Contam os alfarrábios jorrados de pessoas velhas que isso aconteceu quando a Igreja de Nossa Senhora do Ó se erguia. Então, por certo viajaremos para 1735, início das obras. Vejam bem, passaram-se duzentos e oitenta e cinco anos...
As pedras vinham de Morrinhos, onde abundam até hoje belos exemplares. Eram transportadas sobre carros-de-boi, cujos veículos iam e vinham o dia inteiro. De longe se distinguiam as rodas rangendo gemido triste, que somado às rumas dos homens, orquestravam esquisita melodia. Por vezes as pedras eram transportadas nos lombos de jumentos e até carregadas nas mãos por homens e mulheres, como forma de expiação de pecados. Até crianças participavam desses traslados. Cada um transportava o peso que suportasse. Era fluente o trânsito, seja para Morrinhos, seja para Búzios, seja para Tabatinga, de onde vinham o óleo de baleia e milhares de búzios.
Os padres jesuítas, vindos da Vila de São José de Mipibu, metódicos, passavam o dia coordenando os trabalhos. Quando o carregamento chegava, mandavam separar as pedras. Cada tamanho tinha uma finalidade. Umas eram para o baldrame, outras para as paredes, portanto deveriam ficar distinguidas por tamanho. Algumas eram moídas com marretadas. Depois misturavam os fragmentos com sangue de baleia, barro, argila, sal grosso e búzios. Assim fizeram os alicerces e ergueram vagarosamente as paredes de noventa centímetros de largura. Só assim aguentariam o campanário e as linhas feitas com o tronco inteiro de árvores, apenas desbastadas para adquirir feitio quadrado.
Pois bem, já era tardinha quando chegou o maior carro-de-boi. Veio carregado com pedras grandes. Logo, vários homens calçaram a carroça para não se deslocar no descarregamento. Assim deram início ao deslizamento das pedras por via de tábuas muito grossas. Depois eram roladas sobre troncos de coqueiros, levadas até o local correto. Serviço pesado, perigoso e cansativo. Eis que de repente, ao descerem uma peça, um dos homens, já muito exausto, gritou:
“Diabo de pedra danada de pesada"!
O jesuíta que orientava a obra mandou parar tudo. Ficou chocado com aquelas palavras, corrigiu imediatamente o nativo, pedindo que nunca mais ele proferisse aquilo, principalmente diante dos trabalhos da igreja. O homem, inocente, também ficou chocado com a abordagem do sacerdote, mas perguntou a razão daquela repreensão. Ele usava a palavra “danado” com naturalidade.
O jesuíta mandou separar aquela pedra longe de todas. Ele entendeu que aquela pedra não deveria ser colocada na construção, pois a reconheceu como amaldiçoada. Era como se algo de mágico tivesse ocorrido naquele instante, cuja pedra tivesse recebido uma força diabólica pela ação da palavra. Ele alertou:
- Cuidado com as palavras! Elas têm poder do bem e do mal! Aprendam isso!
No outro dia, logo cedo, o jesuíta anunciou a todos trabalhadores que não colocassem aquela pedra na parede. Explicou o ocorrido na tarde anterior. Para ele a Casa de Deus não poderia ter uma pedra amaldiçoada. Os trabalhadores, acostumados a usar a palavra “danado” como um adjetivo – sem maldade alguma – não entendiam o desconjuro do jesuíta. Então o religioso explicou que “danado” quer dizer "amaldiçoada seja a sua alma". Quando se diz “danado”, está-se condenando a alma de alguém para os quintos dos infernos. É o mesmo que amaldiçoar. Esclareceu que “danada” são as almas condenadas ao inferno, e que aquilo estava na Bíblia Sagrada.
Os homens ficaram espantados. Não sabiam que se amaldiçovam a todo instante.
Creio que essa lenda, que prefiro dizer "lenda", assim como algumas poucas por esse imenso Brasil, navegam na verdade. Ouvi narrações de pessoas idosas entre 1992 e 1994. Todas contam da mesma forma, exceto com um detalhe narrado por três pessoas. As senhoras Natália Gomes do Nascimento, 88 anos de idade à época, senhor Vicente Marinho, 90 anos à época, e Estelita Marinho Oliveira, 86 anos à época, (neta do “Cavaleiro da Rosa”), me narraram um detalhe precioso, e justamente essa peculiaridade me dá a ideia clara de que isso é fato, e não lenda.
Quando dona Natália encerrou a contação, me disse: “essa pedra tá lá ao lado da igreja até hoje. Cansei de subir nela quando papai trazia a gente pra missa de Tororomba pra cá... a gente era tudo criança”.
Dona Estelita me chamou para ir até a igreja Matriz, e me mostrou a pedra. Ficava entre a igreja e a antiga Casa Marista. O Sr. Vicente Marinho, contando a estória, da janela de sua casa apontou a pedra e me disse: “a pedra está acolá, na frente da casa de Deca Severo”.
Eram pessoas muito adiantadas em idade. É fácil supor que seus trisavós presenciaram o fato que se deu em 1735. Não é impossível. Por que os nativos contariam uma história e mostrariam a pedra? Por que aquela pedra estava exatamente ali, ao lado da igreja, destoando de tudo?
A palavra danada é usada intensamente em quase todo o Nordeste, sem finalidade depreciativa, funcionando mais como uma força de expressão. Quem é que não conhece o famoso “tá é danado de bom” do imortal Luiz Gonzaga? “Danado” também pode ser entendido como levado, arteiro, presepeiro, bom demais, gostoso, legal, enfim depende do contexto como é empregado – e do estado de espírito de quem a usa.
Todavia,
o jesuíta da dita "lenda", por ser um religioso, foi fundo no entendimento
do “danado”, buscando a acepção bíblica. E a pedra? Desapareceu dali no
ano de 2000, quando fizeram o Marco do Novo Milênio. Luís Carlos Freire,
setembro de 1994.
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