História é terreno interessante. Nem sempre quem
testemunha, registra os fatos em fotografias ou textos. Então recorre-se à
História Oral. Nem sempre encontramos as velhas testemunhas que nos contam como
foi. Muitas vezes o tempo dista tanto que, quando se quer saber como foi, não
há mais quem nos conte. Às vezes as poucas testemunhas vivas, lembram de fragmentos.
E há os que ouviram dos pais ou avós, e contam de maneira mais diluída.
Esta
história aconteceu no município de Nísia Floresta e está guardada nas memórias de poucas testemunhas. Ela não foi escrita nos conformes de como ora escrevo. Com
certeza está no Diário da Paróquia de Nossa Senhora do Ó e nos registros
pessoais do sacerdote da época. É uma singularidade, pois poucos sabem que os ares nisiaflorestenses testemunharam.
Era
março do ano de 1992, portanto se passaram 32 anos. Tudo começou quando o padre
João Batista Chaves da Rocha, administrador da Igreja Matriz de Nossa Senhora
do Ó, em Nísia Floresta, RN, convidou o padre paulista, Antonio Maria, para
visitar a sua paróquia e desfrutar uns dias junto aos fiéis. Padre Antonio Maria é
nacionalmente conhecido, inclusive por sua missão junto à Mãe Peregrina e suas
lindas canções autorais.

Nesse
tempo eu já conhecia o padre João Batista, tendo em vista que pesquisava o
Folclore local, e observei que ele valorizava e enaltecia a Cultura Popular do
município. Numa ocasião, ele convidou-me para estar presente na casa de praia
do senhor Rubens Barros, um empresário nativo de Nísia Floresta, dono da
empresa de transporte Barros. Essa casa, fincada em Camurupim, foi emprestada para bem acolher o sacerdote visitante.
Na
hora da saída, outros nativos se dividiam nos carros, de maneira que fui na
camioneta do padre Antonio Maria. Era um veículo grande, de um vermelho desgastado
e opaco, tinha tração nas quatro rodas. A rodovia que ligava a cidade à praia de
Camurupim era de terra batida. Havia chovido muito naquela semana e no momento
da saída, chovia torrencialmente.
O
percurso foi tenso. O barro fazia a camioneta derrapar e rodar algumas vezes, mas
entre um trecho e outro de arisco e pedregulhos o veículo rodava melhor. A chuva não parava. A
“viagem” tomou mais tempo que o normal, e nessa luta todos chegaram, sãos e
salvos. Por incrível que pareça, o tempo limpou e não choveu mais.
Àquela
ocasião a senhora Maria Trindade, Neto e Luís Carlos (um xará) exerciam
funções na paróquia, de maneira que estavam bastante engajados naquele evento,
como também a senhora Joanita, governanta da casa paroquial, irmã da Lorica.
Algumas pessoas da cidade também se deslocaram à casa de praia, como a
professora Ana Maria Barros de Carvalho, seu esposo Joel Paulino e sua filha
Simone Barros. Inclusive os conheci nessa passagem.
A
casa seria uma espécie de recanto de veraneio do padre Antonio Maria. Acostumado à
poluição e às paisagens de concreto de São Paulo, ele deve ter adorado. Àquela
época essa casa ficava numa duna alta, de onde se olhava o mar e o horizonte
que se perdia no olhar. Uma espécie de mirante com visão privilegiada do
movimento dos banhistas. Tudo isso circundado por num cenário paradisíaco,
envolto em coqueirais, manguezais e arrecifes.
A casa de praia se prefaciava a partir de um jardim gramado e flores baixas, tudo
muito bem cuidado. Havia mesas e bancos de cimento, fixos, redondos com guarda-sóis redondos, feitos de capim. Estava ali para quem quisesse se deliciar com a visão
do mar.
Num
dado momento o padre Antonio Maria aproximou-se de uma das mesas e depositou uma
caixa com extremo cuidado. Havia nele um aspecto de contrição. Ele retirou uma
peça envolvida num plástico e passou a lidar com aquele objeto com muita delicadeza, como quem mexesse com objetos de cristal. Era um rosto feminino de
pessoa idosa estampado em gesso. Logo percebi que se tratava do prenúncio de
uma escultura. Aprendi numa disciplina, na universidade. Aquela efígie é a base
para se confeccionar esculturas em bronze, dessas que ficam nas praças como
monumentos.
A
essa altura eu vinha conversando com o padre Antonio Maria com certa proximidade,
portanto perguntei de quem seria a escultura. A resposta foi uma estonteante
surpresa: era a máscara mortuária da irmã Dulce, feita dias antes. Eu, muito
jovem, quase não acreditei que estava praticamente diante da santa dos pobres...
a “irmã Dulce, doce mãe”, como diz o padre Antonio Maria numa de suas músicas. Era
uma fisionomia de dormir em paz absoluta, uma paz plena de justiça. Havia
alguns fios de cabelos grudados no gesso e um cheiro de óleo Johnson (É a
técnica). Então vi a própria irmã Dulce, como se aquele ser extraordinário
resplandecesse.
Para
estar naquele ofício, obviamente que o padre Antonio Maria já havia feito alguma
escultura, portanto revelou-se um escultor que eu desconhecia. Ele pegou da
goiva e pôs-se a trabalhar carinhosamente aquela face permeada de rugas, quais
um entrelaçado de estradas, veredas, caminhos. Por certo eram exatamente os
caminhos que ela tanto percorreu, levando dignidade a tantas pessoas
abandonadas de tudo e por todos, num tempo sem projeto algum que beneficiasse
tais seres vestidos de miserabilidade.
Quem
imaginava que o sacerdote ilustre trazia consigo uma santa? Era comum para ele exercitar
aquele ofício, portanto o fez sem alardes. Trouxe consigo aquela espécie de
pedra-sabão, então rasparia as sobras de gesso, faria os acabamentos e, com movimentos cuidadosos, ascenderia
o rosto da santa, dando-lhes a perfeição. Só fiquei
sabendo disso porque perguntei. Não havia mais tanta gente na casa de praia,
portanto muitos nem souberam dessa passagem. Nos outros dias, mais reservado,
com certeza ele se debruçou na sua arte escultórica, ali, ao som do mar, observado
pelos camurupins.
Não posso precisa a data neste momento, pois
escrevo de rompante, e meus registros de décadas estão “amufambados”. Suponho
que o episódio deu-se entre os dias 14 a 16 de março, pois a morte da irmã
Dulce se deu no dia 13 de março de 1992, em Salvador, Bahia. A propósito, o
padre Antonio Maria se deslocou até Salvador, ocasião em que fez o molde do rosto da Ir.
Dulce em seu ataúde, vindo direto para o Rio Grande do Norte. Enfim, no dia
seguinte estive na missa celebrada pelo padre visitante. Ele cantou suas belas
canções que são verdadeiros poemas de bondade e amor. A matriz estava cheia e
cuidadosamente decorada com flores naturais. O padre João Batista mandou fazer
alguns painéis com belas pinturas. Foi uma noite muito bonita para a comunidade
católica.
Aquela
experiência foi um dos capítulos impressionantes da minha vida. Senti estar no
velório da Ir. Dulce, pois vi a sua face em sua última fisionomia. A cidade
aguardava um visitante. Chegaram duas visitas. Quando os restos mortais de
Nísia Floresta chegaram nestas plagas, aguardavam uma pequena caixa com ossos.
Chegou um caixão com um corpo intacto e mumificado, surpreendendo a multidão. Como
disse no início, a história é terreno interessante... E essa é uma história parecida
no aspecto do impacto da surpresa.
Não precisa dizer – dizendo - que a visita do
padre Antonio Maria era aguardada com grande alegria e expectativa, pois o padre
João Batista era padre barulhento, que alardeava os eventos, as visitas, com
sinos e trombetas. Inclusive, bem no início da anunciação dessa visita, muitos
não acreditavam, conforme soube depois. E deu no que deu. Enfim, foi-me uma
grande satisfação ter conhecido o padre Antonio Maria, pois a sua simplicidade
cativa. Mas a visita da irmã Dulce – pelo menos para mim -, roubou a cena.
Escrevendo
este texto fico me perguntando: onde está o resultado final daquele busto ou
efígie? Com certeza instalado em algum lugar muito especial...
Pois
bem, eis esta página que, ora escrita, fica para a eternidade. 22.2.24 - 00h50.