,

Traduzia sonhos na linguagem dos pigmentos,

Tintava fantasias, 

Interpretava irrealidades...

Suas cores oníricas

Funcionavam emoção às obras de arte.

Embora Dali não teve coloração,

Ensinou que é possível derreter palavras…

Amolecer gramáticas…

Pintá-las ao feitio surreal

Escorrê-las escorreitas a lápis,

Garatujar semânticas…

Divagar neologismos...

Colorir sentimentos...

As obras enlouquecidas de Dali

Estão para as telas

Como as sintaxes tortas estão para a poesia,

Mesmo se descompreendendo

Enlouquecem as emoções.

Os relógios desmanchados de Dali

São as sintaxes oblíquas Daqui.

Desintegram verbos para desvocabulizar,

Confabular imaginações...

Dali teve o prodígio de espremer o arco-íris,

Espirrou sonhos lexicais 

Sobre quiméricas pranchetas...

Dali ensinou a pintar despintando,

Portanto, escrevo desescrevendo…

Botando loucura nas palavras...

Salvador dali, daqui, dacolá

Salvemos o mundo poesiando...



PSICOGRAFITE...

Parece que havia setembro naquela temporada… Sei que era época pertinente a flores. O passario comandava a copa das árvores, Entonces escorriam palavras dos meus grafites, E tudo se acomodava àquelas linhas... Centos de animais alados bichavam as frutas, Cigarras trincavam seus vidros na imensidão das matas… O borbulhar da sinfonia ecoava nas águas pardas do sinuoso Paraguai. Cumplicidade absoluta de bichos e águas, de árvores e bichos, Tudo arquitetava poesia naqueles ermos… E lá estava o grafite incorporando palavras, Dialogando o idioma dos seres mateiros, Psicografitando os espíritos do Pantanal, Disfarçando-se a poemas… É assim a alma escorrida naqueles rincões, Elas só incorporam quem tem parte com palavras… Quem não tem, parte… E deixa as linhas vazias de poemas, Orfãs escorreitas em meio a tanta maternidade… (L.C.Freire 6.1.18)

 


 
VER E OUVIR 


Um velho contou-me que se alimentava pelos ouvidos e olhos.

Entendi literalmente e requisitei explicações, afinal era criança,

Eu o teria sentenciado louco não fosse o testemunho.

Ele era poeta, disse que sua declaração funcionava só para poesia.

Argumentou que a rua é material poético,

A feira é material poético,

O vagão do trem é material poético...

Poesias estão em constante aflição,

Voando, cantando, falando...

Então o poeta deve aguçar o olhar e as oiças,

Tem que sentir as coisas como quem investiga um crime...

Quanto mais simplicidade, mais poesias.

Elas têm parte com coisas que nem todos valorizam,

Por isso pegam valor quando caem no ouvido e olho do poeta...

Bêbados, loucos, caipiras, crianças e natureza usinam as melhores poesias.

Ele contou que sempre funcionou de ouvir e ver,

Depois colocava inquietação nas palavras, raspando papel com lápis,

Como quem faz um bolo de fubá.

Exaltou que poeta é efeito de fragmentos de pessoas,

O segredo está no escutar e ver,

Alertou que poesias voam e podem se dissipar

Acaso não colhidas na hora,

Como passarinho que se assusta no galho,

Então fica difícil rever e reouvir...

Mas as mais belas pérolas poéticas são gratuitas

E divagam em todos os impensáveis,

Aparecidas aqui e acolá...

O velho então reforçou:

Tem que ver,

Tem que ouvir

E depois sangrar.

Escrever sangra...

 



RIMBAUD

Rimbaud disse ter inventado as cores das vogais.
Escrevia colorido ele.
Por certo se sente passarinho esse menino!
(Quem inventa cores é pássaro)
 era negro
E, branco
I, vermelho
O, azul
Uverde.
Inventei de agora em diante
Que todos serão obrigadorespeitaas
Cores de Rimbaud
Os que desrespeitarem
Irão para disco de Newton
(É que um socó me sugeriisso de ontem)
 

Sábias Xananas...


Elas honram lugares desprezados,

Embelezam cenários desvalidos;

Parecem dizer “pobres merecem beleza”.

Então, brotam em lugares feios e impensados...

Frinchas de calçadas,

Beiras de rodovias,

Nos torrões secos de vida…

Transformam paisagens toscas em prados graciosos de buquês.

Ramalhetes aparecidos do céu.

Impõem os seus encantos sem exigir pagas.

Sábias… sábias… sábias...

Ensinam humildade e resiliência.

Desinteressadas de ofertas, só amor oferecem.

Descomprometidas com elogios,

Surdas às hostilidades dos idiotas...

Praticam o amor,

Dão o que têm.

 

Quando cismado,

Me inverno nas minhas matas interiores,

E me aconteço nas estações da natureza,

Plenificado de uma glória de bicho.

Vivo um renascer constante,

Instigado pela força silvestre que me gerou...

Emano magnetismos involuntários,

Reveladores da minh’alma bugre...

É quando sinto paz em pelo,

Vagueando em corixos,

Mimetizado de floresta,

Pateando os tapetes bordados de folhas,

Deslizando em silêncios de onça.

Os meus bosques florescem plenificados de fauna e flora,

E banhado de jacarés, me aconteço na imensidão das águas.

Agora em espírito da mata,

Um ser divagante, vagando,

Leve, levado em eflúvios...

Na absoluta solidão do silêncio.

Um rio de felicidade...

Quem conquista essa fidúcia, não se apetece mais do mundo irreal...

Os gregos diziam que enquanto o sonho comum é curto, a loucura é um sonho longo...

Portanto apraz-me adoecer desses delírios que só os insanos têm o poder de experimentar.

Em estado de natureza, vestido em seus barulhos silenciosos, estou no meu eu...

Basto-me... L.C.F.

 

 Imagem: https://pixnio.com/.../estrada-da-floresta-caminho-da...


Cais

 Ontem contemplei o cais

Uma embarcação singrava o Potengi em silêncio de oração.

Vieram-me lembranças das chalanas do rio Paraguai.

Eventualmente me insiro nesse cenário onde Natal acomodou 

suas aparências antigas...

Já desfrutei tardes inteiras aprendendo o vocabulário do mar,

Prosas deliciosas com pescadores,

Mestres que só vendo para crer.

Impossível traduzi-los em palavras.

A relação desses homens com o mar é indescritível.

Passam o dia vestidos de sal.

Num traje fixo de sol.

As águas salgadas escorreram raízes em seus poros,

Fincando suas vidas no mar...

É casamento por amor.

Ouvi-los palpitava-me Hemingway.

Senti o cheiro d’O Velho e o Mar.

Relação abnegada, paixão desmedida pela marina.

O marlin foi mera desculpa para encantar-nos de mar.

Li naquelas letras de água, naqueles homens marinhos, 

histórias dos trabalhadores do mar:

São pais, avós, tios, irmãos, cunhados, genros, amigos... homens...

Homens do mar...

Como é mágica e gigante a vida dos pescadores do Porto da Ribeira!

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Outubro/2018

  

NOVELOS DE AREIA...

Qual semente voejante em redemoinhos e arremessada ao chão,

A cidade germinou em planície vermelha,

Despontando morosa, sob o lençol da terra,

E as casas foram se acomodando aos quarteirões vazios.

O lugarejo, como colcha de retalho, costurou-se lentamente...

Remansosa, a cidade pincelou-se de residências de madeira.

As únicas calçadas estavam deitadas na única praça de único busto.

Eram passeios geométricos de cimento e pedra, separados com 

ripas de madeira, emoldurados de Coroa de Cristo.

Ninguém se arriscava a mudar de aleia, pois os espinhos picavam.

Tempo em tempo as chuvas cavavam as ruas da cidade.

Os temporais retorciam as marquises do posto de gasolina,

Voando-as longe,

Enquanto os meninos amavam as enxurradas.

Éramos ribeirinhos,

Tínhamos um rio particular adiante da casa.

Rio que caia do céu e escorregava em nós...

Nossa infância embalou laços afetivos com a lama,

Brinquedos de águas cor de café com leite.

No cemitério gritava um ancho túmulo de madeira, guarnecido de balaústres.

Pedra fundamental: inaugurou o campo santo!

O morto chegou ali por obra de um açougueiro da cidade.

As máquinas Caterpilar davam retidão às ruas vermelhas,

Rasgavam a terra, nivelando avenidas largas, nossos parques infantis.

Um perfume saltava das raízes velhas,

Restos de mata das fazendas Formosa e Limeira.

Na beira das ruas amontoavam-se pequenos morros.

Inventamos brincar “guerra de torrões”.

Nossos brinquedos eram criados na hora,

Conforme acontecia a infância.

Um dia enfiaram imensos lápis de cor na avenida Campo Grande.

Depois pregaram bolas de vidro, chamando-os de postes.

Anoiteceu e descobrimos que os equipamentos esticavam o dia.

Cada lápis tinha um sol amarelo.

Aqueles homens fabricaram o dia dentro noite.

Para a nossa felicidade, nos tornamos notívagos,

Até que o chamado paternal fosse berrado do portão.

Amanhecia, o sol instigava um lençol de areia fina nas ruas.

Agosto enlouquecia os ventos, desenhando novelos de areia iguais tornados.

Os redemoinhos rodopiavam a metros,

Irrompendo em lufadas de poeira,

Perpassando os nossos corpos como fantasmas,

Pinicavam a pele,

Sacudiam os varais e árvores,

Invadiam os quintais, traquinando tudo,

Os velhos diziam ser o saci buscando fumo.

Não sei bem.

Bem sei que a cidade era infinita em areias...

Onde desfilaram onças e sucuris

Que, agora, escondidas nas matas, olhavam a cidade,

Assistiam aos moradores com seus olhos de fogo.

Essa infância teve parte com a verdade e dou fé.

 

 


 CEREBRAR A POESIA

 Cativa-me a palavra despida de regras.
Nua a estigmas inventados nos engenhos do preconceito linguístico.
Língua é invenção a ser sempre reinventada.
É criação do homem-deus.
Falo-me da língua da linguagem,
Falo-te da comunicação do comunicante.
Desimporta se nascida do homem-mato,
Despreocupa se nascida do homem-cidade...
Urge que a poesia seja cerebrada na legislação da liberdade,
Perpassada pela máquina dos sentidos,
E não hibernada.
Precisa saltar do chão, dos lugares, das imagens, das coisas…
Cerebrar as visões do mundo,
Transitar o cérebro e ser processada à emoção.
Cerebrar… cerebrar é palavra-luz.
Desimportam sintaxes tortas, se o que vale é criar.
É lei que poesia deve causar...
Poema sem emoção é lugar comum,
É porta, é pedra.

  


 

O MENINO QUE SONHAVA FELICIDADE.
Havia um menino todo abotoado em sonhos naquela cidade.
De tão desperdiçado com a realidade, pregou nele ideias de sonhar.
Garantia que o mundo se consertava com ferramentas do bem.
Um dia saltaram que ele exercia a cabeça de vento,
Isso porque o menino ventava histórias que emanavam fantasias.
Mas os seus sonhos de fato ganhavam mundo,
Assim ele praticava realidade no que pensavam ser o absurdo,
Proclamava que a verdade dos sonhos é diferente.
De tão responsável com sonhos ele os cultivava vivos.
Tinha tantos modos de sonhar que magicou um pássaro de água.
Era uma ave escura como o rio Paraguai.
Quando planava, as asas respingavam, formando rios.
Os bichos bebiam dele,
Houve até um aumento de floresta.
O menino anunciava que não estava no mundo, mas o mundo estava nos seus sonhos,
Para ele, o sentido de ser feliz tinha mais existência nos sonhos.
A realidade precisava ser marchetada nos sonhos...
Exercitando esse engenho tão convincente, ele apurava a felicidade.
Reforçaram à mãe do menino que ele desregulava o mundo,
A mãe, ainda mais competente à imaginação, não concebia sentenças.
Desligou, foi o que fez.
A poesia estava tão praticada nela, que não podia sumir os sonhos do filho.
O menino estava comprometido com a herança materna.
Eles exerciam sonhos para se enriquecerem de felicidade
Era genético que jamais ela praticaria o mundo normal.
Aquilo restava na lata.
Só não via quem desvia.
Então o menino desapareceu a fazer sonhos por onde passasse.
Dizem que os seus sonhos estão a tal ponto espalhados em poesia que até hoje são encontrados.
Quem os acha, arranja-se feliz como um rio...
Esses sonhos realizam quem tem mães sonhando os sonhos dos filhos... livres, sem tocá-los...



Eu queria ter o mesmo compromisso das lesmas, amar sossegadamente os remanchos da vida e ver passar por mim todos os sons do verde... queria ser destemido de pressa, só para me arrastar aos lugares que ainda não os escorri. Suspeito que as lesmas santificam a natureza com a sua contrição silenciosa. Elas rezam através do corpo e são divinizadas de um amor paciente, um amor que espera. Mas se eu morrer no transverso dessa solidão deslizante, que a minha morte não esteja grudada ao meu berço... de maneira que a minha casa não venha comigo, que eu tenha apenas a morada derradeira num sulco de terra, e desapareça como visgo, fisgado pela natureza eternal...

 

 
 

No meu constante escrever
Careço alçar estado de pássaro
Para funcionar-me em poesia,
Só assim voo no universo das visões,
E transcendo, possuído de invenção.
É quando tudo escorre do lápis,
Num verdadeiro transe de grafite.
A escrita me flana nos deslugares de não saber,
Toda vez que chego a lugar algum
Descubro poesias,
E me perco num formidável compor,
E creio que assim me acho,
Divagando num céu de palavras,
Ocupado com o que não sei...
Não vou nem voo a lugares versados de saber,
Eles impedem de flanar minhas asas,
São ambientes demais sérios a um lápis tosco,
Cheiram a café, biscoito e óleo de peroba
Anulam a fabulação literária,
Absorta em confabulações de egos...
Incomodam-me reuniões de sabidos,
Por isso, reivindico o deslugar e o desencontro,
Onde voejo num dessaber desmedido,
Na casinha de pau a pique insignificantemente insigne,
Colhendo sabedoria da boca do menino indígena,
Onde a palavra está grudada nas árvores
E precisam ser colhidas maduras
Para presentear os poetas,
Onde os meus sintos sentem pertencidos a emoção.
Desaprender é o compromisso desse voo,
Requer silêncio de pedra,
Digressão constante...
Escrever é um eterno desaprender.
É desescrevendo que cavamos poesia.
Tem parte com a inocência,
É onde reside jazida bruta de infância poética,
Nela se escondem linguagens sujas de emoção,
Desprovidas de lapidação acadêmica,
Garatujadas de meninice,
Fluindo mais poesia que os poetas versados...
Porque eles esqueceram das crianças,
Escreveram sem voar,
Escreveram sem ver,
Seus poemas não funcionam para emocionar.
É nesse exercício que divago,
Por isso preciso incorporar outros...
Careço-me voar outros...
Na realidade, não sei escrever
Creio saber me escrever,
Por isso gosto dos vocábulos desprezados.
Rebolados no lixo de algum erudito.
Vivo desses sobejos,
Por isso sou mais feliz que um caramujo
Roendo caroço de abacate depois da chuva... 

  


PANTANAL

O dia envelhece

A chalana preguiçosa risca o Paraguai,

Desregulando os seus contornos;

Lontras e ariranhas vestem seus furos na barranca;

As águas douradas rolam em curso largo,

Pintadas pelo por do céu.

Logo, os reflexos de púrpura dissipam a tarde;

Os jaburus foram os últimos a encher as árvores,

Já não se vê o sulco da embarcação;

A noite tem espessura de piche

E a água foi aplainada pelo silêncio.

É hora dos jacarés acenderem seus olhos na lâmina do rio;

Os vaga-lumes furam o lençol da noite.

Há um perfumamento de lírio borrifando a escuridão.

Amanhã tudo amanhece Pantanal.

 


DESESCREVER

 

Com licença da palavra,

Mas falando com pouco ensino

Quero lhe dizer umas letras...

Ao atravessar a pré-adolescência

Passei a ter parte com palavras.

Amava mais palavras aos livros.

Literalmente, as caçava.

Livros que não diziam, não serviam.

Livros têm de contar…

Poesia tem de dizer.

Dizer emocionando,

Dizer tocando,

Dizer graciliando...

Poesia tem que provocar...

Assim sentenciava.

Poemas bons funcionam a emoção.

Poesia é plenitude disso,

Carecem desregular...

Desiguais à crônica, ao romance, ao conto...

Que, longos, não exercem poesia a cântaros,

Senão se perdem… se desenredam.

Quando eu caçava palavras

Não praticava lógica alguma...

Imagine um menino preocupado com palavras…

Doido!

Um dia minha mãe disse: “leve essa comida para “Zé Boneco”!

Era um doido literalmente de pedras…

Execrava a todos ao modo rebolo.

Não sei por qual desatino, nos respeitava.

Perguntei “por que o seu nome é Zé Boneco”?

A resposta foi quase uma pedrada.

Eu estava embevecido com a palavra boneco.

Só queria escrever alguma coisa usando boneco...

Não é necessário saber escrever para escrever,

Por isso busco a desescrita.

Desescrever é divinizar a palavra...

Se você consegue pregar a palavra, está a meio léxico,

O resto é estampar emoção...

Muitos escrevem sem dizer.

É necessário dizer,

Ser escutado pelas palavras.

Elas exigem lugar certo,

Como tijolo na mão do mestre.

Por enquanto só sei escrever…

Exercito o meu desaprender a cada dia.

(O paraguaio Benitez Louzada Argaña

participou-me ser necessário comer

um saco com sessenta quilos de sal

- sozinho -

para divinizar a escrita).

Estarei pronto quando desescrever,

Pois busco a infância da palavra

Esquadrinho o desnacer das palavras...

Quero encontrá-la ao seu estado de pepita.

Só assim saberei nascê-la.

Por enquanto, só sei escrever…

Cá me estou, seu criado...



PITANGUEIRA EM FLOR Março tem predicado a pitangueiras, Quando um véu de abelhas Zumbe as flores orvalhadas. Os pecíolos se desgarram das bainhas, Quais majestosas cerejeiras em buquês Perfiladas a contemplar o Monte Fuji... Seus pistilos sexuais parem brincos de pérola Enquanto as hastes saltam do mesmo nó Elevando-se iguais espinhas de um guarda-chuva. Então as flores enramarão desenhos de pipocas, Esfarinhando chuviscos, Bordando tapetes encanecidos no barro vermelho, Metamorfoseando os estames macios em plumas... As pitangueiras despem seu figurino verdejante, Trajarão temporariamente um manto de santificada beleza, Debruarão um visual de adjetivos intraduzíveis. A galhada se bordará emperolada, Explodindo um predomínio de flores, Atraindo abelhas dos confins dos pertos. O zumzumzum ziguizagueia A renda branca de néctar, Qual labirinto de bilros Entremeando sobre o pique Desenhado por Apolo... Venta um abelheiro açucarado, E logo amanhecerão pitangas Verdes, vermelhas, amarelas, alaranjadas... Árvore nutrida pelo astro-rei, Frutinholas rubras de fina pele, Delicadas e vulneráveis. A polpa trava um travo doce-amargo, A língua rola a amêndoa, Lixando-a, cavoucando Sua carne veludosa, Salivando o paladar... Fruta silvestremente exótica, Breve o passarinheiro passará. Colméias longínquas se encherão do mel Nascido na pitangueira do meu quintal... Restou-me meia dúzia de pitangas na mão E esses serenos poéticos Vistos às quatro e meia da manhã... Louvadas sejam as pitangueiras...



DESMANCHAMENTO DO DIA

Por do sol é equipamento de desmanchar dia.
Se inicia-se a papagaios rasgando de verde o amarelecido céu.
De atrás vêm araras explodindo trilos azuis-vermelhos,
Entardecem em laranjadouro.
Ao modo de recolhimento chega o ocaso por acaso desses efeitos de aves.
Efeitos de sol.
Feitos de natureza voando cores,
Aquietando a tarde.
Assim equipamenta-se a noite
Paramentada de pirilampos
É difícil fazer por do sol.



INFANCIAÇÃO
  
Nasci numa quarta sem feiras
Apenas matas e rios cheirando a quatro horas da tarde.
O tempo geava um rigoroso inverno.
Menino vistoso (diziam!),
Vestido de cidade recém-nascida.
Doze primaveras de pedra fundamental
Carregavam o rincão pantaneiro do meu primeiro choro.
Minha mãe teve uma quarentena de pirão de galinha caipira
Resguardada a parto natural.
A seu ócio temporário debruçava-se em afazeres a ajudante 'Bastiana'.
Seu azeviche era tão intenso quanto a sua dignidade,
Qual diamante negro de nobreza.
Mais velha que minha mãe,
Guardava sabedoria de forno e fogão 
Espalhando-a com humildade de monge.
Cresci numa comitiva irmanal cercada de sacis, curupiras, caiporas e lobisomens,
Iscuitando siriris, rasqueados, chamamés e guarânias.
Ao medo seguia proteção
Na pele sebastiana que estrumentava amor.
Seu colo tinha o calor de um forno quente.
Lembro das calungas que ela riscava de unhas na pele.
Bataguassu lesmava uma clareira
Acanhada de urbanidades,
Pedaço de terra selvagem
Emoldurada de bichos e águas.
Poucos pioneiros se arranchavam ali.
Meus pais foram desses.
Quem é parido em grossos matos
Traz um sujo de bugre.
Trago dentro de mim um baú transbordante de infância
Nasci de uma flor potiguar que pariu rodeada de florestas, bichos e rios,
Por que isso meus recordos são molhados de verde da mata,
Minhas essências espirram de fragmentos silvestres.
Meu primeiro choro fez coro com o esturrar das onças, o grasnar das araras e o palrear dos papagaios,
Bichos bandoleiros que pousavam nas nuvens de Bataguassu,
Engatinhei no barro escarlate
Com gato, galinhas e cachorros.
Nunca estive nem quis estar distante do chão, 
Pois que seu cheiro e seus bichos me seduziam.
Assim, fui íntimo de minhocas e cachorros d’água.
Em Bataguassu, quando as vozes dos bichos acontecem
Quando o murmúrio dos rios acontece,
Quando o farfalhar das matas acontece,
Sou eu acontecendo.
Minha primeira cor foi barro vermelho tingitando minha alma
Sem nunca mais descolori-la.
Foi nessa cidade desconhecida,
Sombreada de matas,
Assobradada de ruas, calçadas, espaços e poeira vermelha
Que minha infância felicitou.


ESCREVER


Escrever é palavra de raiz latinha

Vem de ‘escre’, que significa ‘escrita’

E ‘'ver', que significa ‘esparramar olhar nos invisíveis’

É por esse estado de coisa que existe o ditado

"Tem que ver para crer",

Penso mais poético dizer

"Tem que ver para escrever".

Algumas poesias jorram sons

Guinchos de macacos

Murmúrios de rios

Rajadas de vento...

Os alfarrábios revelam que predominam poesias silenciosas.

Poesia é olhamento.

São visões...

Quando digo que as joaninhas viveram estágio de crocodilos

Não falo surrealismo,

Falo verdadeirismo.

Testemunhei as larvas saindo dos ovinhos

Foi no córrego Guaçu:

Um pingo d’água que escorre no Mato Grosso do Sul...

Depois de algumas horas descrocodilizaram,

Metamorfosearam-se em joaninhas...

Vi o escaravelho carregando carniça para aninhar seus ovos

Encontrei zigue-zigues descapsulando-se iguais pernilongos

Deparei-me com o ninho de serpentes:

Iguaizinhas minhocas eram-las

Por isso proclamo:

"Tem que ver para escrever"

Quando escrevo

Transcrevo meus olhares

Minhas visões

O papel é receptáculo de poesia

Vítima dos loucos...

Inspiração é acréscimo...

Assessório...

Escrita é funcionária da visão.

Poesia é visão escrita

Pede olhos apurados...

Às vezes traduzem imagens guardadas em nossas memórias afetivas...

Mas foram vistas lá no rabo da vida...

Gaviões têm estigmatismo comparados aos poetas.

Certo dia um doutor falava a uma gigantesca plateia atenta,

Exceto um poeta...

Ele escrevia sobre a aranha que tecia rede na cortina do auditório...

Rabiscava o que via

Desescutava o palestrante entretido com poesia em tecimento.

Não é todo dia que se se vê poesia,

Pois quando aparece, tem que grafitá-la...

Não é regra entendimento por escutação

Nem por ascultação

E sim por visão.

Resumindo:

Para o poeta a sonoridade é relativa

Uma pedra pode falar mais que mil gralhas,

Mil gralhas podem guardar mais silêncios que todas as pedras...

Dependerá da visagem do poeta

Dependerá da loucura do poeta

Dependerá dos olhos do poeta

Escrever é ver

Ver com os olhos

Ver com a alma

Ver os invisíveis



AMOLECEDOR DE VIDRO

 

Havia nobreza naquela árvore:

Escorria vidro!

Vidro mole igual aos meles

Depois vitrificava

Não igual ao que Trimálquio conta em Satiricon,

Mas ao ponto pedra.

Uns homens sabidos chegados de Ponta Porã

Inventaram apelidos:

"Resina, âmbar, pez"...

Era muito cientificoso o palavreado.

Eu preferia acreditar na vizinha alemã:

Aquilo é choro de árvore, guri!

Como sempre fui descobridor,

Descobri que mergulhando o vidro na água

Magicava verniz

Magicava cola

Tudo eu colava com vidro mole

Tudo eu envernizava com vidro mole

Tornei-me amolecedor de vidros na temporada das pipas

Como disse Lavoisier:

"Na natureza, tudo que é mole, endurece, 

só não se deve endurecer o coração".

 

SEM TÍTULO

Ociocidade é condição deplorável.

Pois metrópoles me desertam.

Torres de concreto não florescem poesia,

Por isso vivo em estado de sítio.

É quando me visto de bichos, e de arvoredos me enobreço,

E de poeta me aconteço.

E de paz me verbalizo…

Se quero me linguajar de verbos,

exerço o idioma da mata.

Pois criatividade não é insight,

É rio sinuoso arranhando suas margens,

Escorrendo palavras sinuosas...

São sucuris no braço de ingazeira, tocaiando túneis de capivaras...

Quanto mais desapareço a cidade,

Mais me aparece poesia...

Assim acomodo palavras em asas de tuiuiús,

Ninhos de juritis,

Copas de Quixabeiras...

Onde o penso alcançar...

Poesia é ócio mental em moldura de natureza.

É necessária sua plenitude para sangrar copiosamente

dos lápis efeitos de árvores.

Ociosítio é apetecível para poesia,

Pois nos tornam infância.

Ociocidade, não!

 



BUGRE PESCANTE

O Guarani-Kaiowá enrolou a noite num tronco
E a prendeu  detrás do dia.
Queria esticar a pesca...
Linha, tirava do horizonte,
Vara, do taquaral.
A pesca escorria igual água...
Enquanto a canoa rasgava o espelho 
O cesto saltava para peixe,
Depois ele amarrará o dia num lírio
E a noite dormirá mais...
Assim pescará o dia pescando.
 

JAMBEIRO
 
A árvore, em mister silencioso,
Costurou a noite inteira rosando o chão.
Tecendo lentamente o lençol de jambeiro...
A relva alinhavou os retalhos em flor,
Unindo os estames,
Cerzindo pompons macios a plumas...
Bordando pistilos delicados a agulha de relva
Acomodando sagradamente a tessitura.
A manhã alvoreceu aveludada,
Abençoada para olhos que enxergam o invisível...
Sudário natural forrando a terra...
Manto divino de beleza...
Propício para descanso de bichos de canto de muro,
Os jambeiros nos viajam ao colo da avó bordadeira,
Costureira de cachecóis e casacos de lã,
Macios iguais ao calor de sua bondade…
Macios iguais aos lençóis de jambo...
Louvado seja o seu sacratíssimo jambo...
Eles ministram praticar Deus...
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Hoje cedinho, aqui na Deodoro, em Natal/RN, acordei essa paisagem logo cedo. E como ela está para o Nordeste, como os ipês para o Centro Oeste, nada mais louvável que externar em postagem a sua cor maravilha. Enquanto os ipês são espetaculosos à copa, os jambeiros são espetaculosos a chão. 

 

JAMBEIROS

Os jambeiros humanizam o chão com tapetes madrugados de orvalho.

Sudário sagrado, serenado de hastes macias, cumprindo a sina das flores.

O orvalho funciona de vermelho para os jambeiros, assim como novembro se presta a anunciar as frutas vindoiras.

Quanto mais o bordado assume o chão, desenrolando carpetes despreocupados com réguas, mais exaltam a prosperidade da safra.

Os jambeiros têm parte com meninos.

O seu espetaculoso tapete traduz um convite de flores, salivando as infâncias… avisando…

Preparem as bocarras menineiras... Vem jambo aí!

 



NOVELOS DE AREIA...

 

Qual semente voejante em redemoinhos e arremessada ao chão,

A cidade germinou em planície vermelha,

Despontando morosa, sob o lençol da terra,

E as casas foram se acomodando aos quarteirões vazios.

O lugarejo, como colcha de retalho, costurou-se lentamente...

Remansosa, a cidade pincelou-se de residências de madeira.

As únicas calçadas estavam deitadas na única praça de único busto.

Eram passeios geométricos de cimento e pedra, separados com ripas de madeira, emoldurados de Coroa de Cristo.

Ninguém se arriscava a mudar de aleia, pois os espinhos picavam.

Tempo em tempo as chuvas cavavam as ruas da cidade.

Os temporais retorciam as marquises do posto de gasolina,

Voando-as longe,

Enquanto os meninos amavam as enxurradas.

Éramos ribeirinhos,

Tínhamos um rio particular adiante da casa.

Rio que caia do céu e escorregava em nós...

Nossa infância embalou laços afetivos com a lama,

Brinquedos de águas cor de café com leite.

No cemitério gritava um ancho túmulo de madeira, guarnecido de balaústres.

Pedra fundamental: inaugurou o campo santo!

O morto chegou ali por obra de um açougueiro da cidade.

As máquinas Caterpilar davam retidão às ruas vermelhas,

Rasgavam a terra, nivelando avenidas largas, nossos parques infantis.

Um perfume saltava das raízes velhas,

Restos de mata das fazendas Formosa e Limeira.

Na beira das ruas amontoavam-se pequenos morros.

Inventamos brincar “guerra de torrões”.

Nossos brinquedos eram criados na hora,

Conforme acontecia a infância.

Um dia enfiaram imensos lápis de cor na avenida Campo Grande.

Depois pregaram bolas de vidro, chamando-os de postes.

Anoiteceu e descobrimos que os equipamentos esticavam o dia.

Cada lápis tinha um sol amarelo.

Aqueles homens fabricaram o dia dentro noite.

Para a nossa felicidade, nos tornamos notívagos,

Até que o chamado paternal fosse berrado do portão.

Amanhecia, o sol instigava um lençol de areia fina nas ruas.

Agosto enlouquecia os ventos, desenhando novelos de areia iguais tornados.

Os redemoinhos rodopiavam a metros,

Perpassando os nossos corpos como fantasmas,

Pinicavam a pele,

Sacudiam os varais e árvores,

Invadiam os quintais, traquinando tudo,

Os velhos diziam ser o saci buscando fumo.

Não sei bem.

Bem sei que a cidade era infinita em areias...

Onde desfilaram onças e sucuris

Que, agora, escondidas nas matas, olhavam a cidade,

Assistiam aos moradores com seus olhos de fogo.

Essa infância teve parte com a verdade e dou fé. 7.7. 2022

 

 

Letras de águas…


Palavras deságuam de mim aos borbotões

Então insano algum escrito…

Elas irrompem como águas,

Reivindicando cachoeiras para transbordo,

Necessitadas de acontecer,

Almejando poesia...

Palavras quais enxurradas,

Descomprometidas com obstáculos,

Descompromissadas com divisas.

Cresci tendo as orelhas treinadas para torto poeta,

Aprendi a amar os léxicos como crias lambidas,

Uso o verbo para desaguar esses líquidos poéticos,

Enquanto as frases me negam para Cristo...

O dia em que eu enlouquecer,

Terá sido a data mais importante para a poesia,

Pois enlouquecer de palavras 

É plenitude poética.

Sentimento poético descompromete razões,

São nacos de demência,

Loucuras letradas,

Funcionando as emoções...

Amo as palavras comprometidas com os loucos,

Fabricadas nos discursos de coretos.

Cativa-me os pregões dos feirantes,

Apalavra-me a conversa dos pedintes…

Enfeitiça-me a fala gorda dos bêbados...

Busco as palavras divinizadas pelas crianças,

Autoras inatas de fantasias.

Desamo palavra-porta,

Frases geladas do lugar comum.

Meu escrito não cabe em réguas,

É deslimite emocional,

Dança de lápis divagando devagar ou à pressa...

Medir a poesia como? 

Ela é líquida!



BUGRE PESCANTE O bugre Kadiweu amarrou a noite numa pedra. Esticou, esticou até o ponto de tarde. Assim podia abarrotar o cesto de peixes. Linha, tirava do horizonte, Anzol, tirava das cascas de camarão, Taquara, tirava das touceiras, A pesca acontecia como água. A natureza no Pantanal santifica tudo, São pedaços de Éden a cada pisada. Mais tarde o bugre amarrará a noite num lírio, Ao ponto de ocaso. "Assim poder pescar mais". É o que ele sussurra, mastigando o beiço, A voz dos bugres tem idioma no céu.




POESIAR

Um velho poeta contou-me que se alimentava pelos ouvidos
Eu teria sentenciado-o louco salvo as explicações
Contou que fazia poesia ao modo de
Fazer colchas de retalhos
Qualquer pessoa – mesmo muda – dava retalhos
Ele funcionava de ouvir e ver
Depois colocava aflição nas palavras
Assim ia costurando sucessivas colchas
Por isso as pessoas alimentavam suas oiças.
Bêbados, loucos, caipiras e crianças davam matéria prima de primeira qualidade.
Disse-me o velho poeta que poesiar está nesses costuramentos
Que ela desvem de inspiração
Pois que vem de ver e sentir
Inspiração é apelido equivocado que dão ao brincamento com palavras.
Falou-me o velho que poeta é feito de retalhos de pessoas.
Sua poesia é colcha em cozimento.
Poesia é o que os seus derredores oferecem
São tecidos gratuitos
Arranjados aqui e ali.
O segredo está em ver, ouvir e sangrar as palavras.
 

DOCE OCASO

Ontem o céu arrastou cocadas ao ocaso,

Sombreou-me com a imagem de minha mãe:

Doceira primorosa...

Nuvem doce, surgida ao ocaso,

quais seus nacos deliciosos ao ponto queimado.

Nacos vagantes, cheirando lembranças.

Eu recebia ordens para mexer o tacho

Sobre imenso fogão a lenha.

Raspava a colher de pau,

Desenhando geometrias gulosas

No fundo do cobre ardente.

O tacho ainda resiste,

Empoeirado, empoleirado, desusado pelos 88 anos de minha mãe,

Nada lembra seu calor

Intermediando o crepitar da lenha,

Transformando goiabas, mamões, leite, abóboras, coalhada, queijos...

Em doces inesquecíveis,

Quais as cocadas que hoje viajam ao céu.



 MARIMBONDOS NO MANDACARU

Eu me surpreendo com a natureza sempre. Parece que tudo é descoberto exatamente no momento EM que topo com a cena de vida. Desde criança admiro as casas de marimbondos, mas por mais que pareçam iguais, são muito diferentes na cor e nos modelos. É o caso dessa casa de marimbondo agarrada ao mandacaru. Os insetos tão bonitos ferroam quando se sentem ameaçados e a picada é como agulhada seguida de uma injetada de vinagre. Fui picado algumas vezes quando criança. Essa casa, feita escondida entre o côncavo do cacto, não apareceu do dia para a noite, foi construída lentamente. São milhares de vômitos. Os marimbondos passam o dia raspando galhos e madeira morta. Depois regurgitam a  fibra amolecida  no local onde pretendem construir a casa. Há muito esforço. Semelhante ao homem que faz casa de taipa. A modelagem dos favos e do invólucro do ninho é feita com as patas dianteiras e com as mandíbulas. Normalmente, a construção leva apenas alguns dias para ficar pronta. Muito, muito trabalho. Talvez por isso buscam locais tão protegidos. Aqui os espinhos apontam para todos os lados como agulhas aguardando espetar predadores. Não sei como consegui chegar tão perto. Creio que eles sentiram que eu não lhes faria mal. Desconheço o nome dessa espécie tão bonita. Trazem o corpo bicolor, combinando o amarelo limão com listas pretas em sentido horizontal e vertical. Muito lindos esses marimbondos. Há muitos anos um bugre me contou que eles ficam para fora para arejar o interior da casa com o movimentar das asas. Marimbondos não funcionam apenas para picar, mas ajudam muito a natureza. Exercem a polinização de diversas espécies de plantas e trabalham duro no controle biológico. Nunca destrua essas casinhas. Deixe-os em paz, pois em paz eles não fazem mal a ninguém. Assim como o homem. O índio guató me disse que todos os insetos considerados como praga têm uma vespa como predador natural. Eis que topando casualmente com essa casinha tão bela e perigosa, lembrei-me da minha infância. Interessante de tudo é que parece que nunca havia visto uma casa de marimbondo. Mas como disse Heráclito ao entrar no rio duas vezes, você não é o mesmo, nem o rio é o mesmo… esse é o devir… esse é o vir a ser…
 



ARAQUÃ

Ninguém desaparecia mais do que nós naqueles ermos
Lugar transbordante de brincamentos
Tudo funcionava para brinquedo
Tudo melhorava para menino voar
Árvores tinham de caixas de lápis de cor
Tão coloridas de pássaros
As folhas secas abrigavam mil vidas
Talvez só comparadas a bicharada correndo sobre elas
Envidecendo a selva
Os rios caudalosos nos deslizavam a gravetos secos
Vestíamos suas águas até a enseada,
Agarrávamos a ingazeira que sobraçava o espelho
Saltando para a terra firme.
Esse percurso era feito qual relógio doido
Sem parar
Sem cansar
Nosso Mississipi
Assim éramos Tom Sawyer
Tudo acabava ao martelado do araquã
Deus botou nele inventar meio dia
Certamente para ajudamento às mães de meninos sumidores
Estávamos atrasados para o banho e a boia
Havia uma escola nos esperando solenementes
 


FLORZINHAS VIVAS

Como a imensidão do belo tem síntese?

Como cabe tanta vida num pingo?

Beija-flores são flores voantes,

Beijando outras flores de beleza...

Vidinhas miúdas,

Graciosas,

Voejando cores,

Polinizando o amor.

Deus não criou os beija-flores.

Foi assim:

Num desses degradês de Deus,

Ele teve uma síncope de aurora boreal...

As cores saltaram da paleta

Num descuido do Criador-Artista...

Então as vidinhas aladas

Se divinizaram em matizes sarapintadas...

Ganharam o mundo,

Colorindo as florestas,

Respingando poesias...

Santificando os jardins…

Encantando poemas onde passaram…

Pássaros feitos em flor,

Florzinhas vivas,

Invisíveis visíveis pintalgados…

Praticam o ósculo de Deus…

Beijam… beijam… beijam…

Amam… amam… amam...

Tingem felicidade aos olhos mais tristes...

Não podiam ser diferentes

Sendo deslize da Arte Divina

 


BONITO 


As crianças faziam piruetas na ponte… tibum! 

Embrulhadas no rio, iguaizinhas jacarés,

Gastavam infância o dia inteiro... 

Contemplavam os ziguezigues sobrevoando a lâmina d'água. 

Os pezinhos ticavam o leito, só a pontinha, 

Assim eles dançavam nos líquidos da infância 

Assistidos pelos grossos cardumes. 

Gritos, risadas, urros…

Passavam horas exercitando fantasia, 

A felicidade é um rio bonito! 

Elas não se cansavam de saltar da velha ponte, 

Boiavam sobre as aningas, 

Mergulhavam de uma margem a outra,

 Plantavam bananeira... 

Suas mães assavam peixes catados à mão. 

Outras cozinhavam-nos, 

Preparando deliciosas iguarias. 

Às onze horas, engelhadas, deixavam as águas. 

Em segundos as barrigas se enchiam. 

- Cuidado, menino! Espera um pouco, 

Pular n’água com comida quente faz mal!

 Ô, mãe, deixa eu fazer bonito! 

O magote de crianças deitava na grama fria, 

Aguardando ordens para recomeçar a felicidade 

Outras trepavam nas árvores que sobraçavam o rio... 

Queriam pular dali mesmo 

No bonito rio da felicidade.

 ___________________

 Imagem: http://amabilices.com.br/balneario-municipal-de-bonito/

 


 

LAGARTAS VERDES


Tinta verde é privilégio de lagartas verdes.

Enverdeci anos nessa descoberta,

O verde vem de seus dedentros.

Não sei se elas desaparecem as folhas

Ou as folhas desaparecem elas,

Mas há conivência com árvores...

Lagartas verdes são brotinhos passeando

Num eterno mimetismo verde.

Lagarta verde tem cago verde...

São grãos verdes atapetando o chão verde.

Há uma máquina em seus fatos.

Elas escolhem as vergônteas novinhas,

Passeiam o dia verdejantemente comendo...

Ondeando o corpo sinuoso de gula,

Então a refeição lhes passa.

Rastejamento...

Escorjando...

Enpanzinando...

O cago é árduo.

O processo é contorcido.

Um pedaço do corpo sobe, o outro desce lentamente,

A boca come e o rabo descome...

O chão fica esperançado de verde.

São grãozinhos miúdos, secos e fornidos.

Na mão do artista,

Diluídos n’água,

Dão bela aquarela.

Basta pincelar verniz de vidro mole sobre a tela

E o verde se eterniza.

 



ELÁSTICO

As brincadeiras da minha infância 
Eram mais de ver e pegar que de pensar.
Pois que assim sempre me fui só de pensar quando encontrava um La Fontaine pelos adiantes.
As brincadeiras que falo por hora
Eram de brincar de qualquer coisa
Que desse para brincamento,
Brincar de correr atrás do vento,
Brincar de guerra de torrão de barro,
Brincar de voar no mato,
Brincar de correr de a cavalo...
Só quem possuía um quintal cheio de ermos e confins
Têm poderes para entender o Daktari que tínhamos.
Minha mãe alertava:
Não passe da cruz da Cidinha!
Mas, aqui para nós,
Esticávamos a cruz até a Pioneira
Às vezes o elástico dava no Uerê.
Adonde os índios poemavam
Uerê! Uerê!Uerê! Uerê!Uerê! Uerê!Uerê! Uerê!Uerê! Uerê!
Eu sabia que quanto mais estrada passasse por debaixo dos nossos pés
Mais poderia aparecer onça tocaiando.
O mais que vi além de tamanduás e seriemas
Foram obstáculos de sucuris.
A cabeça ficava numa margem da estrada,
A bunda ficava na outra,
O corpo ficava no meio da estrada.
Era só pular,
Elas nos desviam.
Quando o elástico dava sinal de descangotar
Riscávamos para casa.
"Que demora foi essa? Parece que estava no Rio Pardo!"
Respondo:
Não, mãe, eu não passei da cruz da Cidinha!
Ela não conseguia ver os épicos que trazíamos na memória.
Assim acreditávamos.



PEDRA ESCRITA

Mestre Vespasiano contou
Como erguiam as paredes de pedra de igreja antiga.
Muitas, guardadoras de segredos de geometria,
Perfeitavam que nem modo de feitas a tijolos.
Alguns mestres eram tão poéticos na composição
Que se demoravam dias atestando exatidão de pedras;
Era quase especialidade.
"O segredo está no encaixe sem sobras ou saliências", dizia.
Enquanto narrava as engenhosas técnicas,
Eu associava o seu mister à escrita.
O escritor cuidadoso tem de construtor cuidadoso.
Escreve paredemente, ao modo de lesma atrepando,
As palavras carecem rastejar solenemente desapressadas,
Necessitam de harmonia para magicar poesia.
Pedem encaixe e exatidão.
Palavra deslocada é igualmente pedra deformada.
Promove protuberâncias,
Deixa folgas,
Gera equívocos.
Parede de pedra troncha é poesia de palavras tronchas.
Todos os rebocos serão insuficientes para ocultar suas imperfeições.

SEU APARÍCIO

Para o Seu Aparício nem tudo carecia nome batismal
Importava o nome que lhe desse na telha,
Ou melhor, no cocoruto.
De dizer que uma miríade de insetos chiava, dizia:
- Esse magote de bicho fica aí aos zimbolé zuano os ouvido da gente
Do perambular por sua casa, conheci seu dicionário:
...
- Esse menino, pegue aquilo acolá e mi dê
- Meu bichim, venha cá
- Vô mi adeitar um poco
- Dona minina, o que a sinhora quer?
O que mercê qué?
Sou seu Aparício, seu criado!
...
- Tô cuma dô isquisita no meu estambo
Miã cedo vô aplantá um feijãozim di corda
- Tô cuma agonia nas tripa, parece que tem um sino bateno
- Uma veizi eu peguei téti quandi pisei um prego véi inferrujado
- Alumeia aqui pra mim, meu fii
- Ais veis eu sinto umas facada aqui no pé da barriga, uma dô fina
- Asmanheci com os espinhaço doendo que só
Intonci qué dizé que u minino adueceu?
- Fulano morreu di cançu
- A meu saber ela não tá em casa
- Parece que levei uma paulada nos quarto
- Não põe muito sar na cumida, viu!
- Tem que ponhá juízo na cabeça dessas minina.
...
Os filhos e netos rezavam a cartilha do Seu Aparício
(Inté inovavam)
- Tudo bem, coisinha?
- Seu coisinha, o qui o sinhô qué?
- Tira esse breguesso daí!
...
Seu Aparício conhecia a voz do mundo por experiência
Não por ciência.
Dizia:
- O jegue gemia
- O gato chorava
- A galinha gritava
o passarinho martelava
- O sapo piava
...
Olhava para o céu e dizia:
- O céu tá talhado, é chão molhado!
...
Qualquer coisa era coisa
Quando faltava verbo, coisar resolvia.
Se Aparício tinha partes com Camões
Ou com o galegos português?



ESTRADA BOIADEIRA


A cidade se divide por uma serpente preta

Vez em quando engole uma criança.

Quando ia-se a Campo Grande,

Um risco de estrada antiga acompanhava a viagem,

Margeando a serpente de piche.

O contorno datava das minas de Cuiabá

Dava dó do caminho órfão

Sem pedras,

Sem tropas,

Sem viajantes…

Felizmente os bichos a honravam...

Talvez solidários a seu abandono.

Nem andarilhos viajavam.

Às vezes desaparecia de mato

Ressurgindo adiante

Igual que contorno de lápis,

Depois se desprezava a rio...

Mas possuía uma curiosa característica:

Impunha-se,

Mesmo escondida de árvores, resistia,

Parecia dizer:

“Sou pioneira!”

Enquanto meu corpo viajava de carro

Meus olhos viajavam de Boiadeira,

Percorrendo-a

Num verdadeiro esconde-esconde.

Por que minha curiosidade?

Contou meu pai que era a antiga Estrada Boiadeira,

Trajeto dos desbravadores do Mato Grosso no século XVIII,

Caminho das comitivas de peões de boiadeiros...

As telas de Hercules Florence registraram o episódio,

Caminho de gado viajado a berrante para São Paulo e Paraná, Maracajú, Aquidauana, Rio Brilhante, Pedro Juan...

Trajeto de carros-de-boi lesmando pessoas e víveres

Rumo a Campo Grande, Cuiabá, Corumbá...

Nela viajou a Carmelita

Do Paraguai ao Porto XV...

O fiapo tinha modos de desprezo

Por isso me fascinava.

Sentia pena de seu abandono.

Estradas boiadeiras são como veias no corpo do Mato Grosso do Sul,

São bondosas,

Saudosistas,

Nunca mataram animais silvestres.

Muitas voltaram a ser veredas,

Noutras despejaram piche.

E assim sobrevive a estrada Boiadeira…

Risco solitário a lápis...

Exemplo de resiliência

Faz sozinha a sua história...

Creio que muitas pessoas têm a alma dessas estradas...

 

 
 
PANAPANÁ (1990)
 
Minhas irmãs furtavam pó de arroz da Fátima,
(Irmã mais velha com penteadeira sortida!)
O cosmético era cor de pele.
Muito adentro, surgiu produto caro: "sombra para olhos!"
(Objeto femininamente caro!)
Um dia tornei-me inventor desse produto...
Minha especialidade era pó cintilante azul,
Descobri-o num panapaná,
Igual que Mestrel descobriu-se do velcro.
Acasualmente...
Foi-se assim :
Passeava-me na mata de mãos dadas com a infância...
 De repente o mundo se exibiu de azul...
Cintilações de Céu...
Um panapaná em estado de procriação descortinou-se,
Azuis voejavam o todo,
Abraçavam o jequitibá,
O chão atapetado dasazuis...
Recolhi porção na latinha da curiosidade,
Deixei acontecer o meu silêncio de azul,
Analisei... azulizei...
Minha mão cintilantou-se em anil faiscante,
Eurekazulei-me de emoção...
Descobri sombrazul!!!
Encantado, disparei num túnel de capivaras...
Corri até minhas irmãs
Que azularam os olhos de felicidade...
Todas as meninas do lugar se impressionaram.
Enchi a lata com asas de borboletas mortas do chão,
Pilei até virar pó...
Nunca vi cor tão atraente:
Bela a Césio...
Um cintilante de comportamento pastoso...
Usava para dar poesia aos meus desenhos,
Depois envernizava com cola de vidro mole,
Colhida aos quilos nas aroeiras.
Minhas irmãs seriam famosas precursoras de sombra azul.
(Juro que doaria a invenção para elas!)
Teriam se projetado internacionalmente...
 "Inventoras de sombra azul cintilante para olhos"!
A perfumaria internacional compraria a patente ...
Seriam meninas milionárias.
Pobrezinhas!
Preferiram compartilhar o azul com a infância
E toda menina da cidade se exibiu de azul
Graças ao panapaná das matas do Rio Guaçu.
 
 


OS OFAIÉS-XAVANTES

A praça Jan inchava de bugres nos finais de semana
Tinha gente velha e nova
Até criança
Atravessavam o dia versejando língua estranha
Dialeto magnífico
Tenho que aquelas palavras são ensinadas pela mata
Pois que tinham sons de bichos
De ventos,
De árvores
De rios...
Certa vez eu comia um doce de abóbora
(Daqueles em formato de coração)
Um bugrezinho aproximou-se e disse:
Doce comê
Estranhei a macarronice verbal e dei-lhe a iguaria.
Ele falou mais gestos que palavras
Eu tinha curiosidades igual aos Villas Boas
Curiosidade de saber indiologias
Mas os mais velhos eram arredios
Não gostavam de conversar com gente branca
Gente não índia
Eu sempre dava um jeito de aproximar-me para ouvir aqueles sons feitos de mato,
Era uma fala verde
Silvestre
Parecia palavra-bicho
Conversa de índio traz as árvores para perto
E os céus nublam de pássaros
Às vezes o som de uma vogal sona saída de língua pregada na boca
Outrora parece vinda dos canglores da garganta
Sons engasgados
Por vezes sopra um gutural grave, rápido
Talvez vindo nos mandarins.
A praça escutava índio o dia inteiro.
Quando a tarde dava cores de desaparecer
Eles também desapareciam
Na estrada do Sapé
Comiam mandioca com caititu 
E abóbora com coelho do mato. 

ORIGEM DO VERDE

Tinta verde de verdade é fabrico de lagartas
Depois de anos de olhações
Descobri o engenho:
Vem dos interstícios das lagartas verdes
Não sei se elas desaparecem as árvores em si
Ou as árvores lhes desaparecem 
Mas é fácil encontrar seus concentrados
São grãos escorridos de chão
Sem lonjura do tronco
Há uma máquina dentro delas
O fabricamento se dá assim:
Por princípio elas escolhem as folhas
(Tem que ser bem novinhas)
Bem verdinhas
Depois passeiam a refeição dentro do corpo
Carece percorrimento de árvores
Rastejamento
Trabalho árduo
A caminhada tem que ser bem contorcida
Um pedaço do corpo sobe
Outro desce
Assim ocorre o transformamento de folha em tintura
Quando estufam de cheias, descomem tudo
A tinta sai por um buraquinho no final da lagarta
(Não precisa apertar como pasta de dente)
Eles caem naturalmente
São grãozinhos secos e fornidos
(Miniatura do grão dos cabritos)
Basta misturá-los na água
Dá bela aquarela
Beleza maior é pincelar verniz de vidro mole
Reluz mais que o sol



SOSSEGO

 

Ela caminhava lenta

Era lesmática e desprovida de fala

Conhecida por todos como "Sossego"

Preta azeviche

Gorda roliça

Cabelo avolumados

Dedos das mãos e pés grossos como linguiças

(Tais quais os pretos de Portinari)

Lábios grossos em destaque

Nariz amplo

Bunda ao estilo da tribo Khoisa

Pernas batatudas

Das baianas subideiras da ladeira do Pelô.

Mostrava-se abortada de reflexos.

Olhava como não enxergasse

Havia desprezo em seu olhar

(Serenidade estranha).

Sua lentidão arrastava uma sensação irritante;

Morava num pequeno casebre de madeira.

Alguns meninos faziam-lhe troça,

Atiçados por sua indiferença.

Talvez quisessem ouvir a voz que ela transformou em silêncio,

Ou queriam ouvir xingamentos.

Ela nunca revidou,

Não fazia mal a uma formiga

Por isso irritasse a tantos;

Era dessas que nascem com os parafusos mentais afrouxados.

Não fosse pelo exotismo

Seria invisível,

Embora enxergada apenas para pilhérias.

Sossego morreu igual as lesmas.

Sua vida escorreu a visgo numa cama tisnada de fuligem;

Partiu como nada parte;

Guardaram-na a sete palmos de sossego eterno.

Quase sem testemunhas.

Sossegou-se...


ESTADO DE MATA

Quando estive o menino que agora não sou apenas por fora
Tinha propensão às matas.
O magnetismo silvestre sugavame ao modo matame
Embrenhando-me em seus desígnios.
Tinha de guia um gato maracajá que nunca descompareceu dos meus subterrâneos,
Portando meu senso de direção felino não tinha apegos geográficos.
A experiência do silêncio interrompido unicamente pelo arroubo de algum animal alçava-me a estado de bicho.
Os eflúvios silvestres, o murmúrio dos rios...
Tudo era a minha própria extensão.
É indescritível o encantamento.
Mimetismo quase.
As árvores e os bichos fossem a minha pele.
Havia inexistência de medo
Havia supremacia de coragem despercebida.
Se real a tese espírita, fui bugre.
Fascinava-me o silêncio inquietante
Fascinavam-me as frutas, as flores estranhas,
E os cheiros inéditos.
As melhores floriculturas desconheciam os buquês exóticos.
A mata tem de realezas.
As seriemas bicando carrapatos
Os coelhos saltitantes...
E a onça que saltou da ingazeira e vestiu-se das águas do rio Pardo?
O coração desse bugre-menino saltou pela boca
Não de medo
Mas de encanto excelso.
O ninho de serpentes recém-nascidas num toco podre de jequitibá.
Lembravam um bolo de minhocas.
Pareciam adultas pela destreza que serpenteavam o corpo;
Ensaiavam botes certeiros.
As linguinhas vermelhinhas tremelicando, aprendendo a cheirar e sentir o perigo,
Coisa de instinto.
Corri riscos quando afaguei os filhotes de gato do mato sibilando iguais às onças.
Creio ser um deles que entrou em meus ermos inespirituais.
Os guinchos dos macacos ensurdeciam...
Mato explode barulhos inóspitos como alarme.
Em estado de mata eu confundia meu habitat;
Muitas vezes não identificava quem viajava em mim...
Desaparecia-me a urbanidade.
Logo surgia o estirão arenoso, 
Depois as cercas de aroeira.
Sabia a estrada do Uerê.
Era seguir a linha pintada com as cores do por do céu
Reaparecia,distante, a urbanidade 
Ao compasso dos passos ligeiros
Escutava o chamado maternal que não precisava de voz.


INSTIGAÇÃO À POESIA

O tiê-sangue trila canção magnífica na grimpa do pequizeiro
A lesma babeja a calçada
O beija-flor inquieta as flores
A formiga teimosa carrega o louva-deus
O mandarová sofrega no tronco da perobeira
A joaninha mata a sede na bromélia
Abelhinhas miúdas perfumam o jardim
Um panapaná de borboletas azulece o cenário
O cachorro d'água cavouca a terra
Meu Deus!
Ficam essas coisinhas miúdas atiçando poesia cá nessa cabeça de vento

OCASO

O dia envelhece
A chalana preguiçosa risca o Paraguai,
Desregulando os seus contornos;
Lontras e ariranhas vestem seus furos na barranca;
As águas douradas rolam em curso largo,
Pintadas pelo por do céu.
Logo, os reflexos de púrpura dissipam a tarde;
Os jaburús foram os últimos a encher as árvores,
Já não se vê o sulco da embarcação;
A noite tem espessura de piche
E a água foi aplainada pelo silêncio.
É hora dos jacarés acenderem seus olhos na lâmina do rio;
Os vagalumes infestam de lâmpadas o esmo negro.
Há um perfumamento de lírio borrifando a noite,
Amanhã tudo amanhece Pantanal.

MÚSICA DA MATA

A orquestra da mata tem arranjos de bichos, árvores, rios e ventos
Ventania em casca seca de caramujo faz assobiamento de saci
Murmúrio da água é graveto seco de ingazeira riscando o rio
Matraca desabalada é porco-do-mato batendo os seus marfins
Tum tum tum zabumbando é composição de rebojo, pedras e correnteza em borbotões
Percussão misteriosa é cápsula pesada de jatobá despencando
Ecos finos e alternados é trilo de anta reverberando
Exercícios de vozes é algazarra de maritacas, araras e periquitos adejando
Harmonia de música da mata está no acontecer
O tiê-sangue bem que devesse reger essa orquestra
É pássaro fascinante e tem semelhança a cantor
Há infinitos sons na mata
É que agora estou desses 



POETA DA IMAGEM

Pintor é poeta da imagem
E sua poesia faz ninho no pincel
Pintar bonito carece aparecimento de infância na pintura
Quanto mais criança dentro do pintor
Mais poesia se esparrama na tela
Se as garças estão verdes
É porque algum menino apapagaiou-a
Se os papagaios estão brancos
É que deram a andar com garças
O tuiuiú não mergulhou a cabeça no rio Paraguai
Portanto ainda não está preta
Seu pescoço não tem anel vermelho
Pois derramaram toda a tinta no ocaso
As capivaras estão lilazes
De mergulhar sob os lírios
O rio escorre de espelho
É que o pintor prateou o céu
Quem disser que houve erramento artístico
Nasceu descolorido de poesia
Sofre de desmetaforaxia.

 

BRINCAMENTOS DE FRIO 

 
Fascinava-me a cidade gelada. 

Dormir acasulado em camadas de cobertores é lembrança que me habita aquecida. 

Amanhecíamos lesmáticos, acordando ao modo bicho-preguiça. 

Entrar no tempo gelado era difícil. 

Disputávamos riscos de sol, 

Mas nem tudo era monótono. 

 

Encerrado o café com pão caseiro, 

Caíamos nos brincamentos de frio, cumprindo infância. 

Eram dez brincamentos: 

1) bater violentamente um cipó no varal de arame, para ver a capa de gelo se desgrudar... 

 


2) Amassar roupas madrugadas no varal para auferir sons de vidro trincando... 

 
3) furar a lâmina de gelo que se formava nos baldes de roupas de molho no quintal... 

 
4) desenhar com o dedo sobre a poeira de gelo nos vidros dos carros... 

 
5) grudar a língua em latarias (carecia caneca de água morna para a língua desgrudar)... 

 
6) colher lágrimas de sereno congeladas na ponta das flores... 

 


7) quebrar os espinhos de gelo formados na grama... 

 
8) soltar ar quente da boca para fazer nevoeiros... 

 
9) unhar lâminas de gelo, acumulada sobre metais, para sentir a massa entre as unhas... 

10) apanhar flores congeladas para descobrir quais esculturas haviam se moldado... 


Minha infância teve muitas estações 

Seus acordes inda Debussyam músicas em mi. 

Auscuto orquestras crepitando lenha de fogão...    

Éramos tempos traquinos  

Inquietos 

Bastava o sol ralar as teias, acordávamos em pleno exercício de infância... 


Naquele tempo, só o tempo era frio, 

Nossos despropósitos 

Aqueciam tudo com fósforos riscados na infância. 

Desempenhávamos mestrado em astúcias 

Com fortes tendências a doutorados em noites com febre... 

Resultado da dezena de brincamentos de frio.


 

SUSTO NA MATA

O jatobazeiro seco tombou na mata do rio Pardo.
Gravetos estalaram,
Galhos rangeram,
Cipós se despedaçaram,
Houve amedrontamento na plateia.
Os pássaros adejaram, 
Soltando trilos desesperados.
Os queixadas eriçaram as cerdas e estouraram.
Grunhem e matraqueiam, amedrontados, no túnel de arbusto
Andam, trotam e saltam tocos marginando o pântano
Batem o queixo e os dentes, enlouquecidos.
O silêncio volta.
A mata tem desses sustos.

POTENGIPARANAPARDO

Desse topo de rocha e ferro contemplo o rio Potengi,
Meu pensamento se inunda com as águas dos rios Pardo e Paraná,
Rios d'eu-menino. 
É belo o rio potiguar, mas descomparado aos que molharam a minha infância...
Não bastasse essas recordações serpenteando, vejo, ribeirinho, o trem, lento, sinuoso...
Lembrando as sucuris do Pantanal.
No outro lado se espraia o mangue,
A paisagem verde aquosa me transporta aos varjões de Bataguassu.
Nítida imagem do Pantanal sul-matogrossense.
Não bastasse o devaneio, descortina a ponte da Redinha onde o Potengi miscigena-se em atlântico...
Mais uma vez as recordações trilam forte.
Emerge o rio Pardo em confluência com o rio Paraná, sob a Ponte Maurício Joppert.
Não bastasse, singra a barquinha vagarosa no rio dos potiguares, cópia fiel das chalanas no rio Paraguai.
Tudo quer ser igual, mas não sinto o cheiro do pequi e o gosto da goivira.
Faltam coisas invisíveis...
Os cachorros d'água e seu olhar de ternura.
O velho Paraguai com seu bigode de arame desenhando histórias de bichos.
"Seu Benedito Preto" e o inseparável cachimbo, bafejante de causos.
O círculo de tererê gelado na guampa de boi.
Verdade, as belezas germinadas na infância são especiais.


GOIVIRAL
  • Íamos no velho caminhão "Stúdio Back" do meu pai.
  • Minha mãe pegava a manivela na boleia e metia no focinho do bicho,
  • Rodopiava até o motor roncar.
  • Após algumas aceleradas pinotávamos na carroceria com baldes, latas vazias de "Querosene Jacaré", bacias e vizinhos.
  • Para trás ficavam cúmulus-nimbos de poeira vermelha tingindo a mata.
  • Ao chegarmos ao paraíso goiviral, 
  • Sonho de crianças e passarinhos, 
  • Nos empanturrávamos.
  • Depois, abastecíamos os vasilhames.
  • "Tomem cuidado com cobra!"
  • Era a voz paterna.
  • Voz sentenciante.
  • Abastecidos, viajávamos de volta.
  • Uma vez precisou-se parar o caminhão
  • Alguém despejaria esterco na mata.
  • Tenho muitas lembranças desses episódios silvestres.
  • Catar goiviras era colher felicidade.
  • Objeto de desejo dos nativos.
MECANOFICINOGRAFOTECNICA

  • Há palavras de consertar e desconsertar.
  • Com minhas ferramentas de ossos,
  • Reformo, restauro, desmonto, derreto, crio e recrio;
  • É profissão mais brincadeira que existe.
  • Na mecanoficinografotécnica
  • Afrouxo e aperto parafusos de palavras.
  • Depende do meu estado de desconserto
  • (Coisa de gentes desparafusada).
  • Encanta-me o ranger metálico
  • Orquestrando felicidade disfarçada de trabalho.
  • Já aprimorei centenas de palavras;
  • "Criançamor" é uma delas!
  • Bem soldada, não poderão mudá-la.
  • A palavra é toda de besouro
  • (Significa ter valor incalculável).
  • Desses dias, desmontei as palavras
  • Ódio, maldade e preconceito
  • E das letras sobrantes
  • Montei adjetivos, sinônimos e verbos
  • Que despertam bondade.
  • Muitas vezes em meio às letras-sucatas,
  • Há enganchamentos sem conta
  • Umas grudam-se às outras.
  • Desses dias, encontrei um monturo desses.
  • Puxei a letra A veio "amoração".
  • Estava tudo grudado.
  • Creio ser mistura de "amor" com "oração",
  • Ou "amor" com "ação".
  • Não pensei nem, soldei.
  • Ontem, inventei a palavra jatobacidade.
  • É como me sinto quando aprecio o fruto do jatobazeiro.
  • Embora hoje estou pequiseiro.
  • (Para Fídias)
  •  
  • Todos nós tivemos o nosso lado Tom Sawyer.
  • Durante a minha infância
  • Possuía uma lata grande de leite Ninho.
  • Dentro ficavam encarcerados:
  • Uma coleção de 'cards' da Seleção Brasileira de Futebol,
  • A cara de um boneco quebrado,
  • Um pedaço de vidro de fundo de garrafa azul royal
  • (servia para olhar o sol)
  • Uma coleção de calendários,
  • Tampinhas de garrafas com figuras de Walt Disney
  • (uma promoção da Coca Cola).
  • Tinha uma moeda antiga,
  • Tudo muito bem guardado.
  • Só eu sabia o local do esconderijo.
  • Era o meu tesouro.
AVIÕES
   
·         Quando eu era ainda mais criança
·         Pensava que os aviões pousavam nas flores,
·         Que elas se abriam para eles aterrissarem.
·         Quando via horizontes desaparecendo pássaros de lata,
·         Dizia para meus descompassos:
·         - Lá está a flor se abrindo para os aviões se aquietarem do cansaço.
·         De contar isso para uma professora
·         Recebi desprezo.
·         Ela ignorou em mim fantasias que só pertencem à infância.
·         Estava desparafusada de ter o marido na penitenciária.

RECEITA PARA POESIA DE PÁSSAROS
  
(É fácil poesia de pássaros)
Carece de rio murmurante em túnel de árvores
Pés de goiviras bem madurinhas
Cheirando a tarde silvestre,
Pedras ásperas roladas de rio para afiamento de bicos
Poesia aparece aos poucos
Ao modo de pássaros adejando cá e lá
Bicando frutos

LIQUIDEZ

Vivo a desmanchar as palavras e pô-las em estado de poesia
O vento ajuda a compô-las quando vem forte do meio das árvores
Algumas vezes as matas se desmancham para se igualar às minhocas
A poesia se completa no ocaso quando as cigarras abortam o canto para ouvir a sinfonia das rãs 
Os ziguezigues riscam o  rio e abrem a cortina
O Pantanal desaparece nos subúrbios da noite
O índio guató caminha sobre os caroços da água
Caroços acesos ao modo de tapetes de jacarés
É o espetáculo começando
Espetáculo de letras e canções anfíbias.

GAUDI, O SANTO TRANSGRESSOR

  • Igual a alguns poetas que transgridem as normas da gramática e constroem escritos excepcionais, Gaudi foi um desses desertores e produziu uma arquitetura ousada e surpreendente.
  •  
  • Suas obras são esculturas instigantes que parecem saídas de um naco insignificante de argila e transformado em edificações inacreditáveis. Não há como vê-las sem contemplação.
  •  
  • As cores, formas e os materiais... tudo nos convida a perquirir cada detalhe.
  •  
  • Como não bastasse a excepcionalidade do Palácio Guell – sua primeira obra – ele produziu móveis singulares. Há um tocador que parece bicho estranho. Cadeiras lembram animais em movimento (creio ser tênue a linha que separa pintura, arquitetura, literatura, engenharia, anatomia - se é que ela existe).
  •  
  • Suas inconfundíveis chaminés transmitem alegria e infância. As torres percorrem os telhados, oferecendo um aspecto similar ao de um pequeno bosque de cipestres.
  •  
  • Esse palácio nos reporta a uma escultura surrealista. Não há cantos, há curvas. Há côncavos e convexos.
  •  
  • A leveza do formato orgânico dos metais desafia o entendimento.
  •  
  • Ele conseguiu levar luz natural a ambientes nunca antes conseguido pelos mais respeitáveis engenheiros.
  •  
  • Criou nesse monumento espaços diáfanos, que enganam os sentidos. Até um firmamento se faz presente.
  •  
  • A singularidade de tudo o que se vê não ofusca a presença da natureza, denotando o quanto ele a valorizava.
  •  
  • Não é de se estranhar que durante a sua construção a imprensa divulgou-a de forma incomum.
  •  
  • Os ziguezagues do Colégio Teresiano. Alguém viu algo igual? Seus belíssimos arcos parabólicos. Foi ali que ao ser lembrado para gastar menos, respondeu ao padre que o encomendou: "Com todo respeito, padre Enric, mas o senhor entende de missas, eu entendo de fazer prédios".
  •  
  • A Casa Calvet, ou a casa da fantasia, a mais convencional de suas obras. Suas famosas cruzes, as belas esculturas no telhado. Os móveis, iguais aos seus edifícios, são a expressão de um equilibrado jogo harmônico entre sobriedade e barroquismo.
  •  
  • A Cripta da Colônia Guell é pura genialidade e uma de suas obras mestras. Seus arcos parabólicos.
  •  
  • A aparência externa, dinossáurica, às vezes lembrando um animal estranho, contradiz o seu interior. Nota-se quão cuidadoso foi esse gênio com a pressão sobre os pilares em conformidade com as escalas.
  •  
  • Essa obra é um hino, uma poesia disfarçada de arquitetura. Cada coluna sustenta a composição de uma árvore. Sua modernidade incomoda.
  •  
  • Aliás, suas obras são assim: depende de onde se olha se vê o dórico e ao mesmo tempo o gótico, o neogótico, o árabe, o persa, o ultramoderno... logo se volta ao medieval como se rendesse homenagem ao passado glorioso da Catalunha. Há cuidado em prestar culto ao nacionalismo e a religiosidade.
  •  
  • A Casa Bellesguard é um castelo medieval em miniatura. Sua magnífica porta e a influência do neogótico em suas janelas causam admiração.
  •  
  • A fachada recorda a Idade Media.
  •  
  • Nessa obra de arte, Gaudi teve o cuidado de respeitar as      ruínas da casa de campo do último rei de Aragón. A brancura interior, a luz vazada de coloridos vitrais, em harmonia com azulejos coloridos contrastam com as pedras escuras que revestem as paredes externas.
  •  
  • O incrível Parque Guell de pura arquitetura orgânica é simplesmente um encanto escultural.
  •  
  • O banco sinuoso e contínuo de mosaico com diferentes fragmentos cerâmicos lembra as gigantescas sucuris pantaneiras. Teria ele pensado em grupos de reuniões a céu aberto? São fascinantes os motivos ornamentais que serpenteiam ao longo de seu corpo.
  •  
  • Essa obra revela um artista com uma extraordinária intuição para a forma e a cor: verdadeiro escultor.
  •  
  • Esse inigualável conjunto arquitetônico é um estranho corpo de pedra, cimento, ferro, azulejos e ladrilhos espraiados engenhosamente por um terreno acidentado, surpreendendo a cada centímetro.
  •  
  • As casas parecem saídas dos contos de fadas. Suas pedras sempre em tom ocre com telhados revestidos de azulejos multicoloridos transmitem felicidade aos céus.
  •  
  • O dragão com escamas a base de azulejos multicolores faz-se de guarda, mas encanta mais que assusta. Sua figura representa Pithon, guardiã das águas subterrâneas.
  •  
  • Num dado momento um pórtico com colunas de estilo dórico se levanta como um imponente templo grego: uma reverência a Guell, admirador da arte antiga e seu mecenas.
  •  
  • As colunas lembram palmeiras. O belo anfiteatro. Suas cavernas com ventilação perfeita. Na aridez do terreno houve o cuidado de canalizar as águas da chuva para reaproveitá-las, combinando arte com funcionalidade.
  •  
  • A Casa Batló, construída no ponto culminante de sua carreira é pura profusão e riqueza. Chama a atenção as poderosas colunas parecidas com as patas de um elefante. O telhado recorda a espinha dorsal de um dinossauro.
  •  
  • Os balcões retorcidos parecem máscaras gigantes. A casa tem pele, é de peixe!
  •  
  • Os cantos e as formas que, pela arquitetura convencional seriam quadradas, desaparecem, se ondulam oferecendo o mesmo aspecto de pele escorregadia de uma serpente aquática.
  •  
  • Os muros externos são como pele, suaves e moldáveis. Esse sonho de naturalismo e flexibilidade se estende também no seu interior.
  •  
  • Nenhum outro edifício de Gaudi mostra tanta modernidade. Sua arquitetura vanguardista é das mais chocantes. A construção nos leva ao mundo da fantasia, assim como a Casa Calvet.
  •  
  • O prédio parece mole, algo feito de barro recém-modelado como as mãos de oleiros alisando seus potes.
  •  
  • Tudo é curvo, roliço, arredondado. Até o teto. A casa nos transmite o quadro "A Persistência da Memória", de Dali, com seus relógios derretidos. A casa também parece se derreter.
  •  
  • Balcões semelhantes a gotas de mel... quem já viu isso?
  • A Casa Batló é verdadeira casinha de alfinin. Nada lembra as pedras duras, frias que modelam o seu corpo arquitetônico.
  •  
  • Na sala onde se encontra a lareira, tudo parece rechonchudo, macio, ondulado.
  •  
  • A Casa Milá, apelidada de 'a pedreira' provocou estupefação nos contemporâneos de Gaudi, sendo incompreendida durante muito tempo.
  •  
  • Não faltou quem fizesse caricaturas, paródias e deboches, desacreditando em cada metro que se erguia… Estariam assustados?
  •  
  • Mas com certeza tanta ironia não era mais que uma prova de fascinação que ela exerceu sobre seus contemporâneos.
  • Essa construção constitui uma síntese de todos os elementos que definem a época tardia do estilo gaudiano.
  •  
  • A casa é paisagem em movimento. Sua fachada é obra primorosa… fantástica.
  •  
  • Os numerosos ventiladores e chaminés configuram uma estranha paisagem de esculturas surrealistas, cujas formas se repetirão muito mas tarde na história da escultura.
  •  
  • Este atrativo residia desgraçadamente em detalhes externos, duvidando por completo que Gaudi havia baseado em reflexões práticas. Havia uma antecipação do futuro, como o prelúdio da garagem subterrânea dos porões.
  •  
  • Suas obras são marcadas por inúmeros chaminés: características puramente gaudiana.
  •  
  • A Igreja da Sagrada família, de inspiração gótica, parece saída dos contos fantásticos. Não há nada que se possa comparar em toda a história da arte.
  •  
  • Quando falamos de um gênio como esse, o mais comum é apontarmos uma obra de culminação. Mas em Gaudi isto é impossível, pois com a Sagrada Família, sua obra mestra, ele ocupou toda a sua vida.
  •  
  • Quando compunha se encantava com a própria obra. Era tanto que não admitia vê-la lenta ou parada. Durante a primeira Guerra Mundial ia de porta em porta pedindo donativos para que os trabalhos não parassem, mas infelizmente só chegou a concluir uma torre.
  •  
  • Por falar nelas, lembram as mitras episcopais.
  •  
  • A Igreja da Sagrada Família é uma oração de pedra. Lugar onde as rochas exalam Deus.
  •  
  • As doze torres que coroam a fachada fazem referência a toda a cristandade, representadas através dos doze apóstolos.
  •  
  • Gaudi tinha repugnância pela monocromia. Dizia que a natureza é multicolorida e desconforme, portanto sua obra seria sempre cheia de vida e de formas diversas.
  •  
  • Outro detalhe também interessante e que o faz poeta da arquitetura: ele gostava de introduzir em suas obras letras e palavras sob forma de anagramas.
  •  
  • É impossível encontrar em suas obras algum elemento igual.
  • A escultura de um caracol, uma tartaruga serve de base a uma coluna situada ao lado do portal do amor, ao lado aparecem animais domésticos.
  •  
  • Às vezes até nós mesmos não entendemos como alguns de seus edifícios se sustentam em pé. Algumas obras refletem frágil aspecto, mas se caracterizam por assombrosa firmeza.
  •  
  • Tudo é permeado por mosaicos, ladrilhos, cristais, azulejos, madeira, ferro, pedra, vidro, fragmentos de vidros, vitrais, cerâmicas... dominava o ladrilho como nunca.
  •  
  • Gaudi antecipou as técnicas de colagem dadaísta, os métodos cubistas de Picasso e Miró, e as próprias pinturas de Miró.
  •  
  • As instituições públicas de sua época o ignoraram, mas ele teve sorte com os canais privados, assim como o industrial Guell, seu maior fã e mecenas.
  •  
  • O conjunto de sua obra revela ousadia e criatividade insuperável.
  •  
  • Sua abnegação, sua religiosidade o tornam santo, tal qual a santidade de sua arquitetura.
O TEMPO

·         Dia desses eu pensava sobre o tempo. Parece que estamos vivendo em função dele, e não das coisas importantes da vida. Não temos tempo para pararmos numa loja e olharmos as prateleiras, pois precisamos chegar correndo ao trabalho.
·         Quando retornamos do trabalho - à tardinha - não podemos novamente olhar as prateleiras, pois precisamos chegar correndo em casa.
·         No final de semana não podemos ir à praia, pois temos que concluir alguns afazeres domésticos que ficaram pendentes... e assim estamos sempre correndo, preocupados com o tempo.
·         Pior de tudo: nem sempre concluímos o que estamos fazendo para nós. Tudo o que é dos outros damos conta, mas o que é nosso deixamos para depois, sempre atropelado pelo tempo.
·         Parecemos o coelho da história de "Alice no país das maravilhas". O bichinho vivia sempre correndo e olhando para o relógio, sempre apressado, dizendo: "estou atrasado", "estou com pressa". E fazia tudo de forma atropelada.
·         Como não bastasse, Alice se depara com um gato trepado numa árvore. Seu corpo aparece e desaparece como mágica. Às vezes permanece apenas o seu sorriso,  exatamente como a meia lua, outrora fica a cauda, como se fosse uma cobra.
·         Logo, Alice lhe indaga:
·         - "essa estrada vai para onde?"
·         O gato responde com outra pergunta:
·         - "para onde você quer ir?"
·         Ela replica:
·         - "Não sei para onde quero ir, pois estou meio perdida".
·         Ouvindo aquela resposta meio louca, o gato sentencia:
·         - "Para aqueles que não sabem para onde ir, qualquer estrada serve".
·         Parece que somos um pouco esse coelho. Parece que acabamos de encontrar um gato que também nos disse as palavras acima. Quando as coisas são para nós, não sabemos para onde ir. Não sabemos que estrada pegar. E essas estradas são tão simples.
·         Que tal pararmos, irmos à praia, sentirmos a areia e as ondas do mar?
·         Que tal pegarmos uma estrada de terra, a pé ou de bicicleta, paramos naquela ponte, escutarmos o barulho do rio, colhermos flores silvestres...
·         Que tal pularmos naquele rio que nos parece tão delicioso?
·         Que tal visitarmos aquele tio idoso que há tempo não o vimos (ele pode não estar lá na semana que vem).
·         Que tal plantarmos aquele jardim que todo dia prometemos a nós mesmos iniciá-lo.
·         Que tal fazermos aquele arroz doce que adoramos e o postergamos a todo instante?
·         Que tal concluirmos a leitura daquele livro?
·         Que tal pararmos para separamos aquelas roupas usadas para darmos para alguém?
·         Que tal almoçarmos com a nossa família, em plena segunda-feira, e sem pressa?
·         Tudo passa. O tempo fica. Não podemos ser escravos dele. As estradas, os caminhos, as veredas estão diante dos nossos narizes (nós é que não vemos).
·         Estamos sem tempo para sermos gente. Parecemos máquinas, coisas... sei lá!
·         Se continuarmos com essa pressa sem fim, não veremos a nossa vida passar, pois não estaremos vivendo, e, sim, sendo escravos do tempo. Estaremos vegetando.
·         Que tal vivermos! Nem que seja algumas vezes por mês?
·         Tem que ser agora, senão tudo passará, inclusive nossa família, nossos amigos.
·         O tempo nos levará tudo. Sobrará apenas lembranças amargas de não ter vivido para nós, e, sim, para o tempo. 

A MORTE IGUALA TODOS

Dia desses estive no cemitério e constatei uns detalhes que muitas vezes passam incólumes aos nossos olhares. Vi o túmulo de um poderoso político enterrado bem ao lado de seu maior inimigo (ambos morreram sem se falar).
Com mais alguns passos li o epitáfio triste de um casal muito conhecido na região: uma dama poderosa, falecida de um acidente grave e seu segundo marido descansavam para sempre. Logo atrás de seu túmulo estava o primeiro marido de tal dama. Em vida, foram grandes inimigos. Logo à esquerda, estava a lápide de uma famosa miss, sepultada ao lado de uma conhecida que passaram a vida trocando farpas. Eram duas das mais belas mulheres daquele município. Morreram velhas e nunca se bateram.
No centro do “campo santo” jazia um mausoléu imponente... chamava a atenção de todos (tinha até lustre). Nele “descansava” um dos fazendeiros mais ricos da região. Estava cercado por outros falecidos da mesma estirpe, mas ferrenhos inimigos quando andavam pela terra (brigavam por divisas territoriais, gado e outras coisas mais).
Próximo deles, jazia a cripta de um belo jovem, assassinado há muitos anos por um inimigo que roubou sua namorada. O assassino estava sepultado à sua direita, junto com sua ex-amada.
Num canto mais descuidado e tosco, exatamente na raia que divisava a classe abastada da humilde, jazia a sepultura do “Seu Tuca”, um senhorzinho que passou pela vida sem ser visto por quase ninguém. Morreu igual nasceu. Só levou ele. Não deixou nada. Justamente ao lado dele estava erigido uma cripta que mais parecia uma capela, na qual dormia um ex-milionário, prepotente, soberbo, preconceituoso (aqui para nós, detestava pobre). Com certeza, se antes de sua morte pudesse ter sabido que seria vizinho de "Seu Tuca", teria comprado um cemitério pessoal - só para ele.
E assim fui me dando conta desse cenário de mortos que, quando vivos detinham as mais variadas diferenças, outros, não suportavam nem se cruzar. Mas, ali, mortos, divisavam-se a poucos centímetros uns dos outros como se tivessem sido iguais quando vivos. Não havia hostilidades no cemitério. Não havia mais diferenças entre eles, exceto as alvenarias – fruto das vaidades dos que ficaram.  Debaixo da terra, tudo era igual...
Interessante a questão das diferenças. A política, por exemplo, separa boa parte das pessoas, torna-as inimigas ferrenhas. Não adianta dizer que não, pois as exceções são raras. Muitas vezes os protagonistas até se falavam antes de seus posicionamentos, se admiravam, se respeitavam, mas justamente a política, que deveria fazer o contrário, desuniu-os. Foi o bastante para um dizer para o outro: “você pensa diferente de mim, então fique lá que eu fico cá”. Há casos até de se desviar de calçada. E quando se busca o motivo – vejam que besteira – POLÍTICA.
O cemitério aí de cima descortinou uma variedade de tipos humanos inimigos que, depois de mortos, findaram eternamente uns ao lado dos outros, como se houvera sido amigos quando vivos. Não havia mais como propor mudar de lugar, reclamar propriedade, exigir o que quer que seja... não havia mais como haver diferenças políticas, ciúmes, iras... afinal estavam mortos.
Só mesmo a morte para igualar a todos... e igualar até mesmo os inimigos ferrenhos. Não adianta negar, pois a morte – sábia – iguala mesmo.
Você pode até detestar a morte, mas um dia ela será sua eterna amiga, e o fará igual a todos. A morte, só ela, possui essa façanha.

SOMOS O QUE PENSAMOS

Penso que...
Seja tempo perdido preocupar-se com coisas que podem ser fruto de fraquezas - ou do ato de darmos espaço às coisas diabólicas sem que nos demos conta.
É muito frequente - principalmente em redes sociais - pessoas se preocupando sempre com alguém tentando destrui-lo (la), que tem alguém sentindo inveja, que alguém está querendo algo alheio, que tem alguém querendo boicotar algo etc etc etc.
Obviamente que no Mundo existe a maldade,  mas podemos fechar o cerco dela com nossa bondade e com nossas atitudes altruístas.
Creio que o tempo gasto com esse sentimento - que é fruto de fraqueza e complexo de inferioridade - poderia ser usado para se externar mensagens boas e positivas.
Quem tem bom caráter e sente a presença de Deus dentro do coração é blindado de coisas que podem ser meramente projeções.
Os sentimentos que pensamos que outrem sentem por nós podem ser o contrário. Muitas vezes pode ser nós que estamos sentindo algo que condenamos nos outros.
Por que necessariamente todos tem que sentir inveja de mim?
Por que necessariamente todos estão cobiçando minha beleza?
Por que necessariamente todos estão de olho na minha namorada?
Por que necessariamente todos estão querendo tomar o meu emprego?
Por que necessariamente todos estão querendo me fazer o mal?
Por que necessariamente as outras pessoas estão com despeito porque comprei um aparelho celular de última geração?
Ora, que bobagem!
O que existe de construtivo nessa paranoia de viver pensando que as pessoas necessariamente vivem em função de fazer maldade para mim ou para outrem?
Qual a regra que uso para tais julgamentos?
Essa regra não seria a nossa própria maldade? Ou estou me sentindo com complexo de inferioridade?
Se julgo que todos estão com inveja de mim ou algo parecido, não estaria, eu, projetando a inveja que sentiria acaso estivesse em papéis trocados?
Por que devo achar que os olhos alheios estão sempre atentos para desdenhar, cobiçar, malversar etc et etc?
Por que devo achar que a boca alheia está sempre falando mal de mim ou dos outros, jogando praga, caluniando et etc etc?
Se sou uma pessoa justa, ética, correta, altruísta, dinâmica etc, não perco tempo com asneiras.
A partir do momento que anulamos essas possibilidade do nosso dia-a-dia as coisas se tornam melhores.
Quando damos valor a sentimentos pequenos acabamos nos tornando pessoas pequenas com sentimento de inferioridade.
Quando deduzimos que os outros pensam isso ou aquilo de nós, acabamos nos tornando seres humanos fracos e cristãos vazios.
Quando passamos o tempo todo supondo que os outros conspiram contra nós, acabamos criando uma aura má em nós mesmos. E acabamos nos tornando pessoas realmente más.
Nunca pense em ser maior ou melhor que ninguém, mas não deixe que pensamentos menores sejam superiores ao verdadeiro sentido da vida.
Se sou uma pessoa do bem, ignoro o mal e me blindo dele pela minha alegria e pela paz de espírito que sinto por fazer o bem e desejar sempre o bem.
Quando passamos a agir assim acabamos minando as forças ruins e negativas que nem sempre existem na dimensão como supomos.
Deixemos de paranoias e sejamos realmente pessoas boas.
O que vale é o bem, mesmo que porventura seja mal compreendido. Luís Carlos Freire


TREPADEIRA INVEJOSA


No prado verdejante imperava a solitária árvore.
Imponente, frondosa, exibindo-se por excelência e despretensiosa.
Seus galhos, robustos, sustentavam milhares de folhas e vergônteas que resplandeciam luzidias, como que esmaltadas pelo deus da natureza.
Seu tronco, majestoso, ostentava sulcos desconformes, parecendo veias gigantescas rasgando o solo... verdadeiro alicerce do imenso vegetal.
A bela espécie, generosa, gabava-se da sua servidão.
Quantas vezes ofertava o frescor de sua sombra a homens e bichos.
Suas cascas emprestavam moradia a vermes, formigas, lagartos e toda sorte de insetos, num trânsito incontinenti e confuso, do troco a copa.
O cimo assistia diariamente o entrudo da passarada, o balançar das casas de abelha proporcionado por incautos macacos.
O vento farfalhava aquela micro-floresta, num vai-e-vem irregular... Ora ríspido...Ora manso e quase imóvel.
Incontáveis ramalhetes de uma flor amarela, almiscarada, pareciam querer chegar ao céu para ser colhidas por mãos divinas.
Sua essência exalava pelo derredor, roubada pelos ares, perfumando o mágico panorama.
Abelhas, vespas, formigas e beija-flores regalavam-se naquele banquete de néctar...
Era assim... nesse ritmo que vivia aquele monumento natural.
Certo dia percebeu que em seu tronco despontou uma planta rasteira com inúmeras vergonteas.
Os dias foram se passando e a singular árvore percebeu tratar-se de uma trepadeira, a qual, desautorizada e atrevida, escalava seu caule.
Uma sensação desconfortável apossou-se do enorme vegetal, o qual, incólume, assistia um emaranhado de cipós revestindo seu corpo, sufocando-a como fazem as sucuris às suas presas.
Em poucos dias aquele câncer em forma de veias deslizou desenfreadamente, trilhando galhos, folhas e flores, cobrindo-os sem piedade.
A árvore, inconformada, quebrou o silêncio e bradou:
- O que fazes comigo?
- Ora! – respondeu a trepadeira – estou em busca de luz, afinal é do sol que tiro grande parte do meu sustento.
- Mas para isso precisa subir em alguém?
- Bem sabes que não tenho rigidez necessária para manter-me ereta como você. Necessito de suportes. Sois robusta e forte, tens meios de garantir minha sustentabilidade.
- E por acaso vos ofereço ajuda?
- Não! Mas eu apenas aguardei oportunidade.
- Sois traiçoeira como serpente – disse a árvore – é por isso que teus cipós se parecem com ela. Não seria melhor se vivesses no chão, já que sois fraca de espírito e físico?
- Como sois bobinha, dona árvore! Se tenho em quem subir, por que haveria de ficar sempre em baixo, rastejando-me? Achas que eu preferiria ser pisoteada por animais e homens? Ademais estaria sendo alvo de urina, fezes e cuspe.
- Sois oportunista!
- Que nada. Sou esperta. Isso sim!
- É fácil ser esperta com o suor alheio. Na realidade sois desprezível.
- Cala-te! Veja que já é noite. Olhe como a lua está linda. Veja quantas estrelas no céu!
- Como posso enxergá-los se já me cobres quase completamente.
- Não sejas faladeira, cara árvore. Já apreciaste tanta beleza daqui de cima. Que delícia é o orvalho e a brisa nessas alturas.
- Já não sei mais o que é isto, pois tolheste esse direito natural. Tuas folhagens me fazem definhar.
- É a lei do mais forte. Não é assim que dizem?
- Forte?! Chamas isso de forte? A mim parece fraqueza. Como pode alguém pensar que o mal possa ser forte?
- Lá vens com o teu filosofar!
E estavam nesse diálogo quando começou a brotar da trepadeira incontáveis flores vermelhas, opacas, sem beleza e com cheiro horripilante, a qual já cobria completamente a árvore. O infeliz vegetal já não possuía mais folhas e sim um emaranhado de galhos retorcidos e esmagados pelo peso da hospedeira. Até os bichos a abandonaram, enojados do cheiro nauseabundo.
- Dona árvore, veja como são lindas as minhas folhas e flores – insultou a trepadeira.
- É fácil ser bonita dessa forma. Existe muitos por aí iguais a você! Por favor, já conseguiste o que queria. Agora deixa-me em paz, não percebes que estas me sufocando? Deixa-me produzir minhas flores. Por que não procuraste uma cerca ou árvore morta?
- Ora! Achas que eu iria deixar-te em paz com tua exuberância? Antes ninguém olhava para mim. Nem minhas folhas eram vistas. Veja agora como estou imponente e visível. Cansei de vê-la esplendorosa, imponente, sendo elogiada por todos. Eras o centro das atenções.
- Tu é quem dizes! Se isso ocorria eu não usava para fins de promoção. Mas saiba que todos possuem valores, mas nem todos possuem talento. Nunca busquei exibir-me, simplesmente fui o que sou, mas contigo foi o contrário. És hoje o que nunca conseguiste – por teu próprio suor – ser. Chegaste ao topo por vias torpes. Isso é o que chamas de troféu?! Agora, mas uma vez te imploro: deixa-me ver a luz do céu. Deixa-me ver as estrelas. Deixa-me ver os pássaros. Deixa-me sentir o vento...
- Ora, deixa de bobagem. Agora o único astro aqui sou eu. Eu sou a estrela!
- Reconheça, senhora trepadeira, que o sol nasceu para todos. Olhe para o céu. Veja a infinidade de estrelas. Todas brilham e ninguém rouba o brilho da outra...
- Isso é lá no céu. Aqui é a Terra e hoje eu sou o poder!
- Ainda bem que tu mesmo é quem diz. Mas que poder é esse? Poder?!
- Claro!
- Sois dissimulada e execrável. Bem disse alguém que, se quiseres conhecer outrem, dê-lhe o poder. Ontem mesmo eras tapete. Hoje andas sobre ele. Toma cuidado. Já te disseram que quanto mais alto é o posto, mais forte é a queda? Saiba que grandes impérios ruíram.
- Sois ingênua com essas falácias. Não vês que hoje não sois nada.
- Ingênua? Pelo que vejo não compreendes a vida. Para mim sois uma infeliz que pensa ser alguém. Como podes ser alguém prejudicando os outros? Para mim não passas de uma trepadeira invejosa.
E estavam ainda nesse colóquio quando chegou o dono das terras e ordenou ao capataz:
- Corte todo esse cipó, mas tenha o máximo de cuidado para não ferir a árvore. Há três meses que não vejo a beleza da sua copa nem sinto o delicioso perfume de suas flores!
Em trinta minutos os destroços estavam no chão...
Dois meses depois a árvore retomou sua forma original

TEMPO E SILÊNCIO

Um jovem perguntou a um velho:

- Onde posso encontrar um sábio que possa responder-me incontáveis indagações que não encontro respostas? Já percorri todos os lugares e perguntei em vão.

O velho respondeu:

-Diga-me o que tanto o intriga.

O menino disse:

- Quero saber qual a verdadeira igreja. Como posso saber se uma pessoa fala a verdade ou se mente? Como posso identificar a índole de uma pessoa? Como posso saber se alguém quer me prejudicar? Qual o melhor time? Qual o melhor partido?

O velho, fitando-o respondeu-lhe:

- Suas perguntas apenas perecem complexas, mas as respostas são simples demais!

O menino, demonstrando perplexidade, indagou:

- O senhor é um sábio?

- Não! De forma alguma. O sábio que você procura chama-se tempo e silêncio. Saiba, meu jovem, que todas as suas indagações só lhe serão respondidas pelo tempo... e pelo silêncio.



VISÃO

Eram dezessete horas e meia, mais ou menos. O padre deixou a casa paroquial naquele seu único dia de folga na semana.
Caminhou até a praça logo à frente e viu um menino de aproximadamente seis anos, agachado, cavoucando a terra, sobre um canteiro de flores.
O religioso chegou até a criança, em silêncio.
Ao observar o padre, o garoto levantou a cabecinha e disse:
- Boa noite!
O padre, surpreendido, indagou-lhe:
- Não é hora de criança estar em casa tomando banho para jantar?
- O garoto, olhando-o com ternura, respondeu:
- Quisera que todas as crianças pudessem ter o que comer. Por certo, se isso fosse realidade, nenhuma estaria vagando pelas ruas a esta hora. O senhor já imaginou quantos inocentes estão jogados nas ruas nesse momento, e famintos?
A perplexidade tomou conta do padre, o qual jamais imaginara receber semelhante resposta de uma criança. O menino levantou-se. O religioso percebeu que sua camiseta estava suja de sangue a altura do peito esquerdo.
Preocupado, o padre perguntou:
- Isso é sangue? Quem te machucou?
O menino disse-lhe:
- Muitos me machucam.
- Mas eu sou padre e quero ajudar-te. Responda-me, quem são os que têm a coragem de machucar tão linda criança? Disse o padre.
- Muitos, muitos! Disse o garoto.
- Mas onde estão essas pessoas, fala-me que poderei ajudar-te. Continuou o padre.
- Elas estão em todos os lugares, inclusive na Casa do meu Pai, disse a criança.
Ouvindo isso, o padre sentiu uma sensação estranha percorrendo todo o seu corpo. E continuou:
- Como pode estar na Casa do Pai alguém capaz de ferir uma criança? Jesus disse: deixai vir a mim as criancinhas, pois delas é o Reino de Deus.
- A resposta está na “parábola do joio e do trigo” que o senhor tão bem conhece. Vinde, dê-me tuas mãos e acompanha-me, disse a criança, tomando as mãos do religioso.
- Para onde queres levar-me? Perguntou o padre.
E de mãos dadas com o padre, o menino foi entrando na Igreja Matriz e dirigindo-se aos quinze quadros que retratam a Paixão de Cristo, expostos à esquerda do altar.
- Veja, aqui está o resumo da história de quem ofereceu a sua própria vida para salvar a humanidade - disse o menino.
E apontando estação por estação comentou-as com impressionante conhecimento de exegese bíblica. Muitas vezes falava por parábolas, servindo-se de uma erudição surpreendente. O religioso comportava-se de forma atônita, procurando entender o que representava aquilo.
Encerrada as explicações da décima quinta estação, a criança segurou com força as mãos do padre, puxando-o para si, e correu em direção do Altar-Mor.
- Venha conhecê-lo... Ligeiro... Olhe, Ele está aqui! E soltando as mãos do religioso a criança dirigiu-se, apressada, aos degraus que a conduziam ao Santíssimo.
Uma luz descomunal invadiu o altar. Era uma claridade anômala, tão incomum que o padre sentiu-se como se estivesse dentro do sol. O fenômeno o deixou cego. A luz faiscava intensamente, aumentando a cada segundo. O Altar pareceu estar suspenso e o padre sentia-se levitar, procurando a criança que silenciara.

Prostrado, perdeu os sentidos.
De repente percebeu que estava caído aos pés do altar, abordado por algumas crianças que entraram para rezar o terço.
Questionado pelas crianças sobre o que fazia ali daquele jeito, desconversou, dizendo que estava prostrado em oração.
Olhou o Santíssimo, fez o sinal da cruz e saiu com ar contemplativo, caminhando lentamente no mais profundo silencioso. 

Mensagem de Natal

Aproxima-se o Natal e o Ano Novo.

Cartões viajam pelos Continentes

Levando palavras...

Mensagens vão e vêm.

Lembremos que o mais importante

É sentirmos e vivermos as palavras

Impressas nos cartões.

Vivenciar as palavras significa

Praticar o que está no papel,

Pois não adianta apenas vaticinar.

É necessário vivência e testemunho.

Costumamos desejar fartura,

Mas nem sempre olhamos para aqueles

Que há tempo aguardam um simples

Prato de arroz com feijão,

Num contrastante cenário da

Ceia farta de nossas casas.

Normalmente escrevemos sobre paz,

Mas não fazemos nada para que

Nossos vizinhos sejam felizes.

Falamos de solidariedade, mas permanecemos

Inertes diante da dor física ou psicológica

De muitos de nossos irmãos.
Muitas vezes omitimos até mesmo
Uma palavra de conforto diante da
Carência de tantos.
Muitas vezes de um próprio
Companheiro de trabalho.
Refletimos sobre um Ano Novo feliz,
Mas não fazemos por onde a paz
Estar em nossos próprios lares.
Escrevemos sobre justiça, mas nos silenciamos
Diante daqueles que promovem a injustiça.
É bom que nesse Natal pensemos em tudo isso,
Pois os atos são muito mais importantes que palavras.
Muitas delas se esvaem ao vento.
Já os atos... os atos dignificam.
A culminância do Natal é o Amor.
O dia 25 de dezembro serve para
Lembrarmos do amor.
Lembremos de Jesus Cristo.
E que o Papai Noel seja apenas um incremento folclórico.



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