O cemitério de Nísia Floresta - de frontão belíssimo - tem peculiaridades que o difere da maioria dos demais por esse Brasil afora. Nem por isso vem a ser exceção, mas é adorável a tônica que o conduz o dia de finados. É um cemitério com alma própria! O muro dessa necrópole fica no pé de uma ladeira tão íngreme que, outra igual, só em São Salvador. Lá do alto se vê todo o Vale do Capió se espraiando rumo a Tibau.. Certa vez um rapaz desceu sobre uma bicicleta sem freio, bateu no muro e já caiu dentro. Outra vez, desceu um caminhão desenfreado e esmagou uma mulher no centenário muro. Creio que é uma das únicas situações em que pessoas morreram exatamente no lugar onde ficariam para sempre.
Nas cidades antigas os cemitérios convivem abraçados com igrejas e praças. É o caso de Espírito Santo, município próximo a Natal, cujos mortos seguem assistindo missas da janela da matriz, cujo muro do campo santo é a parede da igreja. Isso não ocorre nas cidades modernas, as quais reservam área distanciada do centro. Ninguém quer ser vizinho de gente morta. Mas Nísia Floresta, pequena cidade interiorana do Rio Grande do Norte, as pessoas se habituam, desde pequenas, a enxergar o cemitério como o quintal da casa, o vizinho ou como fosse um simples monumento no meio do caminho. Transitam com tanta frequência de frente ao cemitério que ele fica “invisível”. Esquecem da mãe, do avô, do amigo que ali estão sepultados. Pense num local que ninguém morre de medo é o cemitério de Nísia Floresta!
Pois é, muitos ali parecem não ter medo de alma penada. Tem gente que fica no degrau do cemitério até altas horas, mastigando conversa. Umas até namorando. Dizem as línguas soltas que num tempo mais remoto foi visto gente fazendo gente sobre uma sepultura. Sem se importar com os miasmas e almas que, com certeza, ficaram ali, quietinhas, brechando! Não existe alegria maior que o dia de finados no cemitério de Nísia Floresta. Parece uma festa. Aliás, é uma festança. Dia em que as pessoas vão rezar, orar e reverenciar os seus familiares que partiram desta para outra melhor… ou pior!
É um fervilhado de gente pelas aleias que assusta. Dia de presentear os defuntos e prosear com eles e com os vivos. Os mortos recebem presentes em forma de coroas com flores de papel crepom, de plástico, de pano e os de melhor situação, levam-nas naturais. Uns ofertam terços, orações escritas em papel, vasos para colocar flores, imagens de santos, cartões de santos, velas etc. Não há falecido que não seja presenteado ao menos com um “souvenier”.
Até os mortos pobres são reverenciados no Cruzeiro, uma cruz bem grande no centro. Vela acendida ali se sabe que é para quem não recebe mais visita, pois os que ficaram já morreram também, além de toda a população almática do local. Impossível uma alma dizer “fui esquecida!”
Os comerciantes informais – nada bobos – instalam no lado de fora barracas para venda desses produtos e – nada desprevenidos – vendem caixas de fósforo e isqueiro. Outros, vendem lanches, afinal os vivos não comem velas. O átrio do cemitério vira a feira do Alecrim. “O mundo é dos mais vivos!” Nas próprias catacumbas é possível encontrar mortos que – quando vivos – vendiam burundangas ali na frente. De maneira que eles nem podem reclamar do vavavu. Certamente nunca imaginaram que um dia estariam mortinhos da Silva e seriam homenageados.
Antigamente, os padres celebravam duas missas na capelinha existente no centro do cemitério – construída em 1954. Uma de manhã. Outra à tarde. A multidão, prensada e "esbaforida", formava um só corpo. Os mais velhos se sentavam nos túmulos, devido ao desconforto do terreno, pois não existem mais aleias. Restou apenas a central.
Pois bem, a missa foi extinta, e os evangélicos - vivíssimos da Silva - perceberam! (Explico já, abaixo!). Outro desconforto do cemitério é o calor infernal promovido pelas velas acendidas uma seguida da outra. A nova no “catoco” da velha, numa sucessão interminável... e ali mesmo elas vão falecendo. Tem gente que acende de uma só vez as oito velas do pacote. As velas “morrem rapidinho”.
O sol escaldante é fichinha para a fornalha infernal que se forma próxima do Cruzeiro. As amálgamas de parafina escorrem como rios entre os túmulos. Contam que já houve quem fizesse escândalo por pisar em tais riachos. Eles formam “represas” do líquido escaldante, fazendo inveja a Dante Aleghieri. Acredito que algumas almas – ao invés de se sentirem lisonjeadas pelas homenagens dos vivos - sentem no inferno no dia de finados. Aquela quentura toda, o mormaço de parafina misturado com cheiro de flores, dá ao local um hircismo que eu chamaria de 'cheiro de morte'. Cheiro esquisito!
Mas o leitor não pense que esse sem-fim de cera escorrendo vai pro lixo. Há muito menino por ali só pastoreando - a mando da mãe -, e mal os rios vão endurecendo dão-se nas vasilhas, pois servirão para encerar a casa. A meninada sai dali com latas e sacos cheios. Basta misturar com um pouquinho de querosene, esquentar e vira cera maravilhosa (contou-me alguém!).Vejam só que riqueza o cemitério de Nísia Floresta!
Lembro-me de ter visto uma família numa espécie de ritual interessantíssimo, em que alguns conversavam com o morto. Alguns entram e saem do local totalmente compenetrados, numa espécie de compunção. Cada qual com o seu morto. Algumas pessoas cismam de chorar um “choro de lobo em noite de lua cheia”. Uma ladainha esquisita. E nem sempre por morte recente. Uns dão esses espetáculos há muito tempo. Como fosse uma satisfação à sociedade. A dramatização serve para que “o povo” tenha certeza que a família sente falta do morto (mesmo que tenham sido “ruins feito o diabo” quando era vivo).
Normalmente os visitantes ficam ao lado do túmulo, sentados nele ou em pé, por horas a fio. Ali vão passando os amigos vivos e encetam conversas que abarcam todos os assuntos. Comadres, compadres que não se viam a certo tempo. Uma novidade! Lembram do morto, narram episódios vividos junto a ele, coisas que ele falava etc. Há um princípio de emoção e logo é dada uma guinada no contexto, surgindo conversas, risadas e gaitadas que dão na outra rua.
Antigos conhecidos que deixaram a cidade há anos se reencontram. Gente de Natal e outros lugares aparecem e fazem uma festa com os velhos conhecidos. A algazarra é tanta que a feira de São José de Mipibu vira uma contrição. Não faltam gargalhadas. Um ruge-ruge de gente se esbarrando uma na outra. Há horas que o ambiente chega ao ápice, lembrando mais uma coisa sem prumo. Creio que as almas mais recatadas e tímidas se incomodam, mas preferem ficar quietas, afinal é só aquele dia!
À noite é a vez dos crentes – ou melhor – dos evangélicos. E não poderia ser diferente, afinal crente também morre e nem sempre vai para bom lugar - diga-se de passagem! Ali, em meio às pregações direcionadas aos que ainda não "bateram as botas", fluem reflexões sobre arrependimento, fim dos tempos e, como não são bobos, boas cantadas para aqueles que ainda “não aceitaram a Jesus” o fizerem ali mesmo.
Suponho que as almas que em vida haviam aceitado o diabo, se mordem de arrependimento e... cá para nós... nem fazem questão, até porque é cada tipo de gente se proclamando “salva” que salva mesmo só a dinheirama no bolso. E nessa história saem dali com um rosário de novos convertidos. Vejam como o cemitério de Nísia Floresta é diferente!
Ironicamente, ao lado do cemitério fica a delegacia, cujos “cabra errado” são trancafiados e soltos a cada momento. Mas dentro do cemitério a história é outra. Quem for trancafiado numa cova dali não sai mais. Contou-me alguém que, certa vez, um bêbado levado aos pés do juiz o incomodou tanto com conversas altas e truncadas, que o magistrado lhe disse: "Meu senhor, cala a boca, senão eu mando lhe prender agora mesmo!" O infeliz, nas suas divagações etílicas, respondeu-lhe: "Mas eu me solto logo! Quero ver se eu prender o senhor. O senhor não sai mais nunca. É prisão perpétua!". O juiz, perplexo com o “cabimento” disse-lhe: "quem o senhor pensa que é, seu cabra atrevido? O bêbado respondeu: "eu sou o coveiro da cidade, seu infiteti!".
A galhofa no campo santo é grande! É gente saindo. É gente entrando. Mãe procurando filho. Namorado em busca da namorada. Gente paquerando. Grito de fulano chamando beltrano, menino gritando. Há momentos em que os visitantes até se esquecem dos seus mortos e dão mais atenção aos vivos. Enfim é uma festa! Tenham certeza que muitos aniversários e festanças com comes e bebes por aí perdem feio para o dia de finados em Nísia Floresta. (1994)
Escrito em 1994, essa crônica pode estar desatualizada. Até porque um padre - amigo - disse-me, recentemente, que Nísia Floresta já não traz mais esses ares. Hoje, nos enterros, nas igrejas, no ‘Dia de Finados’ e etc as pessoas estão num planeta distante, transfigurado nos aparelhos celulares. Grande parte está mais preocupada com vaidades pessoais, auto-promoção, futilidades que correram para as redes sociais… Hoje, filhos que nem davam tanta atenção aos pais, se desmancham com postagens de lamentações e declarações de amor após a sua morte. Amor que muitas vezes nem existiu, ou não foi tão intenso como nos textos, mas que precisou-se apresentar-se dessa forma no Instagran ou Facebook, onde a aparência importa mais que o mundo real. Redes sociais são lugares de mostrar, de dizer, de contar que tudo está maravilhoso... É uma necessidade que se não acontecer, está-se excluído-se da sociedade. O "diário da vida" não pode ter lacunas... Dos frequentadores do cemitério do passado, muitos morreram. Mas a maioria migrou para esse novo mundo de fantasias.
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