O TEXTO ABAIXO FOI ESCRITO HÁ 23 ANOS, PORTANTO O LEITOR PODERÁ ESTRANHAR ALGUNS REGISTROS
Hoje,
dez de setembro de 1993, visitei Alcaçuz. Achei que estava num
pedaço do Éden tão proclamado por sua beleza. Encontrei um
aglomerado de casarios esparramados em ruas irregulares emoldurando
a pequena Capela de Nossa Senhora das Mercês. Tudo muito acanhado e
rústico, inclusive a taipa é o material que rege boa parte da arquitetura local.
A
comunidade, abraçada por dunas, lagoas, morros, matas e tabuleiros é
permeada por veredas, trilhas humanas e estradas carroçáveis.
Alcaçuz dista 30 quilômetros de Natal. Para saber como chegar ali,
depende de seu ponto de partida. Para mim, que fui pela Cachoeira,
passei pela Hortigranjeira. Mas, se o leitor vir por Piranji do
Norte, em Parnamirim, basta atravessar a ponte no final dessa praia,
entrar em Pium e continuar em sentido reto pela poeirenta estrada. Há
outros caminhos, mas esses são os mais transitáveis. A localidade
fica às margens da Lagoa do Cavalo.
Pesquisando
os velhos alfarrábios, constatei que o nome "Alcaçus"
apareceu pela primeira vez em 1614, nas famosas cartas geográficas
que evidenciavam também Pirangi e Búzios, praias muito próximas,
ao Nordeste da comunidade e de grande fluxo de piratas e viajantes
europeus, inclusive, ora aparece escrito "Piransie", ora "Piranjipepe":
"Pirangi possuia, em
1614, dois portos de pescaria, um em que sempre se pescou, que é o
da banda do sul, e o da banda do norte haverá dez anos que o deixou
João Sereminho".
Com
relação ao povoado, um antiquíssimo documento, datado de 1711,
menciona "Alcaçus" numa partilha pertencente ao senhor
João de Vitor, proprietário do bar do Cajueiro.
Na
vasta topografia côncava e convexa de Alcaçus, espraia-se dunas
alvas como os cabelos de meu pai; outrora, morros revestidos de
densas matas rasteiras, escondendo pequenos animais e uma vastidão
de pássaros orquestrando os mais belos sons. Vez em quando
deparei-me com lagoas de estonteante beleza, cujos cardumes exibem os
mais perfeitos bailados. As águas calmas e transparentes enfeitiçam
os forasteiros convidando-os a se refrescar e permanecer ali. É
inacreditável o que vi logo após o almoço na Lagoa do Cavalo.
Contaram-me
alguns senhores que encontrei por ali que a Lagoa do Cavalo é tão
abundante que interliga a Lagoa de Baixo e a Lagoa da Estrada, embora
existem outras, menores, como Lagoa do Cágado, Lagoa de Dentro,
Lagoa do Pinica Pau, Lagoa dos Ventos, Lagoa do Peixe e Lagoa Funda.
No
centro de Alcaçus, conheci o senhor João Costa, antigo morador da
localidade. Colhi dele o seguinte depoimento "essas águas
todas daqui é o ouro nosso, é daqui que tiramos o nosso alimento, o
resto vem da terra... é macaxeira, inhame, batata-doce, tudo que a
gente planta vai prá frente...". Tais palavras deixam claro
que a fonte de alimentos de Alcaçus vem da agricultura e da pesca.
O
senhor José Pereira da Silva, 87 anos, explicou-me que seu pai era
pescador e ele seguiu a tradição. "As lagoa daqui têm piau,
cangatis, jacundá, traíra e tapacás... tem peixe demais... a gente
pesca prá comê e ais veis vendê... os menino vão prá banda de
Parnamirim e vende tudo".
Perguntei
o que eles comiam de diferente. Seu filho Expedito interrompeu,
destrinçando os nomes de animais que, até então, eu nunca tinha
ouvido. "A gente caça tatu, camaleão e preá... tem demais
nessas mata...". Explicou-me também que a mata é cheia de
frutas como maçaranduba, manganba, ubaia e araçá, dentre outras.
"A maçaranduba é menas, módi a madeira que os povo tira,
mas tem fruta demais nesses tabuleiro", complementou.
Percebi que a vastidão verde ondulando até se perder no horizonte
só podia esconder algum tipo de fauna.
Tendo
observado a ausência de trânsito de carros, contou-me o senhor João
Costa que o local é calmo e quase não recebe gente de fora. A
localidade, propícia ao lazer, parece ainda não tão descoberta,
exceto pelos nativos. Isso explica a rusticidade da paisagem
pincelada por casas toscas de taipa, que vistas de longe parecem um
cartão-postal. O local acolhe por seu bucolismo. A vastidão de
tabuleiros - verdadeiros tapetes - exibem os mais variados tons de
verde, ora pincelados de flores miúdas, brancas e amarelas, ora
enfeitados pelo voejar de minúsculas borboletas amarelas dando ao
cenário imprevisíveis matizes. Os altíssimos coqueirais completam
a perfeição desse Éden que nunca pensei encontrar.
"Cajus e concrix" - Adriano Santori. |
Admirado
com a altura dos morros e dunas, o senhor José Pereira da Silva
informou-me que os mais altos são o Morro do Navio, o Morro do
Arrepio e o Morro do Pinica-Pau. O Morro do Navio tem esse nome porque serve para guiar os pescadores que estão em alto mar. Segundo os moradores, é possível vê-lo estando a 10 quilômetros de distância da praia (para quem está num navio/barco). Alguns desses morros são revestidos totalmente de arbustos,
inclusive cajueiros; outros deixam à mostra suas areias finas como talco, cujas rajadas constroem imagens que lembram fantasmas ao serem levadas pelo vento. Algumas vezes sua força é tanta que assobiam, ricocheteando a pele de que se envereda por ali. Seria o Saci-Pererê? Sons de bem-te-vis, concrix, corujas, sabiás,
corrupiões, sanhaçus, galos-de-campinas, dentre outros pássaros
multicolorem a paisagem, numa orquestra indescritível .
Uma
das imagens mais impressionantes que vi em Alcaçus foi protagonizada
pelas mulheres rendeiras – verdadeiras mestras desse ofício – as
quais realizavam o seu mister nos alpendres de suas casas; outras,
sob a sombra de frondosas mangueiras. Eu, que sabia de sua existência
nos livros, vi diante de mim uma infinidade. Qual o coletivo de
mulher rendeira? Uma delas, dona Mariz Soares, 77 anos, disse-me que
seus bilros pertenceram a sua avó. Vejam quanto tempo! As peças,
envernizadas pelas mãos daquelas maestrinas, pareciam pequenas
obras de arte. Alcaçus é feitiço puro. Não há igual. LUÍS CARLOS FREIRE
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NOTAS :
* Atualmente, apesar de Alcaçuz conservar boa parte das belezas aqui exaltadas, vê-se muita depredação decorrente da ocupação desenfreada de suas áreas verdes, posses e o próprio turismo sem profissionalismo. Pessoas e carros percorrem morros, dunas e matas, deixando rastros das mais diversas formas. A piscosidade de suas águas já não é mais igual a vista em 1993. As casas de taipa praticamente desapareceram, vitimadas pelo "Programa das Casas", do Governo Federal. Um presídio foi fincado onde havia uma floresta de mangabeiras, cujos efeitos são os mais horripilantes. Os túneis e buracos dos tatus, agora são feitos por homens desesperados pelos horrores da prisão. O canto dos pássaros deu lugar ao estampido de armas, sirenes dos camburões e o gemido abafado de homens vitimados pelo próprio sistema que não os educou. Em Alcaçuz, muita coisa mudou.
* Alcaçuz é a forma aportuguesada de se referir a uma palavra árabe, cuja escrita real é Harq as-sūs cujo significado é 'fibra ou raiz do alcaçuz. Esses povos a usavam com fins medicinais, como fazem até hoje na localidade que recebeu esse nome pela abundância desse vegetal.
* Atualmente, apesar de Alcaçuz conservar boa parte das belezas aqui exaltadas, vê-se muita depredação decorrente da ocupação desenfreada de suas áreas verdes, posses e o próprio turismo sem profissionalismo. Pessoas e carros percorrem morros, dunas e matas, deixando rastros das mais diversas formas. A piscosidade de suas águas já não é mais igual a vista em 1993. As casas de taipa praticamente desapareceram, vitimadas pelo "Programa das Casas", do Governo Federal. Um presídio foi fincado onde havia uma floresta de mangabeiras, cujos efeitos são os mais horripilantes. Os túneis e buracos dos tatus, agora são feitos por homens desesperados pelos horrores da prisão. O canto dos pássaros deu lugar ao estampido de armas, sirenes dos camburões e o gemido abafado de homens vitimados pelo próprio sistema que não os educou. Em Alcaçuz, muita coisa mudou.
* Alcaçuz é a forma aportuguesada de se referir a uma palavra árabe, cuja escrita real é Harq as-sūs cujo significado é 'fibra ou raiz do alcaçuz. Esses povos a usavam com fins medicinais, como fazem até hoje na localidade que recebeu esse nome pela abundância desse vegetal.
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